14 Setembro 2016
"Talvez o dado mais surpreendente é o desmembramento da mídia, nas questões da Cúria e sobre suas dinâmicas, que reduziu a atenção e as denúncias, mesmo em momentos potencialmente explosivos como o outing do Mons. K. O. Charamsa, na véspera do Sínodo sobre a Família".
A análise é do teólogo italiano e padre dehoniano Lorenzo Prezzi, em artigo publicado por Settimana News, 08-09-2016.
A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
“Inacabada”, num tríplice significado; porque o trabalho de revisão da Constituição Apostólica Pastor Bonus, sobre a cúria (João Paulo II, 1988), não é esperado para antes de 2018; porque alguns elementos já passaram por significativas transformações e desempoderamentos; porque a dimensão espiritual, aos olhos de Francisco, tem mais valor do que ajustes legais e normativos.
O motor da reforma é o Conselho dos Cardeais (9), que terá, entre 12 e 14 de Setembro, seu décimo sexto encontro, desde o primeiro deles (1-3 outubro 2013). No verão de 2016 viu-se a criação de dois blocos adicionais da reforma: a instituição do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida (17 de agosto), e aquele para o Serviço do desenvolvimento humano integral (31 de agosto). Nas duas etapas anteriores foram criadas a Secretaria para a Economia (24 de Fevereiro de 2014) e a Secretaria de Comunicação (27 de Junho de 2015).
O Dicastério para o Serviço do desenvolvimento humano integral reúne o legado dos Pontifícios Conselho Justiça e Paz, Cor Unum, Pastoral dos Migrantes e dos Operadores Sanitários. Sua competência abrange “migrações, enfermos e excluídos, marginalizados e vítimas de conflitos armados e das catástrofes naturais, encarcerados, desempregados e vítimas de qualquer forma de escravidão e tortura" (Carta Apostólica da instituição do Dicastério). Preside-o, como prefeito, o Cardeal Peter K. A. Turkson.
A nova Congregação para os Leigos, a Família e a Vida resume as competências dos Pontifícios Conselhos dos Leigos e da Família, e responde a um adequado deslocamento dos leigos para topo dos Dicastérios, ao mesmo nível daquele dos Ministros Ordenados e dos Religiosos. Nos estatutos, sua competência está assim indicada: "a promoção da vida e do apostolado dos fiéis leigos... a custódia pastoral da família e da sua missão... a proteção e o apoio da vida humana". As três seções previstas dizem respeito especificamente aos leigos, à família e à vida. Prefeito é Mons. Kevin J. Farrell, bispo de Dallas (EUA).
Mais complexa a condição da Secretaria dos Meios de Comunicação chamada a coordenar nove realidades do Vaticano, com cerca de 700 funcionários: Centro Televisivo Vaticano, Libreria Editrice, Osservatore Romano, Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Rádio Vaticana, Sala de Imprensa, Serviço Fotográfico, Serviços de Internet, Tipografia Vaticana. "O atual contexto comunicativo, caracterizado pela presença e desenvolvimento da mídia digital, pelos fatores da convergência e interatividade, requer repensar o sistema de informação da Santa Sé, que exige reorganização, valorizando o que na história desenvolveu-se em termos de estrutura interna da comunicação da Sé Apostólica, para que avance decisivamente no sentido da integração e gerenciamento unificado" (Carta de instituição). Prefeito é Mons. Dario Edoardo Viganò, secretário, Lucio A. Ruiz, e cinco diretorias para os vários setores (geral, teológico-pastoral, tecnológica, sala de imprensa e administração). Convergência significativa produziu-se até agora entre a Rádio, Pontifício Conselho e Centro Televisivo. Por razões de idade o diretor da Sala de Imprensa, P. F. Lombardi, foi substituído. Tomou seu lugar Dr. Greg Burke (vice-diretor, Paoloma Garcia Ovejero). Ele fez discutir a ideia, aliás já partilhada nos meios de comunicação, sobre a capacidade performativa e condicionante das informações que, aplicada ao ministério petrino, poderia suscitar questões não marginais. O desafio do Dicastério é assaz elevado, não só pelo número de funcionários, mas também pela complexidade e pelo nível qualitativo das competências. O tempo dará as respostas esperadas.
A Secretaria para a economia foi a primeira (18 de julho de 2013), e tem no vértice da estrutura de referência uma Secretaria (no Conselho, de quinze pessoas, oito são Bispos e Cardeais, cujo prefeito é o Cardeal George Pell, secretário geral, Mons. Alfred Xuereb) e o Gabinete do auditor geral. No motu proprio de instituição se diz: "A Secretaria responde diretamente ao Santo Padre, implementa o controle econômico e a supervisão das instituições referidas no parágrafo 1 (estruturas e atividades administrativas e financeiras dos Dicastérios e das instituições ligadas à Santa Sé e ao Estado da Cidade do Vaticano, ndr.), bem como as políticas e procedimentos relativos a compras e a adequada alocação dos recursos humanos, no respeito das competências próprias de cada entidade. A competência da Secretaria, portanto, se estende a todos que de alguma forma se enquadram no objeto em questão".
Cardeal Pell interpretou em sentido mais extensivo o mandato recebido, submetendo pedidos imperiosos de informações e balanços aos Dicastérios e gabinetes, obtendo com isso progressiva clareza e conformidade dos balanços financeiros, mas não sem lacunas e contradições, como ocorre na escassa percepção do vínculo concordatário e dos tratados entre Itália e Santa Sé, nas saídas públicas de duvidosa pertinência, ou na denúncia, resultada depois infundada, de que não havia suficiente cobertura dos fundos de pensão; no anúncio de contas secretas que, na verdade, eram fundos efetivamente extraorçamentários à disposição do Pontífice; no repetido e custoso envolvimento de agências internacionais, tanto prestigiosas quanto não sempre adequadas para a complexidade do Vaticano; nos altos salários de colaboradores com custos significativos para a sede e escritórios. Há pouco mais de um ano de distância (22 de fevereiro de 2015), os estatutos redimensionaram as tarefas da Secretaria para a economia, reduzida agora a uma espécie de Tribunal de Contas. A carta do Papa (14 de outubro de 2015) apelou para todos estarem às regras, sem forçar tarefas e desperdiçar recursos.
Na véspera do conclave de 2013, o pedido de reforma da Cúria era assumido e considerado urgente pelos próprios cardeais eleitores: demasiados escândalos pessoais, cartas roubadas, controvérsias públicas, demasiadas “cordate” (grupos de poder que se entreajudam no carreirismo, ndt) sobre a nomeação de bispos. A transparência econômica teve seu primeiro resultado no IOR, o banco do Vaticano, que, através de uma série de inspeções, controles (Pontifícia Comissão referente) e a publicação dos balanços financeiros, renovou sua imagem, enquanto o sistema financeiro Vaticano passou a assumir as regras internacionais, mais compartilhadas, no combate à lavagem de dinheiro. Do ponto de vista pastoral lembro de uma expectativa comum, expressa por um dos colaboradores do Cardeal Bergoglio, Victor Manuel Fernandez, Reitor da Universidade Católica de Buenos Aires: "Isto não significa ignorar que a Igreja possui estruturas que podem facilitar ou dificultar a transmissão do Evangelho, a comunicação da vida, a experiência fraterna, o amadurecimento dos discípulos. Pensar a Igreja como povo, ignorando, porém, sua dimensão estrutural, mecanismos e procedimentos dos centros de poder eclesiais, seria pouco realista e, em última instância, acabaria por prospectar certa dualidade ou monofisismo eclesial. Para o Papa Francisco, a Igreja oficial, com seus ministros e estruturas, está ali para ser transparência de Jesus Cristo "(cf. Settimana 29, 2013 p. 8).
Para compreender o projeto de reforma do Cúria é interessante ler os discursos do papa à Cúria Romana, nos Natais de 2014 e 2015: dupla e diáfana tabela das tentações e virtudes dos chamados a colaborar no serviço do ministério petrino. Antes de tudo as tentações, listadas no modelo dos catálogos dos padres do deserto. 1. "A doença de sentir-se imortal, imune ou mesmo essencial, negligenciando os necessários e habituais controles". 2. "A doença do martalismo (que vem de Marta), da excessiva operosidade; isto é, daqueles que mergulham no trabalho, negligenciando, inevitavelmente, a " parte melhor": sentar-se aos pés de Jesus". 3. "Há também a doença do endurecimento mental e espiritual, isto é, daqueles que têm coração de pedra e cabeça dura". 4. "Doença do excessivo planejamento e funcionalismo". 5. "Doença da má coordenação: quando os membros perdem a comunhão uns com os outros e o corpo perde a funcionalidade suave e a temperança". 6. "Há a doença do Alzheimer espiritual: ou seja, esquecimento da própria história da salvação, da história pessoal com o Senhor, do primeiro amor". 7. "A doença de rivalidade e da vanglória"; "ser homens e mulheres falsos". 8. "A doença da esquizofrenia existencial. É a doença de quem vive vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre". 9. "A doença da fofoca, dos resmungos e dos mexericos". 10. "A doença de endeusamento dos chefes. É a doença dos que cortejam os superiores, na esperança de obter benevolência". 11. "A doença da indiferença com os outros". 12. "A doença da cara de funeral", sintoma "de medo e de insegurança em relação a si mesmo". 13. "A doença de acumular" bens materiais para "sentir-se seguro". 14. "A doença dos círculos fechados, onde a pertença ao grupinho torna-se mais forte daquela do corpo e, em alguns casos, da pertença ao próprio Cristo". 15. "A doença da ganância mundana, dos exibicionismos".
Em seguida, as virtudes listadas em análise acróstica, baseada na palavra Misericórdia, segundo um método mnemônico, muito usado pelo padre Ricci em sua missão chinesa. 1. Missionariedade e pastoralidade. Ser missionários com a vida, trabalho e testemunho. Com a atitude de quem segue, a cada dia, o Bom Pastor. 2. Idoneidade e sagacidade. Esforço para adquirir os requisitos necessários para o exercício do próprio cômpito e rapidez de mente para compreender as situações. 3. Spiritualità (espiritualidade) e humanidade. A primeira protege nossa fragilidade, a segunda indica a veracidade da nossa fé. 4. Exemplaridade e fidelidade. Se evitam os escândalos e se vive fielmente a própria consagração. 5. Racionalidade e amabilidade. "A racionalidade serve para evitar os excessos emocionais e a amabilidade para evitar os excessos da burocracia e das programações e planejamentos". 6. Inocuidade e determinação. Ser cauteloso no juízo e determinados na ação. 7. Caridade e verdade. A caridade sem verdade torna-se ideologia, a verdade sem caridade, legalismo. 8. Onestà (Honestidade) e maturidade. O agir com absoluta honestidade conosco mesmos e com Deus comporta a maturidade da harmonia "das nossas capacidades físicas, mentais e espirituais". 9. Respeitabilidade e humildade. Operar com alma nobre e delicada, com atitude de pessoas cheias de Deus. 10. Doviciosidade e atenção. "Quanto mais se dá, mais se recebe"; "cuidar dos detalhes e oferecer o melhor de nós". 11. Impavidez e prontidão. "Não deixar-se intimidar diante das dificuldades", com a prontidão para agir com liberdade e agilidade. 12. Affidabilità (confiança) e sobriedade. Manter os compromissos com seriedade e confiabilidade, com capacidade de renunciar ao supérfluo, e de resistir a lógica consumista dominante.
Como corolários relacionadas ao trabalho de reforma da Cúria pode-se detectar uma menor produção de documentos pelos Dicastérios, um progressivo e renovado reconhecimento ao magistério dos Bispos e Conferências Episcopais e uma maior liberdade de pesquisa para os teólogos. Nestes três anos de pontificado não são particularmente numerosos os textos empenhados pelos Dicastérios. Alguns remontam a preparações anteriores ao papa Francisco. Pode-se recordar o Diretório Homilético da Congregação para o Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos (2014), uma carta Iuvenescit Ecclesia da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre os movimentos e as relações entre dons hierárquicos e carismáticos (2016), o documento do Dicastério para Educação católica, Educar hoje e amanhã (2014), ou os textos das cartas circulares da Congregação dos Religiosos, por ocasião do Ano da Vida Consagrada (2014-2016) e a Constituição Apostólica Vultum Dei quaerere (com a assinatura do papa, mas preparado pela Congregação).
Provavelmente as dezenas de citações do magistério das Conferências Episcopais nos documentos maiores do Papa Francisco (Lumen fidei, Evangelii gaudium, Louvado seja, Amoris Laetitia) iniciam uma nova temporada de pronunciamentos episcopais. "Não se explicitou suficientemente ainda um estatuto das Conferências Episcopais, como sujeitos de atribuição concreta, incluindo também alguma autêntica autoridade doutrinal" (EG, 32). "Não é tarefa do Papa oferecer análise detalhada e abrangente da realidade contemporânea, mas exorto todas as comunidades a uma sempre vigilante capacidade de estudar os sinais dos tempos" (EG, 51).
Ampliou-se também o espaço da pesquisa teológica. Mesmo limitando o olhar da Cúria, recomendam-se dois documentos recentes da Comissão Teológica Internacional, por sua atualidade e qualidade: Deus Trindade, unidade dos homens: O monoteísmo cristão contra a violência (2014), Sensus fidei na vida da Igreja (2014). Os nomes que compõem a comissão de estudo sobre o diaconato das mulheres são indicativos: Nuria Calduch-Benaghes, Francesca Cocchini, Piero Coda, Roberto Dodaro, Santiago Madrigal Terrazas, Mary Melone, Karl-Heinz Menke, Aimable Musoni (2 de agosto de 2016). Bem como a nomeação de Pierangelo Sequeri como Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para a família (17 de agosto 2016).
Há algo "não dito" nos movimentos da cúria a respeito da Secretaria de Estado. O surgimento das duas Secretarias ofuscaram aquilo que tinha sido durante décadas o coração da administração do Vaticano. Mas a lógica dos fatos, a permanente validade da Pastor Bonus e a qualidade do seu atual prefeito, Cardeal Pietro Parolin, gradualmente confirmaram uma referência sintética significativa. Recuperou também uma diplomacia apresentável, por muitos considerada não recuperável. O delicado equilíbrio nos confrontos da Ucrânia e nos territórios disputados pelos armênios, o afastamento de uma terceira guerra no Oriente Médio, a aproximação Cuba-EUA, o papel de liderança na Europa, o pedido de mediação em alguns países da América Latina e a possível abertura para a solução do quebra-cabeça chinês são a prova da sensibilidade histórica e espiritual, que constitui uma valiosa plataforma para a pregação do Evangelho por Francisco.
Talvez o dado mais surpreendente é o desmembramento da mídia, nas questões da Cúria e sobre suas dinâmicas, que reduziu a atenção e as denúncias, mesmo em momentos potencialmente explosivos como o outing do Mons. K. O. Charamsa, na véspera do Sínodo sobre a Família (03 de outubro de 2015), ou a publicação de livros com documentos confidenciais (e datados) por G. Nuzzi e E. Fittipaldi. A estação mudou.
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A cúria vaticana e a reforma inacabada? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU