24 Junho 2019
Publicamos a íntegra do discurso do Papa Francisco, proferido por ocasião do encontro promovido pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional - Seção de São Luís, Nápoles, sobre o tema: "A teologia após a Veritatis Gaudium no contexto do Mediterrâneo", no dia 21-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caros alunos e professores
Caros Irmãos Bispos e Sacerdotes, Senhores Cardeais!
Tenho a satisfação de encontrá-los hoje e participar desta conferência. Eu calorosamente retribuo a saudação do caro irmão Patriarca Bartolomeu, um grande precursor da Laudato si' - há anos precursor -, que queria contribuir para a reflexão com uma mensagem pessoal. Obrigado a Bartolomeu, amado irmão.
O Mediterrâneo desde sempre foi um lugar de trânsitos, de trocas e, às vezes, até mesmo de conflitos. Conhecemos muitos. Este lugar hoje nos apresenta várias questões, muitas vezes dramáticas. Elas podem ser traduzidas em algumas perguntas que formulamos no encontro inter-religioso de Abu Dhabi:
- como cuidar uns dos outros na mesma família humana?
- Como alimentar uma convivência tolerante e pacífica que se traduza em autêntica fraternidade?
- Como fazer prevalecer em nossas comunidades o acolhimento do outro e daquele que é diferente de nós porque pertence a uma tradição religiosa e cultural diferente da nossa?
- Como as religiões podem ser formas de fraternidade em vez de muros de separação?
Essas e outras questões pedem para serem interpretadas em vários níveis, e pedem um generoso empenho de escuta, de estudo e de troca ideias para promover processos de libertação, de paz, de irmandade e de justiça. Temos que nos convencer: trata-se de iniciar processos, não fazer definições de espaços, ocupar espaços ... Iniciar processos.
Durante esta Conferência, vocês primeiro analisaram contradições e dificuldades na área do Mediterrâneo, e depois se perguntaram sobre as melhores soluções. Nesse sentido, vocês se perguntam qual teologia seja adequada ao contexto em que vocês vivem e trabalham. Eu diria que a teologia, particularmente neste contexto, é chamada a ser uma teologia do acolhimento e a desenvolver um diálogo sincero com instituições sociais e civis, com centros universitários e de pesquisa, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade, para a construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna e também para a custódia da criação.
Quando no Proêmio da Veritatis Gaudium se menciona o aprofundamento do kerygma e do diálogo como critérios de renovação dos estudos, entende-se dizer que eles estão a serviço do caminho de uma Igreja que coloca cada vez mais a evangelização no centro. Não apologética, não os manuais - como ouvimos: evangelizar. No centro está a evangelização, o que não significa proselitismo. Em diálogo com as culturas e as religiões, a Igreja anuncia a Boa Nova de Jesus e a prática do amor evangélico que Ele pregava como síntese de todo o ensino da Lei, das visões dos Profetas e da vontade do Pai.
O diálogo é, antes de tudo, um método de discernimento e proclamação da Palavra de amor, dirigida a cada pessoa e que, no coração de cada um, quer fixar morada. Somente ouvindo essa Palavra e na experiência do amor que ela comunica, pode-se discernir a atualidade do kerygma. Esse diálogo, assim entendido, é uma forma de acolhimento.
Gostaria de reiterar que "o discernimento espiritual não exclui as contribuições da sabedoria humana, existencial, psicológica, sociológica e moral. Mas as transcende. Não bastam sequer as sábias normas da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça - um presente. Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, ‘conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo’ (cf. Jo 17, 3)." (Exortação apostólica Gaudete et exsultate 170).
As escolas de teologia se renovam com a prática do discernimento e uma maneira de proceder dialógica capaz de criar um correspondente clima espiritual e de prática intelectual. É um diálogo tanto na colocação dos problemas quanto na busca juntos de vias de solução. Um diálogo capaz de integrar o critério vivo da Páscoa de Jesus com o movimento de analogia, que lê na realidade, na criação e na história, nexos, signos e referências teológicas. Isso comporta a assunção hermenêutica do mistério do caminho de Jesus que o leva à cruz e à ressurreição e ao dom do Espírito. Assumir essa lógica jesuana e pascal é indispensável para compreender como a realidade histórica e criada é questionada pela revelação do mistério do amor de Deus. Daquele Deus que na história de Jesus se manifesta - toda vez e dentro de cada contradição - maior no amor e na capacidade de recuperar do mal.
Ambos os movimentos são necessários, complementares: um movimento de baixo para o alto que pode dialogar, com sentido de escuta e discernimento, com cada instância humana e histórica, levando em conta toda a dimensão do ser humano; e um movimento do alto para baixo - onde o "alto" é aquele de Jesus elevado na cruz - que permite, ao mesmo tempo, discernir os sinais do Reino de Deus na história e compreender de maneira profética os sinais do anti-Reino que desfiguram a alma e a história humana. É um método que permite - numa dinâmica constante – confrontar-se com cada instância humana e compreender que luz cristã ilumina as dobras da realidade e quais energias o Espírito do Crucifixo Ressuscitado está despertando, em cada oportunidades, aqui e agora.
O modo dialógico de proceder é o caminho para alcançar onde se formam os paradigmas, as formas de sentir, os símbolos e as representações das pessoas e dos povos. Chegar lá - como "etnógrafos espirituais" da alma dos povos, vamos dizer - para poder dialogar em profundidade e, se possível, contribuir para o seu desenvolvimento com a anunciação do Evangelho do Reino de Deus, cujo fruto é o amadurecimento de uma fraternidade. cada vez mais dilatada e inclusiva. Diálogo e anúncio do Evangelho que podem ocorrer nos moldes delineados por Francisco de Assis na Regra não bulada, justamente logo após sua viagem ao oriente mediterrâneo. Para Francisco há um primeiro modo em que, simplesmente, se vive como cristãos: "O primeiro modo consiste em se absterem de rixas e disputas, submetendo-se ‘a todos os homens por causa do Senhor’ e confessando serem cristãos. " (XVI:FF43). Depois, há um segundo modo pela qual, sempre dóceis aos sinais e à ação do Senhor Ressuscitado e ao seu Espírito de paz, a fé cristã é anunciada como uma manifestação em Jesus do amor de Deus por todos os homens. Fico impressionado com aquele conselho de Francisco aos frades: “Preguem o Evangelho; se necessário usem palavras”. É o testemunho!
Essa docilidade ao Espírito implica um estilo de vida e de proclamação sem espírito de conquista, sem vontade de fazer proselitismo - esta é a praga! - e sem uma intenção agressiva de refutação. Uma modalidade que entra em diálogo "de dentro" com os homens e suas culturas, suas histórias, suas diferentes tradições religiosas; uma modalidade que, coerentemente com o Evangelho, inclui também o testemunho até o sacrifício da vida, como mostram os exemplos luminosos de Charles de Foucauld, dos monges de Tibhirine, o bispo de Oran Pierre Claverie e de tantos irmãos e irmãs que, com o graça de Cristo, foram fiéis com mansidão e humildade e morreram com o nome de Jesus em seus lábios e a misericórdia em seus corações. E aqui estou pensando na não violência como horizonte e saber sobre o mundo, ao qual a teologia deve olhar como seu elemento constitutivo. Os escritos e práticas de Martin Luther King e Lanza del Vasto e outros "artesãos" da paz aqui nos ajudam. Também nos ajuda e encoraja a memória do Beato Giustino Russolillo, que foi aluno desta Faculdade, e de Dom Peppino Diana, o jovem pároco morto pela camorra, que também estudou aqui. E aqui gostaria de mencionar uma síndrome perigosa, que é a "síndrome de Babel". Pensamos que a "síndrome de Babel" seja a confusão que se origina por não entender o que o outro está dizendo. Este é o primeiro passo. Mas a verdadeira "síndrome de Babel" é a de não escutar o que o outro diz e de acreditar que eu sei o que o outro o pensa e o que o outro vai dizer. Esta é a praga!
"Diálogo" não é uma fórmula mágica, mas certamente a teologia é ajudada na sua renovação quando o assume seriamente, quando ele é encorajado e favorecido entre professores e alunos, bem como com as outras formas de saber e com as outras religiões, especialmente o judaísmo e o islamismo. Os estudantes de teologia deveriam ser educados ao diálogo com o judaísmo e o islamismo para entender as raízes comuns e as diferenças de nossas identidades religiosas e, assim, contribuir mais efetivamente para a construção de uma sociedade que valorize a diversidade e promova o respeito, a fraternidade e a coexistência pacífica.
Educar os alunos nisso. Estudei no tempo da teologia decadente, da escolástica decadente, na época dos manuais. Entre nós fazíamos uma brincadeira, todas as teses teológicas eram testadas com esse esquema, um silogismo: 1º. As coisas parecem ser assim. 2º. O catolicismo está sempre certo. 3º Ergo ... Ou seja, uma teologia de tipo defensivo, apologética, fechada em um manual. Nós brincávamos assim, mas eram as coisas que nos apresentavam naquele tempo de escolástica decadente.
Buscar uma convivência pacífica dialógica. Com os muçulmanos somos chamados a dialogar para construir o futuro das nossas sociedades e nossas cidades; somos chamados a considerá-los parceiros para construir uma convivência pacífica, mesmo quando se verificam episódios chocantes executados por grupos fanáticos inimigos do diálogo, como a tragédia da última Páscoa no Sri Lanka. Ontem, o cardeal de Colombo me disse: "Depois de ter feito o que eu tinha que fazer, percebi que um grupo de pessoas, cristãos, queria ir ao bairro muçulmano para matá-los. Convidei o Imã comigo, de carro, e juntos fomos lá para convencer os cristãos que somos amigos, que aqueles são extremistas, que não são os nossos." Essa é uma atitude de proximidade e diálogo. Formar os estudantes ao diálogo com os judeus implica educá-los no conhecimento de sua cultura, seu modo de pensar, de sua língua, a fim de compreender e viver melhor a nossa relação no plano religioso. Nas faculdades teológicas e nas universidades eclesiásticas, os cursos de língua e cultura árabe e hebraica devem ser encorajados, assim como o entendimento mútuo entre estudantes cristãos, judeus e muçulmanos.
Eu gostaria de apresentar dois exemplos concretos de como o diálogo que caracteriza uma teologia do acolhimento pode ser aplicado aos estudos eclesiásticos. Primeiro de tudo, o diálogo pode ser um método de estudo, além de um ensinamento.
Quando lemos um texto, dialogamos com ele e com o "mundo" do qual é expressão; e isso também se aplica a textos sagrados, como a Bíblia, o Talmud e o Alcorão. Frequentemente, então, interpretamos um determinado texto em diálogo com outros da mesma época ou de diferentes épocas. Os textos das grandes tradições monoteístas, em alguns casos, são o resultado de um diálogo. Podem ocorrer casos de textos que são escritos para responder a perguntas sobre questões importantes da vida postas por textos que os precederam. Essa é também uma forma de diálogo.
O segundo exemplo é que o diálogo pode ser realizado como hermenêutica teológica em um tempo e um lugar específicos. No nosso caso: o Mediterrâneo no início do terceiro milênio. Não é possível ler este espaço de forma realista, se não em diálogo e como uma ponte - histórica, geográfica, humana - entre a Europa, a África e a Ásia. É um espaço em que a ausência de paz produziu múltiplos desequilíbrios regionais e mundiais, e cuja pacificação, através da prática do diálogo, poderia, ao contrário, contribuir enormemente para iniciar processos de reconciliação e paz. Giorgio La Pira nos diria que se trata, para a teologia, de uma questão de contribuir para construir sobre toda a bacia do Mediterrâneo uma "grande tenda de paz", onde os diferentes filhos do pai comum Abraão possam conviver em respeito mútuo. Não esqueçamos o pai comum.
O diálogo como hermenêutica teológica pressupõe e comporta a escuta consciente. Isso também significa escutar a história e a vivência dos povos que compartilham o espaço mediterrâneo para poder decifrar os eventos que ligam o passado ao presente e poder apreender suas feridas junto com suas potencialidades. Em particular, trata-se de apreender a maneira pela qual as comunidades cristãs e as existências proféticas individuais souberam - até recentemente - encarnar da fé cristã em contextos eventualmente de conflito, de minoria e de convivência plural com outras tradições religiosas.
Tal escuta deve ser profundamente interna às culturas e povos também por outro motivo. O Mediterrâneo é precisamente o mar da mestiçagem - se não compreendermos a mestiçagem, nunca compreenderemos o Mediterrâneo - um mar geograficamente fechado em relação aos oceanos, mas culturalmente sempre aberto ao encontro, ao diálogo e à inculturação recíproca. Também há a necessidade de narrativas renovadas e compartilhadas que - a partir da escuta das raízes e do presente - falem aos corações das pessoas, narrativas em que seja possível reconhecer-se de maneira construtiva, pacífica e geradora de esperança.
A realidade multicultural e plurirreligiosa do novo Mediterrâneo é formada com essas narrativas, no diálogo que nasce da escuta das pessoas e dos textos das grandes religiões monoteístas e, especialmente, na escuta dos jovens. Estou me referindo nos estudantes de nossas faculdades de teologia, àqueles das universidades "leigas" ou de outras inspirações religiosas. “Quando a Igreja - e, podemos acrescentar, a teologia - abandona esquemas rígidos e se abre para uma escuta atenta e disponível dos jovens, essa empatia a enriquece, porque ‘permite aos jovens dar sua contribuição à comunidade, ajudando-a a apreender sensibilidades novas e propor perguntas inéditas’" (Ex. ap. pós sin. Christus vivit, 65). Apreender sensibilidades novas: este é o desafio.
O aprofundamento do kerygma é feito com a experiência do diálogo que nasce da escuta e que gera comunhão. O próprio Jesus anunciou o reino de Deus dialogando com todo tipo e categoria de pessoas do judaísmo de seu tempo: com os escribas, os fariseus, os doutores da lei, os publicanos, os doutos, os simples, os pecadores. A uma mulher samaritana Ele revelou, na escuta e no diálogo, o dom de Deus e sua própria identidade: abriu-lhe o mistério de sua comunhão com o Pai e da abundante plenitude que emana dessa comunhão. A sua divina escuta ao coração humano abre esse coração para acolher a plenitude do Amor e a alegria da vida. Nada se perde com o diálogo. Sempre se ganha. No monólogo todos perdemos.
Uma teologia do acolhimento que, como método interpretativo da realidade, adota o discernimento e o diálogo sincero, necessita de teólogos que saibam trabalhar juntos e de forma interdisciplinar, superando o individualismo no trabalho intelectual. Precisamos de teólogos - homens e mulheres, presbíteros, leigos e religiosos - que, em um enraizamento histórico e eclesial e, ao mesmo tempo, abertos às inesgotáveis novidades do Espírito, saibam fugir das lógicas autorreferenciais, competitivas e, de fato, ofuscantes que muitas vezes também existem em nossas instituições acadêmicas e escondidas, muitas vezes, entre as escolas teológicas.
Nesse caminho contínuo de saída de si mesmo e de encontro com o outro, é importante que os teólogos sejam homens e mulheres de compaixão – ressalto isso: que sejam homens e mulheres de compaixão -, tocados pela vida oprimida de muitos, pelas formas de escravidão de hoje, pelos flagelos sociais, pela violência, pelas guerras e pelas enormes injustiças sofridas por tantos pobres que vivem nas margens desse "mar comum". Sem comunhão e sem compaixão, constantemente alimentados pela oração - isso é importante: a teologia só pode ser feita "de joelhos" -, a teologia não só perde a alma, mas perde a inteligência e a capacidade de interpretar a realidade de um modo cristão. Sem compaixão, buscada no Coração de Cristo, os teólogos correm o risco de ser engolidos pela condição do privilégio de quem se coloca prudentemente fora do mundo e não compartilha nada arriscado com a maioria da humanidade. A teologia de laboratório, a teologia pura e "destilada", destilada como água, a água destilada, que não tem nenhum sabor.
Eu gostaria de dar um exemplo de como a interdisciplinaridade que interpreta a história pode ser um aprofundamento do kerygma e, se animada pela misericórdia, pode estar aberta à transdisciplinaridade. Refiro-me em particular a todas as atitudes agressivas e belicosas que marcaram o modo de habitar o espaço mediterrâneo de povos que se diziam cristãos. Aqui devem ser incluídas, tanto as atitudes e as práticas coloniais que tanto moldaram a imaginação e as políticas de tais povos, quanto as justificativas para todos os tipos de guerras, e todas as perseguições cometidas em nome de uma religião ou suposta pureza racial ou doutrinária. Nós também fizemos essas perseguições. Eu me lembro, na Chanson de Roland, depois de vencer a batalha, os muçulmanos eram enfileirados, todos na frente da pia batismal. Ali ficava um sujeito com uma espada. E faziam eles escolherem: ou você se batiza ou adeus! Você vai para o outro lado. Ou o batismo ou a morte. Nós fizemos isso. Comparado a essa complexa e dolorosa história, o método de diálogo e da escuta, guiado pelo critério evangélico da misericórdia, pode enriquecer muito o conhecimento e a releitura interdisciplinar, fazendo emergir também, por contraste, as profecias de paz que o Espírito nunca deixou de despertar.
A interdisciplinaridade como critério para a renovação da teologia e dos estudos eclesiásticos comporta o empenho de revisitar e requestionar continuamente a tradição. Revisitar a tradição! E requestionar. De fato, a escuta como teólogos cristãos não acontece a partir do nada, mas de um patrimônio teológico que - justamente dentro do espaço mediterrâneo - afunda suas raízes nas comunidades do Novo Testamento, na rica reflexão dos Padres e em múltiplas gerações de pensadores e testemunhas. É aquela tradição viva que chegou até nós que pode contribuir a iluminar e decifrar muitas questões contemporâneas. Desde que seja relida com o desejo sincero de purificação da memória, ou seja, sabendo discernir qual foi o veículo da intenção originária de Deus, revelada no Espírito de Jesus Cristo, e quanto foi, ao contrário, infiel a essa misericordiosa e salvífica intenção. Não nos esqueçamos de que a tradição é uma raiz que nos dá vida: nos transmite a vida para que possamos crescer e florescer, dar frutos. Muitas vezes pensamos na tradição como em um museu. Não! Na semana passada, ou na anterior, li uma citação de Gustav Mahler que dizia: "A tradição é a garantia do futuro, não a guardiã das cinzas". É lindo! Vivemos a tradição como uma árvore que vive e cresce. Já no século V, Vicente de Lérins compreendia-o bem: o crescimento da fé, da tradição, com estes três critérios: annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. É a tradição! Mas sem tradição você não pode crescer! Tradição para crescer, como a raiz da árvore.
A teologia após a Veritatis gaudium é uma teologia em rede e, no contexto do Mediterrâneo, em solidariedade com todos os "náufragos" da história. Na tarefa teológica que nos espera, lembremos de São Paulo e do caminho do cristianismo das origens que liga o Oriente ao Ocidente. Aqui, muito perto de onde Paulo desembarcou, não se pode esquecer que as viagens do Apóstolo foram marcadas por evidentes momentos críticos, como no naufrágio no centro do Mediterrâneo (At:27,9).
Naufrágio que faz pensar naquele de Jonas. Mas Paulo não foge e pode, aliás, pensar que Roma seja a sua Nínive. Pode pensar em corrigir a atitude derrotista de Jonas ao redimir sua fuga. Agora que o cristianismo ocidental aprendeu com os tantos erros e questões críticas do passado, pode retornar às suas fontes na esperança de poder testemunhar a Boa Nova aos povos do oriente e do ocidente, do norte e do sul. Teologia - manter a mente e o coração fixos no "Deus misericordioso e clemente" (cf. Jonas 4,12) - pode ajudar a Igreja e a sociedade civil a retomar o caminho na companhia de tantos náufragos, encorajando as populações do Mediterrâneo a recusar toda tentação de reconquista e fechamento identitário. Ambas nascem, se alimentam e crescem do medo. Teologia não pode ser feita em um ambiente de medo.
O trabalho das faculdades teológicas e das universidades eclesiásticas contribui para a construção de uma sociedade justa e fraterna, na qual o cuidado da criação e a construção da paz são o resultado da colaboração entre instituições civis, eclesiais e inter-religiosas. É antes de tudo um trabalho em "rede evangélica", ou seja, em comunhão com o Espírito de Jesus que é o Espírito de paz, Espírito de amor em ação na criação e nos corações de homens e mulheres de boa vontade de toda raça, cultura e religião. Como a linguagem usada por Jesus para falar do Reino de Deus, assim, analogamente, a interdisciplinaridade e o trabalho em rede querem favorecer o discernimento da presença do Espírito do Ressuscitado na realidade. A partir da compreensão da Palavra de Deus em seu contexto mediterrâneo originário, é possível discernir os sinais dos tempos em novos contextos.
Eu enfatizei tanto a Veritatis Gaudium. Gostaria de agradecer publicamente aqui, porque está presente, D. Zani, que foi um dos autores deste documento. Obrigado! Qual é então a função da teologia depois da Veritatis gaudium no contexto do Mediterrâneo? Então, qual é a tarefa? Deve sintonizar-se com o Espírito de Jesus Ressuscitado, com a sua liberdade de andar pelo mundo e alcançar as periferias, mesmo aquelas do pensamento. Aos teólogos cabe a tarefa de sempre favorecer o encontro das culturas com as fontes da Revelação e da Tradição. As antigas arquiteturas do pensamento, as grandes sínteses teológicas do passado são minas da sabedoria teológica, mas não podem ser aplicadas mecanicamente às questões atuais.
Trata-se de uma questão de valorizá-las para encontrar novos caminhos. Graças a Deus, as fontes primeiras da teologia, isto é, a Palavra de Deus e o Espírito Santo, são inesgotáveis e sempre fecundas; portanto, pode-se e deve-se trabalhar na direção de um "Pentecostes teológico", que permita às mulheres e aos homens do nosso tempo escutar "em sua própria língua" uma reflexão cristã que responda à sua busca de sentido e de vida plena. Para que isso aconteça, algumas suposições são indispensáveis.
Antes de mais nada, é preciso partir do Evangelho da misericórdia, isto é, do anúncio feito pelo próprio Jesus e dos contextos originais da evangelização. A teologia nasce no meio de seres humanos concretos, encontrados com o olhar e o coração de Deus, que vai à sua busca com amor misericordioso. Até mesmo fazer teologia é um ato de misericórdia. Gostaria de repetir aqui, desta cidade onde não há apenas episódios de violência, mas que conserva tantas tradições e tantos exemplos de santidade – além de uma obra-prima de Caravaggio sobre as obras de misericórdia e o testemunho do santo médico Giuseppe Moscati - gostaria de repetir o que escrevi na Faculdade de Teologia da Universidade Católica da Argentina: “Até os bons teólogos, como os bons pastores, têm o cheiro de povo e de rua e, com a sua reflexão, derramam óleo e vinho nas feridas dos homens. Que a teologia seja expressão de uma Igreja que é ‘hospital de campo’, que vive sua missão de salvação e cura no mundo! A misericórdia não é apenas uma atitude pastoral, mas é a própria substância do Evangelho de Jesus. Encorajo vocês a estudar como, nas várias disciplinas - dogmática, moral, espiritualidade, direito e assim por diante - pode ser refletida a centralidade da misericórdia. Sem misericórdia, a nossa teologia, o nosso direito, nosso cuidado pastoral correm o risco de desmoronar na mesquinhez burocrática ou na ideológica, que por sua natureza quer domesticar o mistério". [1] A teologia, pela via da misericórdia, defende-se da domesticação do mistério.
Em segundo lugar, é necessária uma séria assunção da história dentro da teologia, como espaço aberto ao encontro com o Senhor. "A capacidade de vislumbrar a presença de Cristo e o caminho da Igreja na história nos tornam humildes e nos afastam da tentação de nos refugiarmos no passado para evitar o presente. E essa foi a experiência de tantos estudiosos, que começaram, eu não digo ateus, mas um tanto agnósticos, e depois encontraram Cristo. Porque a história não poderia ser entendida sem essa força". [2]
A liberdade teológica é necessária. Sem a possibilidade de experimentar novos caminhos, nada de novo se cria, e não resta espaço para a novidade do Espírito do Ressuscitado: "A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho" (Ex. ap. Evangelii gaudium, 40). Isso também significa uma revisão adequada da ratio studiorum. Sobre a liberdade de reflexão teológica, eu faria uma distinção. Entre os estudiosos, é preciso avançar com liberdade; depois, em última análise, será o magistério a dizer algo, mas uma teologia não pode ser feita sem essa liberdade. Mas, ao pregar ao Povo de Deus, por favor, não ferir a fé do Povo de Deus com questões controversas! As questões controversas devem permanecer apenas entre os teólogos. É o seu trabalho. Mas para o povo de Deus é necessário dar a substância que alimenta a fé e que não a relativiza.
Finalmente, é indispensável dotar-se de estruturas leves e flexíveis, que manifestem a prioridade dada ao acolhimento e ao diálogo, ao trabalho interdisciplinar e transdisciplinar e em rede. Os estatutos, a organização interna, o método de ensino e a ordenação dos estudos deveriam refletir a fisionomia da Igreja "em saída". Tudo deve ser orientado nos tempos e nas maneiras de favorecer, tanto quanto possível, a participação daqueles que desejem estudar teologia: além de seminaristas e dos religiosos, também mulheres e homens leigos e religiosos. Em particular, a contribuição que as mulheres estão dando e pode dar à teologia é indispensável e sua participação deve, portanto, ser apoiada, como fazem nesta Faculdade, onde há uma boa participação de mulheres como professoras e como estudantes.
Este belíssimo lugar, sede da Faculdade teológica dedicada a São Luís, cuja festa é celebrada hoje, é um símbolo de uma beleza a ser compartilhada, aberta a todos. Sonho Faculdades reológicas onde se viva a convivência das diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e do acolhimento; onde se experimente o modelo do poliedro do saber teológico em vez de uma esfera estática e desencarnada. Onde a pesquisa teológica seja capaz de promover um processo de inculturação desafiador, mas cativante.
Os critérios do Proemio da Constituição Apostólica Veritatis Gaudium são critérios evangélicos. O kerygma, o diálogo, o discernimento, a colaboração, a rede – eu acrescentaria também a parrésia, que foi citada como critério, que é a capacidade de estar no limite, junto com o hypomoné, de tolerar, estar no limite para ir para a frente - são elementos e critérios que traduzem o modo como o Evangelho foi vivido e anunciado por Jesus e com o qual também pode ser transmitido hoje pelos seus discípulos.
A teologia após a Veritatis gaudium é uma teologia kerygmática, uma teologia do discernimento, da misericórdia e do acolhimento, que é colocada em diálogo com a sociedade, as culturas e as religiões para a construção da convivência pacífica de pessoas e povos. O Mediterrâneo é a matriz histórica, geográfica e cultural do acolhimento kerygmático praticado com o diálogo e com a misericórdia. Dessa pesquisa teológica, Nápoles é exemplo e um laboratório especial. Bom trabalho!
*
[1] Carta ao Grão-chanceler da “Pontificia Universidad Católica Argentina” no centenário da Faculdade de Teologia, 3 de março de 2015.
[2] Discurso aos participantes do encontro da Associação de professores de História da Igreja, 12 de janeiro de 2019.
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'Por uma teologia do acolhimento e do diálogo, do discernimento e da misericórdia', segundo o papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU