Em 13 de março de 2013, Mario Jorge Bergoglio foi eleito papa. Francisco chega como reformador. Dez anos depois, em meio a forte oposição, como o pontífice concebe saídas para as crises em nosso tempo?
Desde o primeiro ato, na varanda do Palácio Apostólico, diante da Praça São Pedro lotada, o recém-anunciado Bispo de Roma emitia os primeiros sinais do que haveria de ser seu pontificado. Francisco, que recusa os sapatos vermelhos, ouro em acessórios quase monárquicos, curva-se diante do povo e do mundo, como um sujeito que se põe a serviço.
Muitos se surpreenderam, alguns se emocionaram, e outros olhavam desconfiados, quase sem reação. Mas poucos conseguiram imaginar o que esses primeiros atos significariam para o pontificado. “Aquela cena na varanda naquela noite indicou imediatamente para aqueles com olhos para ver e ouvidos para ouvir que este seria um tipo diferente de pontificado”, diz Nichole Flores, professora de estudos religiosos da Universidade da Virgínia, em reportagem do National Catholic Reporter, reproduzida pelo IHU.
Hoje, dez anos depois, parece ser mais fácil compreender esses gestos tendo em perspectiva outros que ocorreram, como sua primeira viagem oficial, a ida a Lampedusa e o encontro com os imigrantes refugiados.
A coroa de flores jogada ao mar e os olhos sérios para aquela realidade eram como um farol para o mundo. Francisco poderia ter feito um discurso na varanda do Palácio Apostólico, falando da dor dos refugiados e o quanto o Mediterrâneo tem se tornado um grande cemitério. Mas, não. Ele foi até a ilha que recebe imigrantes desesperados e lá, em silêncio, olhou para essa gente e sentiu com eles. Trata-se de um sinal claro de que Francisco, em seu pontificado, é um sujeito de atos, não de discursos.
Papa Francisco em Lampedusa em encontro com refugiados (Foto: Divulgação)
Talvez, esteja aí um elemento central que faz com que Christian Albini, cientista político e teólogo italiano, formulasse a ideia de que aquela efetivamente foi a primeira encíclica, ou primeiro grande "documento" do pontificado de Francisco. “O ministério petrino se despe das suas vestes monárquicas (...) para se tornar encontro com a pessoa humana”, resume, em artigo reproduzido pelo IHU em 2013.
Embora ainda não se soubesse bem o rumo do pontificado que estava por vir, de imediato se tinha clareza de seu desafio: salvar a Igreja de um suicídio, como pontuou Gianni Vattimo, filósofo italiano, em entrevista à IHU On-Line em 2015. Ou seja, Francisco é eleito papa num mundo em ebulição, em uma completa transformação epocal na qual, ainda, a Igreja, ou até o cristianismo em si, vive suas crises. Afinal, tais instituições ainda são capazes de iluminar a humanidade diante de tamanha transformação?
Ainda assim, Gianni Vattimo, quando completavam-se dois anos de pontificado, pontua que a Igreja Católica, entre a renúncia de Bento XVI e o conclave que elegeu Bergoglio, caminhava dura e firmemente para um abismo. De lá, provavelmente se jogaria, presa às suas convicções. É nesse contexto que emerge Bergoglio, um "papa do fim do mundo", com seus movimentos para tentar mudar o curso da história. “Os dois primeiros anos do pontificado de Francisco me parecem um grande milagre do Espírito Santo, especialmente porque eles salvaram a Igreja do suicídio que parecia próximo dos papas anteriores”, analisou Vattimo.
Mas Francisco não opera candidamente. Ele assopra brasas para que ardam, transformem. “O Papa diz aos jovens para hacer lio, criar confusão. Ou seja, ter um pouco de espírito anárquico, em um mundo cada vez mais integrado e controlado pelo poder econômico e militar”, completou.
Nessa mesma entrevista da IHU On-Line, assim como outros analistas pontuaram, Vattimo chama atenção para o fato de que o maior desafio de Francisco seria “dentro de casa”. Lembram daquele primeiro ato de despojamento no primeiro "boa-noite" de Bergoglio como Papa Francisco? É justamente naqueles atos que residiriam o espírito que o deveria animar no tocante à reforma da Cúria.
É como se por trás de seu despojamento estivesse uma convocação para que a Igreja, especialmente os bispos e padres, também se despojassem. Isso pode até gerar endossos e apoios públicos, mas, quando as luzes se apagam e a porta da frente se fecha, as resistências emergem. É como o recente caso em que Francisco determina que bispos não morem mais de graça. Em comunicado datado de fevereiro de 2023, vem a determinação:
“Para atender aos crescentes compromissos que a Santa Sé enfrenta para o cumprimento do serviço da Igreja Universal e dos necessitados, pede que maiores recursos sejam destinados e reservados à Sé Apostólica, também aumentando as receitas da gestão dos bens imóveis, como a abolição do alojamento gratuito e vantajoso para Cardeais, Chefes de Dicastério, Presidentes, Secretários, Subsecretários, Executivos, Auditores e equiparados, do Tribunal da Rota Roma, dos bens pertencentes às Instituições Cúrias e dos os Órgãos que se referem à Santa Sé incluídos na lista anexa ao Estatuto do Conselho para a Economia incluindo as Domus.”
Lembremos que o novo pontífice assume após uma renúncia e que o antecessor parecia reconhecer não ter mais condições de lidar com uma Cúria doente e imersa em escândalos financeiros. O filme Dois Papas (Netflix, 2019) criou uma atmosfera que, embora ficcional, nos aproxima dos desafios diante dos quais Bento XVI se viu e de como Bergoglio surge como uma alternativa.
Em uma perspectiva não ficcional e mais analítica, o historiador italiano Andrea Riccardi considera fundamental olhar para esse contexto de renúncia não só para compreender o surgimento de Francisco, mas também para detectar as raízes de sua oposição. “Por que os cardeais se voltaram para Bergoglio em 2013?”, questiona, em artigo reproduzido pelo IHU. Para Riccardi, “no conclave de 2005, ele foi a alternativa a Ratzinger, cuja escolha pareceu tranquilizadora”.
Trata-se, porém, de uma tranquilidade não tão duradora, pois no horizonte do novo papa estava a afamada reforma Cúria. “Bergoglio era um pastor, não gostava do mundo curial: até mesmo de sua forma de governar (da qual sofrera algumas recaídas em Buenos Aires). Ele tinha pouca simpatia por alguns wojtylianos, como o card. Lopez Trujillo, por seus métodos imperativos. Era de fora da Itália. A maioria dos problemas da Cúria era atribuída aos italianos pelos cardeais que lhes pediram para arrumá-la”, observa Riccardi.
Entretanto, é preciso dizer, em meio a toda essa resistência e ranger de dentes, que mudanças têm ocorrido. É bem verdade que talvez não sejam aquelas que todos esperavam, mas, ainda assim, vemos casos como o escândalo financeiro envolvendo os imóveis do Vaticano em Londres virem à luz. Será que no passado recente exemplos como este seriam descobertos?
O mais curioso é que, ainda lá em 2013, quando esse mesmo mundo aturdido pelas transformações se surpreendia e questionava as ações de Francisco em suas críticas à crise migratória e a uma economia geradora de desigualdades – aliás, nunca antes tomadas por qualquer outro papa –, o novo Bispo de Roma se mostra tranquilo. Talvez, por estar ciente de que, apesar de ter um grande papel e um dever neste mundo, a Igreja não tem todas as respostas; ela precisar sair de si, estar aberta na busca por respostas e caminhos. Como jesuíta, Francisco é efetivamente adepto do discernimento segundo Inácio de Loyola.
“[O discernimento] é um instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-lo mais de perto. Sempre me impressionou uma máxima com a qual se costuma descrever a visão de Inácio: Non coerceri maximo, sed contineri minimo divinum est. Refleti longamente sobre esta frase a propósito do governo, de ser superior: não ter limite para o grande, mas concentrar-se no pequeno. Esta virtude do grande e do pequeno chama-se magnanimidade, e, cada um na posição que ocupa, faz com que coloquemos sempre a vista no horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É dar seu valor às coisas pequenas no marco dos grandes horizontes, os do Reino de Deus”, diz o papa em sua entrevista a Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica.
Mostrar em atos muito mais do que dizer. Essa seria a grande perspectiva de um pastor? Andrea Riccardi lembra que a ideia de que Bergoglio era um pastor surgiu logo nos primeiros anos do pontificado. Porém, havia também narizes torcidos porque saía de cena um papa teólogo, Bento XVI, talvez o maior deles, e entrava um pastor. É como se a pastoralidade fosse algo apartado da teologia.
Francisco tem provocado a pensarmos uma outra teologia, uma teologia encarnada e estreitamente ligada à vida concreta, típica de uma Igreja em saída. É como em 2019, por ocasião do encontro promovido pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional – Seção de São Luís, em Nápoles, quando diz que a teologia deve ser “não apologética, não os manuais – como ouvimos: evangelizar. No centro está a evangelização, o que não significa proselitismo”.
Almoço no primeiro Dia Mundial dos Pobres, instituído por Francisco em 2017
(Foto: Vatican Media)
Papa Francisco recebe a imagem da "Mãe-Terra", levada a Roma pelos indígenas da Amazônia (Foto: Genni Lloris)
Para Francisco, “apreender sensibilidades novas: este é o desafio”. É por isso que promove o diálogo entre os sujeitos, entre a teologia e as ciências, entre os crentes de outras religiões. “O diálogo como hermenêutica teológica pressupõe e comporta a escuta consciente”, observa.
Este diálogo coloca aproxima novamente católicos e muçulmanos. Enquanto muito ainda se falava dos riscos e limites de uma aproximação com os seguidores de Maomé, Francisco deixa de lado os debates cismáticos e se coloca em movimento. Para ficar somente em um exemplo mais recente, lembremos da visita ao Bahrein, no fim de 2022, uma viagem impensável há alguns pontificados.
Na entrevista à IHU On-Line em 2015, o jornalista e vaticanista Austen Ivereigh usa estes para defender que Francisco era, sim, um reformador. Em certa medida, também porque sublimou a discussão entre teologia e pastoralidade, colocando o que é realmente importante no centro. “Como Santo Inácio, Francisco está buscando restaurar na Igreja a orientação missionária e voltada para fora, que é típica dos jesuítas”, pontuou. E claro que muito dessa perspectiva vem de sua formação, do contexto em que se forma, e da teologia pela qual vê o mundo. Discípulo de Juan Carlos Scannone, Francisco bebe na Teologia do Povo, o que o leva justamente ao trazer o povo ao centro.
“Desde que apareceu na sacada de São Pedro, depois da sua eleição, o Papa Francisco realizou gestos simbólicos, deu entrevistas, falou como chefe da Igreja e publicou uma espécie de 'roteiro' de seu pontificado na exortação Evangelii Gaudium, que, em não poucas características, recordam a Teologia do Povo argentina”, Juan Carlos Scannone, em entrevista concedida à IHU On-Line, em 2015.
Se Francisco é um grande reformador ou não, apenas o tempo dirá. Mas o que parece ser ponto pacífico entre os vaticanistas, já desde 2013, é que Bergoglio é um homem do Concílio Vaticano II. Pela primeira vez, temos um papa que, embora não estivesse nas audiências conciliares, respira seus ares e está disposto a pôr em movimento o espírito de suas sessões que, por vezes, ultrapassa os documentos daí surgidos. O historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Universidade Villanova, escreve a respeito do tema. Em 2015, ele diz: “João Paulo II e Bento XVI eram homens do Concílio Vaticano II e seus pontificados estavam empenhados em corrigir as trajetórias do Concílio. Francisco aceita o Concílio como um dado fundamental da Igreja de hoje”.
Muito embora seja hoje sabido que a "reforma de Francisco" é mais sutil do que se imaginava nos primeiros anos, não há como negar que todos esses momentos estão embebidos no Vaticano II. O que também gera oposição. O próprio Faggioli, no discurso de abertura de um congresso para um grupo de bispos dos Estados Unidos em 2022, enfatizou que muito da oposição a Francisco coaduna justamente com a oposição ao Vaticano II.
“O pontificado de Francisco está em batalha, no nível teológico, em grande parte e principalmente devido à sua recuperação do Vaticano II. O que está em jogo não é apenas a comunhão com o Bispo de Roma, mas também a viabilidade da tradição magisterial e intelectual católica”, analisa Faggioli.
Para mergulhar fundo e perceber as pegadas do Vaticano II no modo Francisco de conduzir o pontificado, é preciso olhar com vagar seus gestos. Mas, para quem busca um referencial mais duro, basta olhar para os documentos produzidos. Evangelii gaudium é uma espécie de programa do pontificado, como Faggioli e outros defendem. O que se vê a partir daí é uma espécie de operacionalização de um Igreja em saída, um hospital de campanha, como diz o papa, que tem em seu centro o Evangelho.
Saiba mais sobre Evangelii gaudium tendo missão em perspectiva nessa edição do Cadernos Teologia Pública.
Nessa outra edição do Cadernos Teologia Pública, o enfoque é a partir do Vaticano II.
Lumen fidei é tomada por muitos como a primeira carta encíclica de Francisco. É importante ter em mente, no entanto, que esse documento é escrito a quatro mãos, tendo as digitais de Bento XVI.
Assim, é mesmo em Laudato si’ que Francisco se coloca efetivamente como pontífice. Mas ele não escreve o documento sozinho. Muito mais do que um documento apostólico com orientações doutrinárias, esta encíclica é um alerta para toda humanidade – lida até por muitos como um manifesto – sobre a crise ambiental e a necessidade do cuidado da casa comum. Para tanto, o papa vai à ciência e promove na prática aquele diálogo que ele incita através de sua visão muito particular de teologia.
Assim, em Laudato si’ Francisco traz a voz de cientistas consultados por ele. Afinal, o desejo é por uma Igreja em saída. Francisco agora vai ao mundo e, diante dos problemas, conclama a todos, católicos ou não, a pensar saídas.
A repercussão é positiva. O biólogo Joshua Rosenau, em entrevista à IHU On-Line em 2015, disse que o documento representa uma "ética da terra" e um caminho saudável de desenvolvimento científico.
“A Encíclica se sai bem ao esclarecer por que essa negação por parte da ciência não merece um assento igual à mesa e como ela corre perigo de prejudicar a sociedade de modo geral. O Papa parece ter tomado a posição de que deveria dar ouvidos ao consenso da comunidade científica e explorar as consequências teológicas, filosóficas e morais desses achados, em vez de tentar rediscutir as últimas décadas de literatura submetida à revisão por pares”, avaliou Rosenau.
Laudato si’ também apresenta outro conceito: o de Ecologia Integral. Se nas ciências da terra e biológicas a ideia já vinha sendo trabalhada buscando trazer uma visão sistêmica para o mundo, na teologia o conceito parece cair muito bem com essa perspectiva de Francisco. Afinal, sua provocação é sempre para que os teólogos saiam de si mesmos e façam sua teologia no mundo. André Wénin, doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, chega a apontar convergências entre as escrituras e a encíclica. “Sua contribuição consiste menos em dizer o que se deve pensar do que esclarecer o que está em jogo para levar os leitores a pensar sua própria realidade à luz de uma palavra de homens na qual a Tradição reconhece o eco da palavra do próprio Deus”, apontou à IHU On-Line em 2015.
Porém, é claro que novas críticas surgem. É justamente por essa tomada de posição que Rosenau aponta que muitos acham que Francisco avança o sinal. Mas, enquanto a crítica sorve seu rancor em bibliotecas e gabinetes buscando argumentos no conservadorismo, Francisco surge e se solidifica como uma voz consciente na complexa geopolítica. É como se mostrasse que os problemas do mundo, a crise migratória, a degradação do planeta, o consumo desenfreado e a desigualdade socioeconômica fossem problemas de todos. E mais: vem fazendo disso o fulcro do debate teológico.
Em grande medida, é por isso que passa também a ideia de Economia de Francisco, inspirada na vida de Francisco e Clara de Assis, um grande encontro pensado a partir de economia, uma economia alternativa àquela que mata. O experiente economista Luiz Gonzaga Belluzzo diz que Francisco, em seus documentos, críticas e ações concretas, propõe uma quebra dos dogmas de fé, não da Igreja, mas da cartilha neoliberal.
Belluzzo vê na Economia de Francisco uma saída interessante na concepção de uma economia para a vida.
Se, por um lado, a crítica e a oposição podem imaginar que Francisco vai longe na abertura de seu arco teológico, figuras como o economista Luiz Gonzaga Belluzzo vê, em documentos como Fratelli tutti, um pleno alinhamento com aquilo que inspira a própria doutrina social da Igreja.
Como viemos destacando, desde 2013 o Papa Francisco tem levantado a voz para causas globais. E seu tom não é de divisão, como se falasse de coisas civis, fora da eclesialidade. Para ele, a Igreja está no mundo e os problemas do mundo também estão na Igreja. É como observou Alessandra Smerilli, religiosa e economista italiana, que hoje ocupa o cargo de secretária do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, quando de sua passada pelo IHU por ocasião do XVIII Simpósio Internacional A virada profética do Papa Francisco: a doutrina social da Igreja e o catecismo são indissociáveis. “Se vamos rezar, precisamos rezar sobre algo concreto. Se não, do que adianta rezar? As coisas não são separadas, são as obras e orações juntas”, observou, em conversa informal com IHU.
E quando se fala na voz erguida de Francisco ao mundo, é impossível não lembrar da cena em que ele, sozinho, consternado, põe-se em profunda oração para a bênção Urbi et Orbi, no período mais duro da pandemia.
O momento era duríssimo, milhares de mortos pela covid-19 em todo mundo, mas, ainda em meio a toda dor – e condolente com os que perderam entes queridos –, o papa não perdeu de vista a degradação do planeta. Afinal de contas, os vírus que saltam de seus habitats remotos e ameaçam a saúde humana são apenas uma face dos efeitos nocivos de nosso modo de vida e da nossa relação com a Terra.
No entanto, quando o mundo acreditava que já havia purgado suas piores faltas na pandemia, eclode uma guerra. Em pleno século XXI, depois de uma pandemia global, Rússia e Ucrânia se escarnam em ares de terceira guerra mundial. Embora para muitos esse confronto armado, iniciado há mais de um ano, parece ser distante, desde o começo Francisco tem se posicionado como um líder global. Não pela Rússia e nem pela Ucrânia, mas pela paz. “Quem faz a guerra coloca, à frente de tudo, interesses particulares e de poder. A Quarta-feira de Cinzas será um dia para ficar perto do sofrimento do povo ucraniano... e implorar a Deus o fim da guerra”, manifestou Francisco ainda no início de março de 2022, como recorda Marco Politi em artigo publicado no sítio do IHU.
Por outra lado, estudiosos da política internacional, e até clérigos sempre prontos para uma oposição a Bergoglio, criticam-no pelo seus silêncios, especialmente com relação à Rússia. O problema é que essas pessoas não entendem que a bandeira de Francisco não é a do militarismo, ele não segue a cartilha da política internacional, e sim o princípio evangélico da paz.
Enquanto isso, a guerra continua. Os líderes russos e ucranianos parecem cada vez mais dispostos a firmar posições, e seus aliados no Ocidente e Oriente parecem observar placidamente – ou espreitar, esperando o momento de seu bote.
E o papa? Ele segue com seus apelos, muito embora pareça ser bem pouco ouvido. Aliás, Francisco parece ser um dos poucos que parece de fato ver um certo esgotamento da Modernidade e seus valores tão propagados. Afinal, a guerra atual é um exemplo desse esgotamento. Como aponta Miguel Mellino, é como se um embrião dessas transformações estivesse sendo gestado, pronto para ruir tudo que conhecemos e concebemos.
Lorenzo Prezzi constata esse isolamento, como se Francisco gritasse e não fosse ouvido. "Sobre o tema da paz, do desarmamento nuclear, da redução do comércio de armas, da possível e perigosa conexão de dezenas de guerras ativas ou adormecidas, da urgência de bloquear o confronto Rússia-Ucrânia e da crescente tensão entre China e EUA, o Papa Francisco parece numa grande solidão", observa em artigo reproduzido pelo IHU. Constatação semelhante tem o vaticanista John L. Allen Jr, ao apontar "o perdedor mais óbvio na arena diplomática é o apelo por um acordo negociado para a guerra, uma proposta na qual absolutamente ninguém parece interessado – ninguém, isto é, exceto o expoente mais proeminente da ideia, o Papa Francisco".
Assim, a Igreja, no pontificado de Francisco, segue inserida nesse mar revolto de uma transição epocal marcada por descompassos e turbilhões. Descompassos governamentais, como aponta o jornalista e historiador Pablo Stefanoni, onde há uma desordem nos sistemas políticos que gravitam para manifestações antiprogressistas, isto é, "uma rejeição a um progressismo desqualificado como buenismo e denunciado como hipócrita porque seus promotores supostamente 'não vivem como pregam' e buscam cercear as liberdades por meio de novas inquisições ('Não nos deixam dizer nada, comer nada, fazer nada...')".
Por outro lado, os turbilhões socioculturais se avolumam por meio do que o teólogo José Casanova aponta como "pluralismo ético moral". Segundo sua percepção, "a questão religiosa hoje é fundamentalmente uma questão moral. (...) No Ocidente e em grande parte do mundo aprendemos a conviver com o pluralismo religioso, mas ainda não sabemos conviver com o verdadeiro pluralismo ético-moral. E é isso que está em questão hoje, nas guerras culturais globais. Na sociedade americana, o pluralismo religioso nunca foi um problema para a democracia, mas hoje o pluralismo ético moral é um problema para a sociedade americana, assim como para muitas sociedades democráticas europeias".
Mesmo quem não é crente tem ideia de um princípio cristão que diz que o pecado cometido pode ser perdoado se houver verdadeiro arrependimento e conversão. Mas quando esse pecado destrói vidas e fere corpos e corações com chagas muito difíceis de cicatrizar? Estamos falando dos abusos sexuais cometidos por padres e bispos durante anos. Muitas das vítimas, inclusive crianças, tiveram de conviver por décadas, em silêncio, com os agressores. Pior: encontravam-se sob o manto da proteção dos seus superiores.
No pontificado de Francisco, os casos de abusos voltaram à tona. Enquanto ele parecia imbuído nas transformações, casos pipocavam pelo mundo e, em ações pontuais, a Santa Sé agia. O próprio papa emérito Bento XVI chegou a publicar o artigo “A Igreja e os abusos sexuais”, reproduzido pelo IHU. Ainda assim, parecia, ou se queria ver dessa forma, que eram casos isolados.
Porém, foi em uma visita ao Chile que Francisco vê as feridas escarnadas desse processo de acordar abusadores na Igreja. Em 2018, ele defendeu dom Juan Barros das acusações de encobrimento do ex-pároco de El Bosque, Fernando Karadima. Este era um sacerdote influente de Santiago que estuprou durante anos ao menos quatro jovens de famílias conservadoras, como reconheceram a justiça civil e a eclesiástica (seus crimes prescreveram e ele nunca foi condenado). O papa chegou a pedir provas às vítimas.
Ultrajadas, as vítimas, com o cardeal Sean O’Malley, nomeado pelo papa presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, conseguiram confrontar Francisco. E ele admitiu: “Eu errei”, como detalha reportagem reproduzida pelo IHU. Ele não só volta atrás como recebe as vítimas. Karadima é expulso.
O ato do pontífice é inédito, pois, tanto quanto qualquer cristão, ele reconhece seu erro, seu pecado. Depois, busca corrigir e converte-se. Não é precisa ser vaticanista para se imaginar a repercussão interna que isso tem.
Os casos de abusos não cessaram. A cada dia se descobrem casos nos EUA e na Europa, como o do artista internacionalmente reconhecido Pe. Marko Ivan Rupnik, jesuíta responsável pelos mosaicos da Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Ele abusou de mulheres durante anos, tendo permanecido encoberto. Ainda assim, Francisco, como qualquer pecador, assume e reconhece a culpa da Igreja. Reconhece que o perdão, embora a mais alta ação de um cristão, ainda é pouco para esses casos.
Isto acontece em uma instituição onde as transformações quanto ao espaço feminino são pífias. Embora o papa reconheça que “a presença de mulheres na Igreja não é uma moda feminista, é um ato de justiça”, como disse em entrevista à CNN em Portugal, para muitos as mudanças são tímidas demais.
Robert Mickens, em artigo reproduzido pelo IHU, é um desses críticos. “Sim, há mais funcionárias na Cúria Romana desde 2013, quando ele se tornou papa. Mas o número nas altas posições não é significativo. É marginal”, pontua. "Francisco está dançando cuidadosamente em torno da questão do papel das mulheres na Igreja. Não está claro o quão sério ele realmente é, e quão longe ele provavelmente irá, para encaminhá-las para a tomada de decisões e outros cargos ministeriais".
Ainda assim, de novo, como nos casos de abusos, Francisco tem reconhecido os erros do passado. E, sem qualquer problema em rever suas posições, coloca as questões de gênero como um tema a ser tratado.
Ainda há uma perspectiva que talvez perpasse todas em relação ao Papa Francisco: a escuta. Como ele disse em uma das mensagens alusivas ao Dia das Comunicações, é preciso ouvir com o ouvido do coração.
E essa escuta, que Francisco demonstrou em inúmeras situações praticar tão bem, está no cerne do que ele parece querer deixar como marca de seu pontificado: a sinodalidade. Além de promover inúmeros sínodos, em muitos ainda gerando documentos importantes, como o Sínodo da Família, e poucos estudados como Amores laetitia, embora muito criticados, Francisco os anima para que não perca a centralidade da escuta.
O Sínodo Especial para a Amazônia é um dos exemplos. Nele, a Igreja se pôs a ouvir os povos da floresta. “As sínteses das diferentes escutas, consultas, seminários, assembleias e rodas de conversa das comunidades e grupos interessados dos nove países que fazem parte deste bioma somam mais de 1.500 páginas”, observa Paulo Suess em entrevista concedida ao IHU, na qual trata do documento preparatório como parte do processo sinodal.
Claro deve estar que tudo isso gera oposição. Estamos diante das resistências domésticas. Porém, o próprio Francisco define os sínodo não como uma reunião de bispos, mas como um processo. Ou seja, esses bispos ouvem o povo de suas dioceses e leva as reflexões sobre determinado tema à Santa Sé. O problema que parece haver é que a Igreja parece ter se esquecido desse modus operandi com origens no Vaticano II.
Como defende Massimo Faggioli, em artigo publicado pelo IHU, a sinodalidade do papa é uma escolha política. Assim, de novo, ele desacomoda toda estrutura eclesial e promove o Sínodo sobre a Sinodalidade, pondo toda a Igreja em saída e a pensar sobre si mesma. É um processo que não está fechado e que talvez nunca se feche.
Claramente, essa é uma opção de Francisco de como ser Igreja, um hospital de campanha que sai de si mesmo, ouve e acolhe, sendo capaz que rever seus próprios erros e, também, de se ver num mundo em transformação. Mas não só, pois essa opção consiste em fazer uma escolha pelos pobres, marginalizados, pelo planeta e todas as formas de vida, por uma economia que promova a vida e, essencialmente, uma opção pelo segmento de Cristo, a partir do que diz o Evangelho.
Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Urbaniana e subsecretário adjunto da Congregação para Doutrina da Fé, elabora melhor essa Opção Francisco como um conceito para que, ao menos, tentemos entender e acompanhar os movimentos do atual pontificado. No entanto, antes de nomear o conceito, é preciso senti-lo, “aceitar que estamos em uma mudança de época, que um certo modo de ser fiel acabou, que devemos encontrar juntos um modo diferente para sê-lo hoje. Absolutamente compartilhável”.
Em certa medida, é um modo diferente de ser Igreja. Como ser? Com Francisco, conforme pontua Matteo, essa é uma construção a que todos somos chamados a participar.
“A opção de Francisco é a mais pertinente para dar um futuro ao cristianismo e um cristianismo para o futuro. E se o medo não é infundado, o antídoto para o medo não está longe de nós: é exatamente aquela disponibilidade ao gesto do sonho, com a qual começava a citação do Papa Francisco; ‘sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação'" (EG 27).
Assim, nesses dez anos de pontificado, talvez essa Opção Francisco não seja somente uma questão de escolha, mas a possibilidade de resposta à crise da Igreja e do cristianismo aos impactos da transição epocal que caracteriza o mundo atual. E para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, mergulhar nesse tema é fundamental. Por isso, ele está promovendo o ciclo de estudos “Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”.
A primeira conferência será em 18-30-2023, uma mesa de debates com mediação do Prof. Dr. Pedro A. Ribeiro de Oliveira, da coordenação Nacional do Movimento Fé e Política, tendo como debatedores o Prof. Dr. Eduardo Hoonaert, do Centro de Estudos em História da Igreja – CEHILA, e o Prof. Dr. Paulo Suess, do Conselho Indigenista Missionário – CIMI. As atividades, feitas por videoconferência, vão até o final do semestre.
Acesse mais detalhes no site do IHU