12 Janeiro 2023
A historiadora Blandine Chelini-Pont analisa a dimensão sistêmica dos escândalos que afetam a Igreja e fala de casos envolvendo outras religiões no mundo.
Blandine Chelini-Pont é professora de história contemporânea na Universidade de Aix-Marseille e membro associado do Groupe sociétés, religions, laïcités (GSRL-EPHE). Especialista em interações culturais, políticas e jurídicas da religião, especialmente nos EUA, ela é coautora, entre outras obras, de Géopolitique des religions: un nouveau rôle du religieux dans les Relations internationales? (Le Cavalier bleu, 2019). A tradução é de Luisa Rabolini.
A entrevista é de Gaétan Supertino, publicada por Le Monde, 11-01-2023.
O episcopado francês reconheceu a natureza sistêmica das violências sexuais na Igreja Católica. Por que esse adjetivo é pertinente?
Em suas resoluções de novembro de 2021, a Conferência Episcopal Francesa reconhece que aquelas violências foram possibilitadas por um “contexto global”, no qual o peso das “práticas” e das “mentalidades” permitiu que se perpetuassem, que não fossem denunciadas nem sancionadas.
O peso de que falamos, entre o culto do sigilo e da impunidade, vem de longe. O medo do escândalo acompanha toda a história medieval da Igreja Católica. A má fama, a mauvaise réputation, só poderia corromper a "sociedade perfeita", aquela visão da instituição que justifica seu domínio sobre as almas e os territórios, e a sua justiça.
A "má reputação" preside a distinção, que surge entre os séculos XII e XIII, entre os chamados crimes "ocultos" e os notórios crimes do clero. A lógica é a seguinte: os vícios não conhecidos do padre, quaisquer que sejam, são tratados na discrição do foro interno (juízo); com inquérito discreto, correção fraterna a portas fechadas e confissão, sacramento carregado de sigilo absoluto. Quanto ao crime notório, aquele da praça pública, que causa o escândalo (ou os sarcasmos!) do povo cristão, exige um “foro externo” edificante: o processo por infâmia, a penitência pública e humilhante, a excomunhão, a interdição do exercício presbiteral, além das interdições civis definitivas e das multas.
O crime notório mais frequentemente julgado é o homicídio, tido como o mais terrível. Nos outros casos, a justiça do escândalo público, que deve preservar ou restabelecer a dignidade da Igreja, sempre era contrariada pela lógica da impunidade civil do clero e de seu prestígio social.
Você fala da Idade Média, mas a Igreja não mudou desde então?
O medo do escândalo permaneceu em outra forma. A progressiva definição de "crime sexual" no direito da Igreja, que não distingue a imoralidade da criminalidade, não mudará a cultura do oculto e da boa reputação.
O código de 1917 contenta-se, por exemplo, em atingir com as mais terríveis punições canônicas todo padre em “coabitação pública’’ e toda pessoa católica reconhecida culpada pela justiça civil tanto de adultério como de estupro, incesto, relações consanguíneas, de relações com menores, da bestialidade, do proxenetismo. Ainda estamos na lógica do escândalo público, em que a (eventual) exclusão do padre condenado é o meio para evitar a infâmia.
Uma Instrução do Santo Ofício recentemente exumada por pesquisadores, que havia sido enviada a alguns bispos no início da década de 1920 (com a menção "para ser mantida em segredo, para não publicar") descreve um procedimento que poderia ter servido, talvez, como o primeiro manual de regulamentação para a violência sexual. Em sua linguagem, obriga toda pessoa sexualmente "solicitada" por um padre ou um religioso a denunciá-lo.
Mas duas importantes advertências moderam essa indicação. A Instrução faz uma equivalência entre todos os crimes que julga "contra a natureza" com um parágrafo inteiro sobre o crimen pessimum, o ato de obscenidade, que inclui a relação com pré-adolescentes, relações homossexuais e bestialidade. Além disso, nunca teve uma real publicidade, nem com o conjunto dos bispos, nem junto ao povo cristão. Tudo foi guardado a sete chaves para que o procedimento se realizasse no maior sigilo – e, melhor dizendo, não se realizasse.
Ao contrário dos protestantes e ortodoxos, a Igreja Católica também impõe o celibato e a abstinência ao seu clero. Na sua opinião, é possível estabelecer uma relação com as violências sexuais?
Afirmar que esse "estado" seja o motivo das violências sexuais contra pessoas em situação de vulnerabilidade me parece um julgamento errado. O incesto é o mais frequente dos crimes contra menores na sociedade, e aí não se trata de celibato nem de abstinência. Além disso, se pode também não manter a abstinência sem por isso se tornar um predador.
O relatório extremamente completo e documentado da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja Católica (CIASE) não confirma e não prova uma ligação clara entre celibato, abstinência e abusos sexuais. Entre os abusadores católicos, encontram-se por um lado os membros do clero (4,6% do total relacionado no inquérito sobre a população em geral incluída no relatório), que podem ser padres ordenados ou religiosos consagrados, a priori celibatários e abstinentes, mas também potencialmente diáconos casados. Mas também há pessoas em relação com a Igreja (2,1%) que não estão nem entre os primeiros nem entre os segundos.
Além disso, o relatório aponta, a partir de entrevistas com padres condenados, ou seja, 35 pessoas, que alguns apresentam um comprovado "distúrbio de pedofilia" segundo os padrões médicos e que outros são deprimidos crônicos ou eles mesmos sofreram violências sexuais. O status de "autoridade espiritual" encarnado pelos padres também não deveria ser posto em discussão? O relatório da CIASE define claramente as violências sexuais como abuso de poder, cometido por pessoas que representam a autoridade da instituição, que dela se valem e refletem sua legitimidade para eliminar as resistências e garantir o silêncio.
Eu também diria que é a polivalência passada da autoridade do clero e seu vasto campo de ação que favoreceu o risco. Voltando ao relatório do CIASE, pode-se constatar que a extensão dos abusos pedófilos tem diminuído ao longo do tempo porque o clero tem uma posição social menor. A criminalidade contra menores dominou num período em que a Igreja tinha forte influência paroquial, educativa e até familiar, com a figura do padre amigo de família. Essa forma de violência diminuiu à medida que a população clerical se tornou residual, que a autoridade educacional passou para as mãos dos leigos e a socialização católica se transformou ou desapareceu.
Claro que os números dos abusos aparecem mesmo depois da década de 1990. Mas a legislação se tornou mais precisa e a palavra se libertou. Além disso, o perfil das violências na esfera religiosa se mudou imperceptivelmente para uma população adulta e feminina, e para as comunidades de vida religiosa, em particular as "novas comunidades".
Outras comunidades religiosas também estão envolvidas em escândalos sexuais?
Para a França, a pesquisa sobre a população geral que acompanha o relatório Sauvé incluiu pessoas "com responsabilidade religiosa" de outras confissões. O resultado é 0,6% de todos os casos levantados. Qual é a principal razão para essa percentagem tão baixa? A minoria demográfica, a diferença institucional ou algum outro motivo? Difícil de responder.
As outras investigações internacionais mais aprofundadas dizem respeito apenas à Igreja Católica, a ponto que se possa pensar que seja a mais afetada, ou mesmo a única. Mas também pode-se pensar que a liberdade de expressão e a revelação da amplitude da criminalidade contra menores e das outras violências sexuais institucionais só começaram recentemente, e apenas nas democracias ocidentais, onde a Igreja Católica esteve e ainda está muito presente.
Sabemos pela mídia que crimes sexuais certamente também existem em outras instituições religiosas. Por exemplo, professores de escolas corânicas são acusados de práticas semelhantes: atualmente existe um verdadeiro drama nacional sobre esse assunto em Bangladesh. Processos recentes estão em andamento na Turquia, Paquistão, Argélia, Marrocos, Mali, Senegal. Em 2019, um premiado documentário israelense de Yolande Zauberman descreveu os danos dos crimes contra menores sobre jovens no bairro ultraortodoxo de Bnei Brak, na periferia de Tel Aviv.
Muito recentemente, outro documentário (e livro), La loi du silent, de Wandrille Lanos e Elodie Emery, destacou os assédios sexuais de mestres budistas tibetanos na França e na Europa, incluindo aqueles sofridos por mulheres sob a influência espiritual de Sogyal Rinpoché, bem conhecido em todo o mundo. Este último foi várias vezes denunciado e questionado pela justiça estadunidense na década de 1990. Mas o Dalai Lama só o desonrou somente algum tempo antes de sua morte [em 2019] após uma denúncia coletiva de ex-discípulos.
Você conhece bem a situação religiosa nos Estados Unidos, onde numerosas religiões convivem lado a lado. Como é a situação no protestantismo estadunidense?
Sabemos que foi nos EUA que a Igreja Católica foi a primeira a acumular os escândalos de pedofilia, os processos e a vergonha social, a ponto de ter despertado uma velha memória anticatólica que havia desaparecido, com suas lendas obscuras. Além disso, o escândalo dos centros budistas tibetanos começou nos Estados Unidos. E são inúmeros os casos de violências sexuais em comunidades “fechadas” de tipo sectário, e que atingem principalmente as mulheres.
Durante muito tempo as igrejas protestantes se escandalizaram - e continuam a se escandalizar - com as "escapadelas" de seus pastores, secretamente homossexuais e que ao mesmo tempo pregavam a castidade conjugal, ou levavam vidas dissolutas pregando a continência adolescente, que traíam suas esposas, até com profissionais, ou praticando swing.
Mas agora não se trata mais desse tipo de coisa. Há dois ou três anos, as igrejas protestantes também entraram na tempestade dos escândalos dos crimes contra menores. Jornais do Texas revelaram em 2019 um escândalo muito grande envolvendo 700 pastores e educadores da Southern Baptist Convention [SBC], uma rede de 47.000 igrejas e quinze milhões de membros. O Houston Chronicle publicou uma série intitulada "Abuse of Faith" (Abuso de fé), investigando abusos contra menores durante um período de vinte anos, desde a posse de fotos de pedofilia até o estupro. E ali se encontram os mesmos ingredientes da Igreja Católica: ausência de disposições preventivas, transferências de educadores, negação total e sigilo.
Neste verão, o escândalo se transformou em um "apocalipse", nas palavras de um dos responsáveis da SBC. Que teve que publicar um documento de 205 páginas listando as centenas de dirigentes e membros batistas acusados ou julgados culpados. Fez isso por obrigação, depois de ter procurado resguardar-se de qualquer responsabilidade em caso de abusos nas igrejas locais, e de ter explicado que, devido à sua autonomia, não tinha qualquer responsabilidade sobre a sua política de prevenção.
Em 2018, também foi publicado um dos primeiros estudos empíricos sobre violências sexuais nos Estados Unidos nos ambientes cristãos protestantes, que examinou os artigos da imprensa sobre as prisões. Fez o levantamento de 326 casos entre 1999 e 2014.
Outro estudo sociológico sobre os abusos contra menores nas igrejas protestantes, publicado em 2021, baseou-se em estimativas de três das principais companhias seguradoras confessionais que seguram quase 160.000 igrejas. Essas companhias relataram um total de 7.095 pedidos de indenização por violências sexuais cometidas por membros do clero, funcionários de igrejas, membros da congregação ou outras pessoas envolvidas nesses ambientes entre 1987 e 2007. Esses relatórios indicam uma média de 260 denúncias por abuso sexual por ano.
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Violência sexual, uma especificidade católica? As investigações internacionais mais aprofundadas dizem respeito apenas à Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU