Economia de comunhão é alternativa à voracidade de um mercado predador. Entrevista especial com Alessandra Smerilli

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Por: João Vitor Santos | Tradução: Mariana Szajbely | 02 Junho 2018

Quando o papa Francisco disse que a economia mata, muita gente torceu o nariz. E não foram só operadores de Wall Street. A economista Alessandra Smerilli, que integra a congregação de religiosas salesianas, foi uma delas. “Também criticava o Papa pelas coisas que ele dizia sobre economia, porque pensava que não tinham validade científica”, recorda. Afinal, como seria possível pensar em saídas na própria economia, já que ela mata? “Depois, fui me dando conta de que, pelas transformações que vão ocorrendo no mundo, as categorias econômicas atuais já não estavam dando conta e há necessidade de categorias novas”, completa. Assim, ela percebe que a economia nem sempre pode levar à morte, como é o caso da economia de comunhão. “A empresa de economia de comunhão divide os lucros em três partes: uma parte é investida na própria empresa para desenvolver-se, outra parte é empregada na formação de uma nova economia e a terceira parte, na ajuda aos pobres. Quanto mais a empresa cresce, mais se coloca em comum de forma útil”, explica.

Na entrevista que concedeu presencialmente à equipe de IHU On-Line, Alessandra diz que é preciso ver o mercado não apenas como espaço de exploração entre fortes e fracos. Ele pode ter outras faces. “O problema é que tipo de empresa está no nosso mercado. A economia positiva é aquela que vê a empresa que não trabalha somente para maximizar o próprio lucro, mas por um bem comum”, avalia. Para tanto, sugere a transformação da racionalidade econômica, abrindo-se para outras perspectivas, como a we-rationality. “Segundo acredita Adam Smith, se cada um pensa no próprio interesse, tudo funciona bem. A we-rationality diz que pode ser racional pensar no meu e no seu interesse juntos”, sugere.

Assim, nesse particular, compreende que as palavras e ações de Francisco podem ser inspiradoras para se conceber categorias econômicas que revertam o quadro de desigualdades que vivemos. Para a economista, o Papa tem trazido o Ensino Social da Igreja como central nesse debate. “Não é primeiro a Liturgia e depois o Ensino Social, ambos têm a mesma importância. Se não me ocupo do social, não sei também rezar”.

Alessandra Smerilli | Foto: João Vitor Santos/IHU

Alessandra Smerilli é italiana, religiosa da Congregação Filhas de Maria Auxiliadora (salesianas). É professora de economia política e elementos de estatísticas na Pontifícia Faculdade de Ciências da Educação "Auxilium" de Roma. Doutora em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de East Anglia (Norwich, Reino Unido), também é PhD em Economia pela Faculdade de Economia na "Sapienza" de Roma. Ainda é membro fundador e professora da Escola de Economia Civil e membro da Comissão de Ética. Está publicando o volume Carismi, economia, profezia: la gestione delle opere e delle risorse (Carismas economia, profecia: a gestão das obras e dos recursos, em tradução livre), pela editora Rogate.

A professora participou do XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, promovido pelo IHU, apresentando a conferência As grandes tendências econômicas sociais que caracterizam o mundo contemporâneo, que pode ser assistida na íntegra no vídeo a seguir:

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora define esses cinco anos de pontificado de Francisco?

Alessandra Smerilli – Os cinco anos desse pontificado, para mim particularmente, parecem uma lufada de ar fresco, como se a Igreja tivesse aberto as portas e por ela tivesse entrado um vento. De outra parte, me parece um pontificado que desestabiliza, que tira a segurança e que abre caminhos novos.

IHU On-Line – E por que tira a segurança? O que desestabiliza?

Alessandra Smerilli – Penso que é aquilo que está acontecendo na Itália, por exemplo, que tem estruturas na Igreja que vêm permanecendo por tanto tempo. Estruturas presas a algumas tradições, mas não aquela sadia, aquela que deriva dos apóstolos. São tradições do modo de fazer, que, às vezes, significa estar muito pouco perto das pessoas, constituindo, assim, uma Igreja muito fechada em si mesma. Por exemplo, pela primeira vez, depois de tantos anos, a procissão de Corpus Christi, que era uma grande tradição realizada desde a Igreja de San Giovanni até a Basílica de Santa Maria Maggiore, este ano ocorrerá em Ostia, na periferia de Roma.

IHU On-Line – E como são as reações a mudanças como essa, na Itália?

Alessandra Smerilli – (risos) Desestabiliza. Mas quem participava desta procissão? Muitos religiosos, religiosas, sacerdotes e as pessoas engajadas nas dioceses. Em Ostia, vai ser o povo de Deus [1]. As pessoas simples, que estão longe da estrutura da Igreja, estão muito contentes. Já as pessoas que estão presas às estruturas, estão desestabilizadas, perdidas.

IHU On-Line – Por ações e lógicas como essas, podemos dizer que esse pontificado está transformando o Ensino Social da Igreja [2]?

Alessandra Smerilli – Não acredito que esteja transformando, porque há muito de continuidade nos princípios. Os documentos apostólicos Caritas in Veritate [3] [de Bento XVI], Evangelii Gaudium [4] e Laudato Si' [5] [ambos de Francisco] não têm diferenças de princípios fundamentais. O que muda é o modo, o jeito e, talvez, os destinatários, porque os ensinamentos do papa Francisco são muito fáceis de compreender, e isso ajuda as pessoas a se interessarem pelas questões sociais.

IHU On-Line – Então, assim, ele populariza e dissemina os princípios do Ensino Social da Igreja, fazendo uma espécie de tradução da tradição?

Alessandra Smerilli – Sim, é uma tradução. Aquilo que muda com o papa Francisco talvez seja a importância dada para o Ensinamento Social. Não é o princípio, mas o fato de que é visto como uma questão importante para a Igreja, e não é secundária. Não é primeiro a Liturgia e depois o Ensino Social, ambos têm a mesma importância. Se não me ocupo do social, não sei também rezar.

IHU On-Line – Há, então, uma emergência maior de compreender o Ensino Social da Igreja hoje do que em outros tempos?

Alessandra Smerilli – Sim, até porque o momento histórico que vivemos é que demanda isso. Estamos numa época de grande transformação econômica e social e por isso temos uma necessidade muito maior de um pensamento que coloque a pessoa e o desenvolvimento humano integral no centro. E isso muito mais do que em outros momentos que talvez eram muito mais estáveis. Hoje, estamos num tempo de rápida transformação e há necessidade de estar dentro dessa transformação como pessoas que vivem o Evangelho.

IHU On-Line – Em razão disso, podemos afirmar que Francisco sabe muito bem ler o tempo em que vivemos?

Alessandra Smerilli – Sim. O papa Francisco foi o primeiro a falar da cultura do descarte, de uma economia do mal, quando ainda não era claro que vivemos isso em nosso tempo.

IHU On-Line – Mas como isso repercute? As pessoas compreendem e assimilam o que ele está falando?

Alessandra Smerilli – As pessoas “normais” (risos), as pessoas comuns, compreendem muito bem, porque vivem esse problema na própria pele. Na Itália, temos muitos desempregados, tantos problemas econômicos e as pessoas vivem isso e compreendem muito bem. O papa Francisco, em geral, não é compreendido em toda a Itália, sobretudo nos temas sobre imigrantes, por exemplo. Sabem que é uma questão de futuro, de horizonte, mas não compreendem. Mas alguns bispos da Igreja na Europa – posso falar da Itália –, que vivem em região de fronteira, sobretudo no sul da Itália, compreendem muito bem, porque vivem em locais que têm muitos problemas. Na Itália, a Igreja ainda representa uma das poucas instituições que têm condições de coordenar todas as ações de outras instituições para ajudar, apoiando ações de caridade e assistência aos necessitados.

Entre os intelectuais e os economistas, o papa Francisco não é muito compreendido, porque acham que ele trata algumas coisas de uma forma muito simples. É verdade que em alguns casos os discursos econômicos são muito complexos e ele simplifica demais, mas o Papa não é um economista. A tarefa dos economistas é saber ler a realidade e são justamente esses intelectuais que têm de dar validade científica ao que o Papa fala, sem a necessidade de que ele mesmo tenha de fazer isso.

Em meu trabalho, também criticava o Papa pelas coisas que ele dizia sobre economia, porque pensava que não tinham validade científica. Mas depois estudei, tentando entender, e fui me dando conta de que, pelas transformações que vão ocorrendo no mundo, as categorias econômicas atuais já não estavam dando conta e há necessidade de categorias novas. Por isso, o papa Francisco pode ser uma inspiração para os economistas pensarem outras formas de economia.

Pela minha experiência, o Papa é muito aberto. No começo, ele falava da economia como algo negativo, e nós, com um grupo de pessoas, enviamos uma mensagem a ele, demonstrando que a economia poderia ser muito positiva, de que não existe só uma economia que mata. Ele foi muito receptivo e organizou um convênio para estudos sobre esse tema. Inclusive, organizou um simpósio para tratar do tema. Por isso o considero muito aberto às propostas.

IHU On-Line – Detalhe, por favor, essa economia positiva, essa proposta que fez chegar até Francisco.

Alessandra Smerilli – O mercado, como dizia o papa Bento XVI [6], na sua encíclica Caritas in Veritate, não é simplesmente um espaço de exploração dos fortes sobre os fracos, é também um instrumento e pode se apresentar de vários modos. Se vivermos o mercado colocando no centro a virtude, pode se tornar um espaço de cooperação, de troca, de crescimento. Se não há empresas, se não se cria riqueza, também é difícil redistribuí-la.

O problema é que tipo de empresa está no nosso mercado. A economia positiva é aquela que vê a empresa que não trabalha somente para maximizar o próprio lucro, mas por um bem comum. E são tantas empresas que fazem isso e conseguem estar no mercado e ter também ganhos. Então, não se precisa renunciar a eficiência para estar no mercado de certo modo. Essas empresas que pensam o mercado de outro modo devem ser valorizadas, narradas para que possam contaminar o mercado.

IHU On-Line – Poderia nos destacar alguns exemplos?

Alessandra Smerilli – Aqui no Brasil nasceu a economia de comunhão. É o caso do Movimento dos Focolares [7]. São empresas nascidas em 1991, quando Chiara Lubich chegou em São Paulo de avião e viu os grandes edifícios e as favelas em volta. Ela pensava que não poderia ser possível uma economia que oprime, que exclui. Mas não basta apenas doar dinheiro para resolver o problema. É preciso criar empresas que gerem riqueza e valor e que esse valor seja partilhado.

A empresa de economia de comunhão divide os lucros em três partes: uma parte é investida na própria empresa para desenvolver-se, outra parte é empregada na formação de uma nova economia e a terceira parte, na ajuda aos pobres. Quanto mais a empresa cresce, mais se coloca em comum de forma útil para ajudar os pobres. E essa ajuda ao pobre se faz criando trabalho para ele, contratando pessoas desempregadas, excluídas. É um sistema que funciona.

IHU On-Line – Voltando a essa proposta que fizeram ao Papa, pode nos detalhar como essa perspectiva de economia de comunhão foi recebida?

Alessandra Smerilli – Sobretudo no encontro dos movimentos populares, fica claro que existem muitas formas, não somente a economia de comunhão, mas tantas outras. É com o papa Francisco que nasceram os encontros com os movimentos populares. E todos esses movimentos estão se unindo para promover no final do ano, na Itália, um evento que se chamará Profetic economy [8] [economia profética, em tradução livre]. São ações importantes para dar visibilidade àquilo que o Ensino Social diz.

IHU On-Line – Esses movimentos de acolhida da Igreja contribuem também para a constituição de um novo campo, novas perspectivas de estudos dentro das Ciências Econômicas?

Alessandra Smerilli – Sim, em torno da economia de comunhão, por exemplo, há um grupo de intelectuais. E se estabelece uma relação muito linda, porque os intelectuais podem ver, na prática, uma expressão do que eles fazem na teoria. E, ao mesmo tempo, as empresas podem se apoiar nesses estudos teóricos dos intelectuais. Assim, não vão adiante somente pela experiência, mas também pelas referências teóricas. E isto é uma bela relação.

IHU On-Line – A senhora trabalha com o conceito de we-rationality? No que consiste e como pode contribuir para compreender o conceito de economia de solidariedade, ou economia de comunhão?

Alessandra Smerilli – Os estudos da we-rationality são muito teóricos, mas é uma teoria necessária, porque toda a ciência econômica foi construída sobre alguns pilares. Um deles, por exemplo, é o sujeito visto como um indivíduo singular, que tem preferências e um modo de escolha; é aquilo que na economia se chama individualismo metodológico, individualismo como um método. Então, para poder falar de experiências diversas e de experiências também comunitárias, é preciso colocar na base da Ciência Econômica um sujeito mais relacional. We-rationality quer dizer que existe um modo racional de escolher que leva em conta a comunidade e que, tantas vezes, escolhas feitas pelo bem da comunidade podem ser racionais também desde um ponto de vista econômico. Para fazer isso, é preciso transformar o conceito de racionalidade econômica.

Segundo acredita Adam Smith [9] , pai da economia, se cada um pensa no próprio interesse, tudo funciona bem. É importante que cada um pense em maximizar o seu próprio interesse. Isto é o coração da teoria econômica dele. A we-rationality diz que pode ser racional, não só bom ou justo, mas também racional, pensar conjuntamente no meu e no interesse dos outros. E isto fica mais claro se pensarmos na gestão do bem comum, a terra, a água, tudo aquilo que não é privado. Então, a teoria econômica sugere que se cada um pensa em si mesmo tudo irá bem. Mas com o bem comum isso não funciona, porque se um pensa somente em si, o bem comum acaba.

A we-rationality diz que viveremos melhor se uma pessoa pensar em si e nos outros ao mesmo tempo. É um ganho para todos, uma situação melhor para todos. A teoria econômica tradicional não consegue ver esta possibilidade.

IHU On-Line – Para a senhora, essa célebre perspectiva da economia de Adam Smith é um dos fatores que gera desigualdade? E a outra perspectiva de economia que a senhora apresenta seria o melhor caminho para diminuir essas desigualdades?

Alessandra Smerilli – Sim, porque, por exemplo, um dos critérios para dizer quando uma escolha desse tipo foi boa é quando não gera muita desigualdade. A desigualdade que se vive é também fruto dessa economia, mas não somente. É fruto dessa perspectiva aliada ao fato de que não há uma força única, um controle global que possa combater a desigualdade.

Nos estados europeus não havia uma grande desigualdade, porque o Estado intervinha na redistribuição através dos impostos. Hoje, num sistema de empresas multinacionais, em que não fazem referência somente a um Estado, não existe um sistema que possa redistribuir a riqueza em todos os lugares da mesma forma. Esse é um fato que, hoje, faz aumentar muito a desigualdade. Por exemplo, na Europa, existe uma política monetária única. Os bancos estão até desenvolvendo uma política de aliança, mas não há política fiscal única; temos uma moeda única, mas não uma política fiscal unida. Se eu preciso fazer um investimento, vou a Luxemburgo ou à Irlanda, onde pago menos taxa. Então, deste modo quem pensa somente em maximizar os próprios lucros consegue, mas isto gera desigualdade, porque esta desigualdade se faz sobre as costas dos trabalhadores e esses trabalhadores não têm força para se opor. Se eles se opõem, a empresa sai dali e vai para outro lugar.

IHU On-Line – Quais os desafios para encarar as transformações advindas das novas tecnologias do mundo de hoje, especialmente no “mundo do trabalho”?

Alessandra Smerilli – Esse é um momento, como disse no início, de grande transformação. A velocidade de transformação, hoje, é uma característica de nosso tempo, a tal ponto que não podemos imaginar como será o trabalho daqui a cinco anos. Por quê? Porque a tecnologia avança velozmente. Estimativas da OCSE [10], que não são nem otimistas nem pessimistas, falam que em dez anos 9% do trabalho que hoje existe não existirá mais; 35% sofrerá uma transformação, tudo será muito automatizado. Com isso, uma parte desse trabalho seria inacessível para algumas pessoas. Outra parte só seria acessível para quem tivesse competências sempre diversas, porque os instrumentos se transformam, assim como o modo de realizar o trabalho, e a pessoa que trabalha deve desenvolver competências que hoje nem imaginamos. É, sobretudo, um tema que trata da relação entre homem e máquina que hoje se está estudando.

Há, ainda, formas de trabalho que sempre existiram, como o de cuidado com as pessoas, trabalho na educação e instrução de pessoas, que serão muito facilitados com as novas tecnologias. Mas isso também gerará desocupação, e por isso se chama 4ª Revolução Industrial. Não é um processo a que podemos nos opor. Não se trata de destruir os robôs. Alguns pensam em taxar os trabalhos em que se faz uso de robôs. Não é esse o caminho, porque a partir dos estudos feitos até agora conclui-se que, aonde chega a inovação, a tecnologia, sem taxações ou outras formas de bloqueio, o trabalho aumenta. Entretanto, será um trabalho diverso e que nem todos poderão acessar. Afinal, é preciso uma formação contínua.

Esse processo deve ser acompanhado, porque o preço para a construção de robôs está baixando cada vez mais e, para as empresas, está cada vez mais fácil ter um robô. Com isso, na empresa, a produtividade aumenta, e o fruto desse aumento não pode ser visto apenas como lucro, como ganho, mas também como forma de aumentar o tipo de trabalho, diversificando-o. Assim, o lucro poderia ser reinvestido para treinar as pessoas e desenvolver outros tipos de trabalho. Se o aumento da produtividade se reverte apenas em lucro para os acionistas da empresa, haverá muita desigualdade.

IHU On-Line – Diante dessa mudança de cenário no mundo do trabalho de hoje, muitas pessoas têm retomado o debate acerca da renda básica universal. Em que medida a renda básica pode ser uma forma de enfrentar esses novos desafios por si só? Ou acredita que o caminho é, de alguma forma, associar esse conceito a essa perspectiva que a senhora trata?

Alessandra Smerilli – Essa é uma proposta que hoje está sendo pensada em todo o mundo, pois não haverá trabalho para todos. Assim, essa maior produtividade pode ser empregada para dar um crédito de base para quem não pode trabalhar. Mas para quê? Para que as pessoas possam comprar, sustentar o mercado. Os empreendedores se privam de lucro para sustentar a renda básica universal porque sem renda o mercado não acontece. Então, eu acredito que o trabalho não é fazer alguma coisa, não é só um meio de ganhar a vida. Não basta apenas ter dinheiro para fazer parte da sociedade. O trabalho tem um outro valor, define o ser humano, é uma característica da pessoa e, para os cristãos, trabalhar é participar da obra da criação de Deus. Se temos os recursos para dar uma renda por ser cidadão, por que não empregamos esse esforço para criar trabalho?

IHU On-Line – Então, para a senhora, criar trabalho através da economia de comunhão seria uma melhor alternativa do que apenas criar renda?

Alessandra Smerilli – Sim. A proposta que tratei na conferência [realizada no Simpósio do IHU] é a de que se diminuem os postos de trabalho, poderíamos diminuir as horas de trabalho para poder empregar mais gente. Mas não apenas diminuir as horas e ficar ocioso na outra parte do tempo, também usar o tempo que sobra para empreender em ações de cuidados com outras pessoas. Porque o cuidado define o ser humano e, hoje, sobretudo, em uma sociedade que tem tanto envelhecimento, ao invés de trabalhar oito horas, se poderia trabalhar seis, e duas horas do dia poderiam ser investidas em atividades de cuidados com idosos, crianças etc.

IHU On-Line – É isso que a senhora defende como trabalho part-time [meio-período], que pode também ir desonerando os recursos públicos e privados em atividades de cuidado?

Alessandra Smerilli – É claro. Na família, aquilo que se perde trabalhando menos, poderia ser ganho nesta atividade de cuidado compartilhado. Em contexto de novas tecnologias, as tarefas de cuidados também podem ser muito facilitadas, por exemplo, com plataformas de intercâmbio de cuidado.

IHU On-Line – Qual sua avaliação sobre o documento vaticano Oeconomicae et pecuniariae quaestiones [11], que trata das economias e finanças de nosso tempo?

Alessandra Smerilli – É um documento muito significativo, importante, porque são dois Dicastérios da Cúria Romana que estão promovendo o documento. O fato de estar sendo tratado pela Congregação para Doutrina da Fé [12] significa que viver uma finança coerente é matéria de fé, é uma questão de coerência evangélica, está no coração da fé. Não é apenas um acaso ou acidente, não é secundário.

O documento, ainda, é muito importante para dar dicas de como valorizar todo o tipo de perspectiva financeira ética, socialmente responsável. Dá um incentivo muito grande para o desenvolvimento de uma perspectiva financeira que trabalha pela sustentabilidade e obriga as pessoas da Igreja a fazer um exame de consciência sobre a forma com que estão vivendo as finanças.

IHU On-Line – E como isso é recebido pelas pessoas da Igreja?

Alessandra Smerilli – O documento ainda é muito recente. Mas era preciso um documento como esse, pois ajuda, de uma forma muito clara, a discernir as estruturas como realmente são. Esse documento também cita aquilo que falamos no início, aquela ideia de que a finança pode ser uma coisa boa, que a economia é bela.

IHU On-Line – Em sua conferência, a senhora disse que “o mundo feminino da economia é um mundo que ainda foge à regra”, como um desvio. Gostaria que retomasse essa perspectiva e a explicasse.

Alessandra Smerilli – A Ciência Econômica nasceu, como muitas das ciências, como masculina, entre os homens. E, com isso, muitos dos instrumentos da economia são um tanto masculinos. O que havia falado é que, se observarmos o comportamento de homens e mulheres, percebemos diferenças também no comportamento econômico. As questões de riscos, da competição, por exemplo. Por um lado, não são muito enfatizadas essas diferenças, mas, por outra parte, quando se fala de diferenças, tende-se a dizer que as mulheres se comportam de maneira diferente dos homens, como se os comportamentos masculinos fossem a regra.

Um tema em que isso está presente são os incentivos. Experimentos falam que, com incentivos, acaba se penalizando as mulheres que não trabalham sob essa perspectiva. É uma questão cultural, porque quando vemos uma mulher na sociedade matriarcal é muito diferente. Uma economia construída sobre incentivos vai penalizar as mulheres, privilegiando os homens. Por que os incentivos devem ser considerados um instrumento normal para melhorar as performances? Pela minha experiência e meus estudos, as mulheres se dão muito melhor em ambientes não competitivos, o que é diferente com os homens. Por que não se podem usar outras regras? Um olhar diverso ajudaria a estruturar as empresas de maneira diversa.

IHU On-Line – Fala-se também que as mulheres têm uma perspectiva mais colaborativa do que os homens nesse mundo empresarial e da economia. Isso é real?

Alessandra Smerilli – Estudos de grandes empresas de consultoria, como a Mackenzie, revelam que as empresas funcionam melhor se colocar os dois, usando as características de homens e mulheres em cargos de liderança. Assim, sabendo-se que há características diferentes entre homens e mulheres, acaba sendo sempre melhor ter um casal em postos de liderança.

IHU On-Line – Falamos que o campo da Economia é muito masculino, pelas suas experiências de ser uma mulher economista. Mas a senhora é também uma religiosa. O que podemos falar sobre o mundo da Igreja e o espaço da mulher nesse ambiente?

Alessandra Smerilli – (risos) Escrevi em uma entrevista sobre isto que a Igreja que não abre espaço para a mulher é menos Igreja e menos humana. O humano é menos humano e a Igreja é menos humana se não abre espaço para mulher, mas não porque as mulheres querem ter postos de poder, e sim para dar o olhar da mulher. Às mulheres não interessa o poder, mas em poder contribuir para escrever as regras.

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Economia de comunhão é alternativa à voracidade de um mercado predador. Entrevista especial com Alessandra Smerilli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU