28 Novembro 2016
De 25 a 27 de novembro de 2016, no Auditório da Pontifícia Universidade Antonianum, ocorreu o segundo Simpósio Internacional sobre a Economia, organizado pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, sobre o tema “Na fidelidade ao carisma, repensar a economia”, do qual participaram cerca de mil ecônomos e ecônomas gerais.
Segundo o Papa Francisco, é preciso "repensar a economia (das congregações religiosas), através de uma atenta leitura da Palavra de Deus e da história. Escutar o sussurro de Deus e o grito dos pobres, dos pobres de sempre e dos novos pobres; compreender o que o Senhor pede hoje e, depois de tê-lo compreendido, agir, com aquela confiança corajosa na providência do Pai (cf. Mt 6, 19ss) que tiveram os nossos fundadores e fundadoras".
"Repensar a economia - continua o Papa - quer expressar o discernimento (...) que, sobretudo, se coloca contra a corrente, porque se serve do dinheiro e não serve ao dinheiro por motivo algum, nem mesmo o mais justo e santo. Nesse caso, seria esterco do diabo, como diziam os santos Padres".
E Francisco alerta e questiona:
"Nãoo se deve silenciar que os próprios institutos de vida consagrada não são isentos de alguns riscos indicados na encíclica Laudato si’: “O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceitual da economia” (n. 195). Quantos consagrados continuam ainda hoje pensando que as leis da economia são independentes de qualquer consideração ética? Quantas vezes a avaliação sobre a transformação de uma obra ou a venda de um imóvel é vista apenas com base em uma análise de custo-benefício e valor de mercado? Deus nos livre do espírito de funcionalismo e de cair na armadilha da avareza! Além disso, devemos nos educar a uma austeridade responsável. Não basta ter feito a profissão religiosa para ser pobre. Não basta me entrincheirar atrás da afirmação de que eu não possuo nada, porque sou religioso, religiosa, se o meu instituto me permite gerir ou gozar de todos os bens que eu desejo e controlar as fundações civis erigidas para sustentar as obras próprias, evitando assim os controles da Igreja. A hipocrisia dos consagrados que vivem como ricos fere as consciências dos fiéis e prejudica a Igreja.
Publicamos aqui o texto da mensagem que o Papa Francisco enviou aos participantes do Simpósio, publicada no sítio da Santa Sé, 27-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Queridos irmãos e irmãs,
Agradeço-lhes pela sua disposição a se encontrarem juntos para refletir e rezar sobre uma temática tão vital para a vida consagrada como a gestão econômica das suas obras. Agradeço a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica pela preparação deste segundo simpósio; e, ao me dirigir a vocês, deixo-me guiar pelas palavras que formam o título do seu encontro: carisma, fidelidade, repensar a economia.
Os carismas na Igreja não são algo de estático e de rígido, não são “peças de museu”. São, ao contrário, rios de água viva (cf. Jo 7, 37-39) que correm no solo da história para irrigá-la e fazer germinar sementes de Bem. Em certos momentos, por causa de uma certa nostalgia estéril, podemos ser tentados a fazer “arqueologia carismáticas”. Que não aconteça de cedermos a essa tentação! O carisma é sempre uma realidade viva e, justamente por isso, é chamado a frutificar, como nos indica a parábola das moedas de ouro que o rei entrega aos seus servos (cf. Lc 19, 11-26), para se desenvolver em fidelidade criativa, como continuamente a Igreja nos recorda (cf. João Paulo II, Exort. Ap. Pós-Sin. Vita consecrata, 37).
A vida consagrada, por sua natureza, é sinal e profecia do reino de Deus. Portanto, essa sua dupla característica não pode faltar em nenhuma das suas formas, desde que nós, consagrados, permaneçamos vigilantes e atentos para perscrutar os horizontes da nossa vida e do momento atual. Essa atitude faz com que os carismas, dados pelo Senhor à sua Igreja através dos nossos fundadores e fundadoras, se mantenham vitais e possam responder às situações concretas dos lugares e dos tempos nos quais somos chamados a compartilhar e a testemunhar a beleza da sequela Christi.
Falar de carisma significa falar de dom, de gratuidade e de graça; significa mover-se em uma área de significado iluminada pela raiz charis. Eu sei muito bem que para muitos que operam no campo econômico essas parecem ser palavras irrelevantes, a serem relegadas à esfera privada e religiosa. Em vez disso, sabe-se muito bem, até mesmo entre os economistas, que uma sociedade sem charis não pode funcionar bem e acaba se desumanizando. Nunca a economia e a sua gestão são ética e antropologicamente neutras. Ou concorrem para construir relações de justiça e de solidariedade, ou geram situações de exclusão e de rejeição.
Como consagrados, somos chamados a nos tornarmos profecia a partir da nossa vida animada pela charis, pela lógica do dom, da gratuidade; somos chamados a criar fraternidade, comunhão, solidariedade com os mais pobres e necessitados. Como bem lembrava o Papa Bento XVI, se quisermos ser verdadeiramente humanos, devemos “dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade” (Enc. Caritas in veritate, 34).
Mas a lógica evangélica do dom pede para ser acompanhada por uma atitude interior de abertura à realidade e de escuta a Deus que nela nos fala. Devemos nos perguntar se estamos dispostos a “sujar as mãos” trabalhando na história de hoje; se os nossos olhos sabem perscrutar os sinais do reino de Deus entre as dobras de eventos certamente complexos e contrastantes, mas que Deus quer abençoar e salvar; se somos realmente companheiros de estrada dos homens e das mulheres do nosso tempo, particularmente de tantos que jazem feridos ao longo das nossas estradas, porque com eles compartilhamos as expectativas, os medos, as esperanças e também aquilo que recebemos e que pertence a todos; se nos deixamos dominar pela lógica diabólica do lucro (o diabo, muitas vezes, entra pela carteira ou pelo cartão de crédito); se nos defendemos daquilo que não entendemos, fugindo disso, ou se sabemos ficar dentro disso por força da promessa do Senhor, com o Seu olhar de benevolência e as Suas entranhas de misericórdia, tornando-nos bons samaritanos para os pobres e os excluídos.
Ler as perguntas para responder, escutar o pranto para consolar, reconhecer as injustiças para compartilhar também a nossa economia, discernir as inseguranças para oferecer paz, olhar para os medos para tranquilizar: essas são diversas faces do poliédrico tesouro que é a vida consagrada. Aceitando não ter todas as respostas e, às vezes, ficar em silêncio, talvez até mesmo nós, incertos, mas nunca, nunca sem esperança.
Ser fiéis significa se perguntar o que hoje, nesta situação, o Senhor nos pede para ser e fazer. Ser fiéis nos compromete a um trabalho assíduo de discernimento para que as obras, coerentes com os carismas, continuem sendo instrumentos eficazes para fazer com que a ternura de Deus chegue a muitos.
As obras próprias, das quais este simpósio se ocupa, não são apenas um meio para assegurar a sustentabilidade do próprio instituto, mas pertencem à fecundidade do carisma. Isso envolve se perguntar se as nossas obras manifestam ou não o carisma que professamos, se respondem ou não à missão que nos foi confiada pela Igreja. O critério principal de avaliação das obras não é a sua rentabilidade, mas se correspondem ao carisma e à missão que o instituto é chamado a realizar.
Ser fiéis ao carisma, muitas vezes, requer um ato de coragem: não se trata de vender tudo ou de se desfazer de todas as obras, mas de fazer um sério discernimento, mantendo o olhar bem dirigido para Cristo, os nossos ouvidos atentos à sua Palavra e à voz dos pobres. Desse modo, as nossas obras podem, ao mesmo tempo, ser fecundas para o caminho do instituto e expressar a predileção de Deus pelos pobres.
Tudo isso implica repensar a economia, através de uma atenta leitura da Palavra de Deus e da história. Escutar o sussurro de Deus e o grito dos pobres, dos pobres de sempre e dos novos pobres; compreender o que o Senhor pede hoje e, depois de tê-lo compreendido, agir, com aquela confiança corajosa na providência do Pai (cf. Mt 6, 19ss) que tiveram os nossos fundadores e fundadoras. Em certos casos, o discernimento poderá sugerir que se mantenha viva uma obra que produz perdas – ficando bem atentos para que estas não sejam geradas por incapacidade ou por imperícia –, mas restaura dignidade a pessoas vítimas do descarte, fracas e frágeis: os nascituros, os mais pobres, os idosos, os doentes, as pessoas com deficiência grave. É verdade que existem problemas decorrentes da idade avançada de muitos consagrados e da complexidade da gestão de algumas obras, mas a disponibilidade a Deus nos fará encontrar soluções.
Pode ser que o discernimento sugira que se repense uma obra, que, talvez, se tornou grande e complexa demais, mas podemos, então, encontrar formas de colaboração com outros institutos ou, talvez, transformar a própria obra, de modo que ela continue, embora com outras modalidades, como obra da Igreja. Também por isso é importante a comunicação e a colaboração dentro dos institutos, com os outros institutos e com a Igreja local. Dentro dos institutos, as várias províncias não podem ser concebidas de maneira autorreferencial, como se cada uma vivesse para si mesma, nem os governos gerais podem ignorar as diversas peculiaridades.
A lógica do individualismo também pode afetar as nossas comunidades. A tensão entre realidade local e geral, que existe em nível de inculturação do carisma, existe também em nível econômico, mas não deve dar medo, deve ser vivida e enfrentada. É preciso fazer crescer a comunhão entre os diversos institutos; e também conhecer bem os instrumentos legislativos, jurídicos e econômicos que permitem hoje fazer rede, identificar novas respostas, unir as forças, as profissionalidades e as capacidades dos institutos a serviço do Reino e da humanidade. Também é muito importante dialogar com a Igreja local, para que, sempre que possível, os bens eclesiásticos permaneçam como bens da Igreja.
Repensar a economia quer expressar o discernimento que, neste contexto, olha para a direção, para os objetivos, para o significado e para as implicações sociais e eclesiais das escolhas econômicas dos institutos de vida consagrada. Discernimento que parte da avaliação das possibilidades econômicas decorrentes dos recursos financeiros e pessoais; que se vale da obra de especialistas para a utilização de instrumentos que permitam uma gestão prudente e um controle da gestão não improvisados; que opera no respeito às leis e se põe a serviço de uma ecologia integral. Um discernimento que, sobretudo, se coloca contra a corrente, porque se serve do dinheiro e não serve ao dinheiro por motivo algum, nem mesmo o mais justo e santo. Nesse caso, seria esterco do diabo, como diziam os santos Padres.
Repensar a economia requer competências e capacidades específicas, mas é uma dinâmica que diz respeito à vida de todos e de cada um. Não é uma tarefa que pode ser delegada a alguém, mas investe sobre a responsabilidade plena de cada pessoa. Aqui também estamos diante de um desafio educativo, que não pode deixar os consagrados de fora. Um desafio que, certamente, em primeiro lugar, cabe aos ecônomos e àqueles que estão envolvidos em primeira pessoa nas escolhas do instituto. A eles é exigida a capacidade de ser astutos como as serpentes e simples como as pombas (cf. Mt 10, 16). E a astúcia cristã permite distinguir entre um lobo e uma ovelha, porque muitos são os lobos travestidos de ovelhas, sobretudo quando há dinheiro em jogo!
Além disso, não se deve silenciar que os próprios institutos de vida consagrada não são isentos de alguns riscos indicados na encíclica Laudato si’: “O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceitual da economia” (n. 195). Quantos consagrados continuam ainda hoje pensando que as leis da economia são independentes de qualquer consideração ética? Quantas vezes a avaliação sobre a transformação de uma obra ou a venda de um imóvel é vista apenas com base em uma análise de custo-benefício e valor de mercado? Deus nos livre do espírito de funcionalismo e de cair na armadilha da avareza! Além disso, devemos nos educar a uma austeridade responsável. Não basta ter feito a profissão religiosa para ser pobre. Não basta me entrincheirar atrás da afirmação de que eu não possuo nada, porque sou religioso, religiosa, se o meu instituto me permite gerir ou gozar de todos os bens que eu desejo e controlar as fundações civis erigidas para sustentar as obras próprias, evitando assim os controles da Igreja. A hipocrisia dos consagrados que vivem como ricos fere as consciências dos fiéis e prejudica a Igreja.
Devemos começar pelas pequenas escolhas cotidianas. Cada um é chamado a fazer a sua parte, a usar os bens para fazer escolhas solidárias, a ter cuidado pela criação, a se deparar com a pobreza das famílias que seguramente vivem ao seu lado. Trata-se de adquirir um habitus, um estilo no sinal da justiça e da partilha, fazendo o esforço – porque, muitas vezes, seria mais cômodo fazer o contrário – de fazer escolhas de honestidade, sabendo que é simplesmente aquilo que devíamos fazer (cf. Lc 17, 10).
Irmãos e irmãs, voltam à minha mente dois textos bíblicos que eu gostaria de lhes deixar para a sua reflexão. João, na sua Primeira Carta, escreve: “Se alguém possui os bens deste mundo e, vendo o seu irmão em necessidade, fecha-lhe o coração, como pode o amor de Deus permanecer nele? Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade” (3, 17-18). O outro texto é bem conhecido. Refiro-me Mateus 25, 31-46: “Tudo o que vocês fizerem a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram. […] Tudo o que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram”. Na fidelidade ao carisma, repensem a economia de vocês.
Agradeço-lhes. Não se esqueçam de rezar por mim. Que o Senhor os abençoe, e a Virgem Santa cuide de vocês.
Do Vaticano, 25 de novembro de 2016.
Francisco
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"A hipocrisia dos consagrados que vivem como ricos fere as consciências dos fiéis e prejudica a Igreja", diz Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU