12 Mai 2017
“Os problemas que temos pela frente não admitem varinhas mágicas e atalhos, mas requerem nada menos do que outra revolução cultural.”
A opinião é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (falecido em janeiro deste ano), em artigo publicado por La Repubblica, 11-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trata-se de um trecho do livro La grande regressione (organizado por Heinrich Geiselberger, Ed. Feltrinelli, 240 páginas).
Eis o texto.
Ser um Estado - grande ou pequeno, não importa - significa sempre algo muito simples: ter soberania territorial, ou seja, a capacidade de agir dentro das próprias fronteiras com base na vontade daqueles que habitam no seu território, sem responder às ordens de qualquer outro.
Depois de uma época em que as vizinhanças se fundiram ou foram percebidas como destinadas a se fundir em unidades maiores chamadas de Estados-nação (tendo sempre à espreita a perspectiva de uma unificação e de uma homogeneização da cultura, da lei, da política e da vida humana em um futuro que, se não era imediato, sem dúvida, chegaria), depois da longa guerra declarada pelos grandes aos pequenos, do Estado ao local e ao “paroquial”, entramos agora na época da “subsidiarização” em que os Estados não veem a hora de se livrar dos seus deveres, das suas responsabilidades e – graças à globalização e à nascente situação cosmopolita – da tarefa ingrata de trazer o caos novamente à ordem, enquanto as velhas localidades e os velhos municípios cerram fileiras para assumirem essas responsabilidades e lutar por algo mais.
O indicador mais visível, repleto de conflito e potencialmente explosivo do momento presente, é a vontade de renunciar à visão kantiana de uma futura Bürgerliche Vereinigung der Menschheit, uma unificação civil da humanidade, que coincide com a realidade da globalização avançada e imperante das finanças, da indústria, do comércio, da informação e de todas as formas de violação da lei.
Associa-se a isso o confronto de um espírito e de um sentimento klein aber mein (“pequeno, mas meu”) com o dado de uma condição existencial cada vez mais cosmopolita. No rastro da globalização e da divisão dos poderes políticos que dela derivam, de fato, os Estados estão se transformando em vizinhanças bastante grandes, comprimidos dentro de fronteiras permeáveis, traçadas de modo vago e defendidas de modo ineficiente.
Enquanto isso, as vizinhanças de antigamente – consideradas no ponto de serem descartadas pela história, junto com todos os outros pouvoirs intermediaires – lutam para assumir o papel de “pequenos Estados”, explorando da melhor forma possível aquilo que resta das políticas quase locais e da inalienável prerrogativa monopolista, antigamente zelosamente conservada pelo Estado, de dividir “nós” de “eles” (e vice-versa). O “progresso”, para esses pequenos Estados, reduz-se a um “retorno às tribos”.
Em um território povoado por tribos, as partes em conflito evitam e renunciam, sem hesitação, a se convencerem e a se converterem reciprocamente; a inferioridade de um membro – de um membro qualquer – de uma tribo estrangeira é e deve continuar sendo uma fraqueza predestinada, eterna e incurável, ou, pelo menos, deve ser vista e tratada como tal. A inferioridade da outra tribo é a sua condição permanente e irreparável, o seu estigma indelével destinado a vencer toda tentativa de reabilitação.
Uma vez que a divisão entre “nós” e “eles” foi instituída de acordo com essas regras, o escopo de todo encontro entre os antagonistas não é mais a intemperança, mas a busca ou a criação de mais provas do fato de que qualquer intemperança é irrazoável e fora de questão. Preocupados em não acordar o cão que dorme e em evitar os infortúnios, os membros das tribos bloqueadas no círculo de superioridade/inferioridade não se falam, mas se ignoram. Para aqueles que residem (ou foram exilados) nas zonas cinzentas de fronteira, a condição de “ser desconhecido e, portanto, ameaçador” é o efeito da sua intrínseca ou hipotética resistência ou subtração às categorias cognitivas utilizadas como pilares da “ordem” e da “estabilidade”.
O seu pecado capital ou o seu crime imperdoável consiste em ser a causa de uma dificuldade mental e pragmática, derivada da confusão comportamental que eles não podem deixar de produzir (aqui, pode-se pensar em Ludwig Wittgenstein, que definia o compreender como saber como seguir em frente).
Além disso, esse pecado encontra obstáculos formidáveis na sua redenção, por causa do “nossa” obstinada recusa de instaurar com “eles” um diálogo voltado a abordar e a superar a impossibilidade inicial da compreensão. A atribuição às zonas cinzentas é um processo que se autoalimenta, posto em movimento e intensificado pelo desaparecimento ou, melhor, pela rejeição a priori da comunicação.
Elevar a dificuldade da compreensão ao status de uma instância ou de um dever moral imposto por Deus ou pela história é, no fim das contas, a primeira causa e um estímulo fundamental para a definição e para o reforço das fronteiras que “nos” separam “deles”, embora não com base exclusivamente étnica ou religiosa e na função fundamental que devem realizar. Como interface entre os dois competidores, a zona cinzenta da ambiguidade e da ambivalência representa inevitavelmente o território principal – e muitas vezes único – no qual se projetam as implacáveis hostilidades e se travam as batalhas entre “nós” e “eles”.
Recebendo em 2016 o Prêmio Carlos Magno, o Papa Francisco – talvez a única figura pública dotada de autoridade planetária por ter a coragem e a determinação de cavar as raízes profundas do mal, da confusão e da impotência atual e de expô-las – disse:
“Se há uma palavra que devemos repetir até cansarmos é esta: diálogo. Somos convidados a promover uma cultura do diálogo, procurando com todos os meios abrir instâncias para que isso seja possível e nos permita reconstruir o tecido social. A cultura do diálogo implica um autêntico aprendizado, uma ascese que nos ajude a reconhecer o outro como um interlocutor válido; que nos permita olhar para o forasteiro, o migrante, a pessoa que pertence a outra cultura como para um sujeito a ser escutado, considerado e apreciado. É urgente, para nós, hoje, envolver todos os atores sociais na promoção de ‘uma cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro’, levando adiante ‘a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões’ (exortação apostólica Evangelii gaudium, 239). A paz será duradoura na medida em que armarmos os nossos filhos com as armas do diálogo, lhes ensinarmos a boa batalha do encontro e da negociação. Desse modo, poderemos deixar-lhes de herança uma cultura que saiba delinear estratégias não de morte, mas de vida, não de exclusão, mas de integração”.
Logo depois, o Papa Francisco acrescenta uma frase que contém outra mensagem estreitamente ligada à cultura do diálogo, como sua autêntica condição sine qua non: “Essa cultura do diálogo, que deveria ser inserida em todos os percursos escolares como eixo transversal das disciplinas, ajudará a inculcar nas jovens gerações um modo de resolver os conflitos diferente daquele a que lhes estamos acostumando”.
Pondo uma cultura do diálogo como tarefa educacional e chamando-nos para o papel de professores, ele afirma, sem ambiguidade, que os problemas que hoje nos afligem estão destinados a durar ainda por muito tempo – problemas que tentamos, em vão, resolver dos modos com os quais estamos acostumados, mas para os quais a cultura do diálogo tem uma chance de encontrar soluções mais humanas (e, esperamos, mais eficazes).
Um velho provérbio chinês, ainda muito atual, convida aqueles que estão preocupados com o próximo ano a semear trigo e aqueles que estão preocupados com os próximos 100 anos a educar as pessoas. Os problemas que temos pela frente não admitem varinhas mágicas e atalhos, mas requerem nada menos do que outra revolução cultural.
Nesse sentido, eles impõem uma reflexão e um planejamento de longo prazo, duas artes infelizmente esquecidas e raramente postas em prática nestes tempos apressados, vividos sob a tirania do momento. Precisamos recuperar e reaprender essas artes. Para fazer isso, serão necessárias mentes lúcidas, nervos de aço e muita coragem. Acima de tudo, será necessária uma autêntica visão global de longo prazo – e muita paciência.
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A arte do diálogo é a nossa revolução. Artigo de Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU