Francisco, os dez anos do primeiro Papa “global”. Artigo de Andrea Riccardi

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27 Fevereiro 2023

"O primeiro pontificado do mundo global, alheio à articulação pós-conciliar entre progressistas e conservadores, nasce como resposta à desorientação. A frase de Francisco, recém-eleito, é indicativa: 'parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase do fim do mundo'. Buscava-se o 'guia' fora dos mundos habituais", escreve o historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 25-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Segundo ele, "estranha à articulação pós-conciliar entre progressistas e conservadores, a escolha de Bergoglio é a resposta à desorientação e à crise do “Nós” na era do “Eu”.

Eis o artigo.

O pontificado de Francisco completa dez anos. Não chegaram a essa marca nem João XXIII nem Bento XVI. Paulo VI, grande reformador, governou por quinze anos. João Paulo II, em vinte e sete anos, fez a transição da Igreja da Guerra Fria para a globalização (também dando uma contribuição "política" especialmente à Polônia), mas os problemas do mundo global apenas o roçaram. Bergoglio é o primeiro papa "global". Para entender melhor, precisamos partir do momento em que amadureceu a escolha do papa argentino.

Em primeiro lugar pelo choque da renúncia de Ratzinger, surpreendente para o sentimento tradicional. No fundo, subjetiva. Francisco hoje arquivou a normalização da renúncia, lembrando como os "grandes patriarcas" não renunciam: "acredito que o ministério do Papa seja ad vitam". Na realidade, a renúncia de Ratzinger foi em parte provocada pela ingovernabilidade do Vaticano e da Igreja. Um papa não carismático, como ele, não tinha condições.

Por que os cardeais se voltaram para Bergoglio em 2013? No conclave de 2005, ele foi a alternativa a Ratzinger, cuja escolha pareceu tranquilizadora. No entanto, Bergoglio era um pastor, não gostava do mundo curial: até mesmo de sua forma de governar (da qual sofrera algumas recaídas em Buenos Aires). Ele tinha pouca simpatia por alguns wojtylianos, como o card. Lopez Trujillo, por seus métodos imperativos. Era de fora da Itália. A maioria dos problemas da Cúria eram atribuídos aos italianos pelos cardeais que lhes pediram para arrumá-la.

Desde a segunda votação no conclave de 2013, segundo Jerry O'Connell, houve dois candidatos não europeus: Bergoglio com 45 votos e o canadense curial, Ouellet, ligado à herança de Ratzinger. Scola, italiano e também ratzingeriano, teve 38 votos com parte dos italianos contra. Votaram em Bergoglio também cardeais, que mais tarde não se identificaram com o governo de Francisco. Em 2013, os cardeais sentiram a necessidade de se desvincular da forte ligação entre a crise europeia e a crise da Igreja. É preciso confiar-se a um "novo" Papa. O papado, em queda de autoridade, precisava ser relançado para sair da crise, manifestada pela renúncia do último papa europeu.

Hoje difunde-se (sobretudo no mundo tradicionalista) uma interpretação segundo a qual o conclave de 2005 foi uma etapa para a "conquista" do papado pelos jesuítas e pela “máfia de Sankt Gallen”. Essa realidade é desconhecida da maioria: alude-se a uma reunião anual, da qual participavam poucos cardeais europeus, Martini, o belga Danneels e alguns outros e alguns bispos, em que discutiam livremente. Danneels a enfatiza muito em sua biografia, escrita sob sua supervisão. Terminou em 2006 e eram apenas quatro, entre os quais apenas um cardeal, Daneells. Martini não participou dela desde 2003.

Martini seria o coração da "conquista do papado". Mas, ele também jesuíta, não quis Bergoglio no conclave de 2005, acabando por escolher Ratzinger. Bergoglio não gozava da simpatia de Martini e dos líderes jesuítas tanto que, uma vez eleito em 2013, houve uma inicial perplexidade na Companhia. Ver em Martini, na "Máfia de Sankt Gallen", nos jesuítas a origem do pontificado de Francisco é uma narrativa distante da história, que corresponde às teorias da conspiração em voga. A estranheza de Bergoglio ao debate europeu e ao campo liberal é evidente: demonstra-o o vínculo com a teologia argentina do povo e com pensadores como o uruguaio Methol Ferré. Não era o mundo de Martini nem de Danneels. Nem suas visões.

No entanto, a crise do catolicismo no mundo global era profunda. Não apenas induzida pela secularização. Mas a imersão em um universo de processos novos e chocantes abalou a Igreja e o sistema pós-conciliar, mais do que se acredita. O rabino Jonathan Sacks, um observador perspicaz do século XXI, fala de "mudança climática cultural": "a passagem do Nós para o Eu". Os católicos mudaram com o mundo. "Comunidade", palavra-chave do Concílio, está fora de moda. A Igreja do Nós é abalada por um processo de subjetivação, favorecido pelo mundo digital, no qual também se desenvolveram as múltiplas posições tradicionalistas.

Bergoglio compartilhava, de longe, a ideia de que Roma tinha que mudar, comum a cardeais de orientações diversas. No entanto, também havia percebido que algo havia mudado em profundidade entre os católicos, que o “nós” tinha sofrido rachaduras e uma orientação comum deveria ser relançada, não de forma estrutural. Foi o desafio de "sair" que ele propôs poucos meses depois de sua eleição com a Evangelii gaudium. O primeiro pontificado do mundo global, alheio à articulação pós-conciliar entre progressistas e conservadores, nasce como resposta à desorientação. A frase de Francisco, recém-eleito, é indicativa: “parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase do fim do mundo”. Buscava-se o "guia" fora dos mundos habituais.

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