Por: André | 06 Março 2014
Jornalista e escritor, Bernard Lecomte é o autor de História dos papas de 1789 aos nossos dias e uma biografia de João Paulo II. Para a revista La Vie ele analisa as semelhanças entre Francisco e o papa polonês.
Fonte: http://bit.ly/1fJ8TrO |
A entrevista é de Aymeric Christensen e publicada no sítio La Vie, 27-02-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Para você, a comparação entre Francisco e João Paulo II é pertinente?
Sim, me parece que é, mas na condição de ser muito prudente, porque ainda carecemos de distância para avaliar o pontificado do Papa Francisco. João Paulo II ficou 26 anos à frente da Igreja católica: se Francisco ficar tanto tempo assim, teremos certamente muitas outras coisas para contar. Podemos, portanto, formular apenas algumas primeiras observações.
No plano do “perfil”, parece-me que a comparação entre os dois papas faz sentido: Francisco, assim como João Paulo II, é, em primeiro lugar, um pastor. Um e outro vêm de um “país distante”, inclusive “do fim do mundo”; eles não conhecem a cúria, eles têm uma grande experiência em suas arquidioceses: o ex-arcebispo de Buenos Aires, assim como o de Cracóvia, estava à frente de uma enorme máquina, com muitas responsabilidades, muitas paróquias para servir, muitos padres para acompanhar. Por outro lado, todos os dois passaram por grandes provas históricas de forte implicação política: Bergoglio com a junta de Videla, Wojtyla com o regime comunista. Portanto, arcebispos que chegam a Roma com uma sagrada experiência da história humana! Tanto um como o outro encarnam uma Igreja de carne e osso, da qual eles conhecem a realidade humana, pastoral, eclesial e histórica.
Dito isto, não esqueçamos a diferença de idade entre os dois: João Paulo II tinha 58 anos quando foi eleito papa, ao passo que Francisco já tinha 77. Quase 20 anos de diferença, o que não é pouco. Alguém como Francisco será forçosamente um idoso em alguns anos e não poderá, evidentemente, ser comparado ao João Paulo II globe-trotter, das grandes e incríveis turnês pela África, Ásia e América Latina...
No plano político, pensa que os dois papas sejam próximos?
O que me parece notável é seu sentido da mundialização. Quando João Paulo II foi eleito, em 1978, e, sobretudo, a partir da viagem ao México e à Polônia, em 1979, compreendemos que o governo da Igreja mudou de dimensão. Certamente, a “globalização” do mundo não deve nada a João Paulo II, mas o papa polonês colocou a Igreja de Roma para acompanhar o movimento, de maneira voluntarista. Bento XVI não manifestou esta preocupação fundamental; ele ficou muito “eurocêntrico”. Em Francisco, mesmo que ainda tenha viajado pouco, encontramos a mesma consciência de que o mundo mudou, e que a Igreja também, forçosamente, deve se mundializar. Sua comissão para a reforma da cúria ou ainda suas nomeações ao recente Consistório mostram que o Papa Francisco situa-se deliberadamente numa ótica mundial: quase esquecemos as porcentagens de italianos, de não italianos ou de não europeus no aparelho da Igreja!
Sua maneira de governar a Igreja é diferente, sabendo que a época e os hábitos de transparência mudaram?
É verdade que a época não é a mesma, especialmente no plano da transparência, o que valeu a Bento XVI alguns mal-entendidos históricos! Por outro lado, também nisso é um pouco cedo para julgar. Mas sobre o tema do “governo”, já podemos constatar que há mais que nuances entre os dois homens. João Paulo II não gostava do poder, ele o abandonou voluntariamente à cúria. Como o fez anteriormente em Cracóvia, confiou claramente ao seu secretário de Estado Agostino Casaroli a quase totalidade da administração da Igreja e da gestão dos assuntos vaticanos, reservando para si as questões fundamentais: as grandes iniciativas, as viagens pelo mundo, as grandes homilias, etc. Ele tinha medo de ser paralisado pela quantidade de dossiês a serem examinados, e pelas discussões internas da cúria. O Papa Francisco, desde a sua eleição, mostrou ao mesmo tempo sua vontade de descentralizar o poder na Igreja, mas também seu estilo de governo um pouco pessoal, assim como sua vontade de se envolver pessoalmente na reforma da cúria. Um ano após sua eleição, podemos notar essas diversas tendências: é o futuro que dirá se permanecerá um bispo entre os bispos ou um papa que, sob o risco de ferir seus colaboradores, impõe sua marca!
Comentou-se muitas vezes as escolhas indumentárias de Francisco, mas também de Bento XVI antes dele. Francisco contrasta claramente com seu predecessor. Seu estilo simples e direto não é também um ponto comum com João Paulo II?
Em matéria de estilo, cada papa tem o seu. Bento XVI, por exemplo, sempre esteve ligado à beleza da liturgia. Para ele, uma cerimônia devia ser bonita, o que não quer dizer medieval ou empolada, mas simplesmente bonita: era a menor das coisas, aos seus olhos, quando se louva o Senhor! Evidentemente, as preocupações do Papa Francisco não são as mesmas. Os sapatos vermelhos, o barrete pomposo, a cerimônia suntuosa que começa desta ou daquela maneira, não são sua principal preocupação. João Paulo II era um pouco assim: quando ele chega da sua Polônia, tinha antes a preocupação da autenticidade que da beleza. Também é verdade que podia ser muito desconcertante. Lembremo-nos de que ele esquiava incógnito nas redondezas de Roma, cruzava uma piscina em Castel Gandolfo na sua chegada, era um papa esportivo que caminhava nas montanhas com horrorosos tênis nos pés. De fato, era um homem prático, e Francisco parece sê-lo também.
E no plano espiritual, os dois papas são próximos?
Há a grande piedade marial de Francisco, que o aproxima incontestavelmente de João Paulo II, mas também sua relação com a oração. Tanto um como o outro, têm necessidade dela, faz parte das suas vidas: eles se levantam muito cedo e rezam durante uma ou duas horas, é seu “pão de cada dia”. Todos os papas são, evidentemente, homens de Deus, mas não têm a mesma maneira de se exprimir. Esta dimensão não vem necessariamente à mente quando se pensa num Paulo VI ou num Bento XVI – o que não quer dizer que eles não rezam, certamente. Com João Paulo II e o Papa Francisco é quase físico: sente-se que eles têm uma fé concreta, e que eles alimentam sua ação com a oração. Pastores apaixonados, não são grandes contemplativos, ao passo que Bento XVI tinha mais um estilo “monacal”, entre seu piano e seus livros. Mas, mesmo aí, se eu aponto o dedo neste ou naquele aspecto evidente, que salta à vista, chamo à prudência: não há nada mais audacioso do que julgar esta dimensão espiritual e de “sondar rins e corações” de um papa.
Francisco foi percebido por muitos desde a sua eleição como um papa que poderia mudar a Igreja... Foi este o caso em relação a João Paulo II em 1978?
Sem dúvida. A primeira mudança que ele encarnou era a de não ser italiano. A segunda, que ele era muito jovem. A terceira, que ele vinha de um país em que a Igreja é muito conservadora, mas com uma reputação de reformadora. Depois, quando começou a falar, começamos a compreender que levou a Igreja para um caminho algo novo, aquele dos direitos humanos. Recordemos sua primeira encíclica, a Redemptoris Hominis, suas primeiras viagens. A Igreja sempre foi muito cautelosa em matéria de Direitos Humanos, e eis que repentinamente um papa vindo de um país comunista fez deles de repente uma prioridade, com todas as consequências que não se imaginava ainda sobre a marcha do mundo. Certamente, o novo papa não partiu em cruzada para lutar contra os mordazes comunistas. Ele agiu a golpe de palavras: “Não tenham medo”, “Abram bem grande as portas a Cristo”... Mas, acima de tudo, qual é o poder do papa senão aquele das palavras? O papa é a voz da Igreja, é um “profeta desarmado”, como foi qualificado: sua arte é aquela do símbolo, do gesto, da imagem, e se situa no campo da convicção, da misericórdia, da esperança. É nisto que João Paulo II foi um grande comunicador.
Para você, Francisco também o é?
Ele conhece bem o poder das palavras e dos gestos. Quando decidiu morar na Casa Santa Marta em vez do Palácio Apostólico, quando saúda todos os fiéis que participam da sua missa, quando recusa o papamóvel na chegada à JMJ do Rio de Janeiro, quando telefona diretamente a esta ou aquela pessoa, estamos no campo simbólico, pastoral, comportamental – mesmo se isso não muda nada quanto ao fundo. É preciso ver que um papa não pode tocar no dogma ou na doutrina: todo papa é, em primeiro lugar, um continuador, portanto, um “conservador”, sua profissão consiste em ser um herdeiro, aquele da Revelação, da mensagem do Evangelho, na continuidade apostólica.
Desde a noite da eleição do Papa Francisco, uma comparação foi esboçada: tivemos o papa da esperança (João Paulo II), depois o papa da fé (Bento XVI) e agora temos o papa do amor (Francisco). Eu acho essa fórmula muito feliz. Esta comparação se encaixa perfeitamente naquilo que vem acontecendo há um ano e resume muito bem os três últimos papas. O que mostra também que há uma continuidade que ultrapassa amplamente os nossos pequenos julgamentos conjunturais. Quando se diz que João Paulo II é o papa da esperança é muito forte e muito verdadeiro. A fé, para o papa teólogo que era Bento XVI, é muito justo. Enfim, que Francisco promete e encarna a caridade, parece evidente quando se observa todos os seus gestos e suas palavras. Os papas se sucedem, não necessariamente se parecem, mas é sua continuidade que faz a história do povo cristão.
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“Francisco, assim como João Paulo II, tem uma fé concreta”. Entrevista com Bernard Lecomte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU