02 Setembro 2023
O padre José Maria Brito, diretor do portal dos jesuítas em Portugal, procura enquadrar as recentes acusações de terrorismo imputadas pelo governo de Daniel Ortega à Universidade Centro-americana (UCA), propriedade da Companhia de Jesus, no contexto repressivo que se vive na Nicarágua.
A reportagem é de José Maria Brito, publicada por Ponto SJ, e reproduzida por 7Margens, 31-08-2023.
Em 16 de agosto chegou-nos a notícia da dissolução da Universidade Centro-americana (UCA) na Nicarágua, instituição da Companhia de Jesus fundada em 1960 que assim se juntava a mais de uma dezena de instituições do ensino superior dissolvidas no país desde 2022.
Dias depois foi cancelada uma das personalidades jurídicas que enquadra a ação da Companhia de Jesus na Nicarágua e apreendidos os bens associados a essa pessoa jurídica. Estes fatos levaram a que muitos jesuítas e comunidades inacianas espalhadas pelo mundo voltassem sua atenção para este país da América Central onde, desde 2018, a repressão e a violação sistemática dos direitos humanos, numa investida contra a sociedade civil e contra a Igreja Católica, têm vindo a aumentar.
O ataque à Companhia de Jesus serviu de alerta para que lancemos um olhar mais crítico sobre o regime político do presidente Daniel Ortega (no poder desde 2006) que, juntamente com a sua mulher Rosario Murillo (vice-presidente desde 2017), tem desmantelado o Estado de Direito, governado de um modo autoritário e persecutório.
O Ponto SJ procura enquadrar os recentes ataques à Companhia de Jesus no contexto repressivo que se vive na Nicarágua de um modo cada vez mais intenso. Para começar, talvez ajude conhecer um pouco melhor a realidade histórica deste país.
A Nicarágua está localizada na região da América Central e é cercada pelo mar das Caraíbas a leste e pelo Oceano Pacífico a oeste. A norte faz fronteira com Honduras e a sul com a Costa Rica. Tem cerca de 129.494 quilômetros quadrados e mais de 6,850 milhões de habitantes. Em 2021 ocupava o 126º posto no Índice de Desenvolvimento Humano (no mesmo índice, Portugal encontrava-se no 38º).
Mais de 80% da população faz parte de grupos cristãos, sendo que a maior religião é o catolicismo. Segundo o censo realizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos do Governo da Nicarágua em 2005, 58,5% da população era católica e 21,6% era protestante evangélica. No censo de 2010, a proporção de católicos caiu para 47,5%, enquanto a de evangélicos subiu para 34,6%. Segundo dados recentes de 2018, os grupos católicos rondam os 45%, e os protestantes ou evangélicos um número aproximado.
Segundo dados recentes de 2018, os grupos católicos rondam os 45%, e os protestantes ou evangélicos um número aproximado
Cristóvão Colombo chegou ao país em 1502 e a Nicarágua permaneceu sob administração colonial até sua independência em 1838. Durante uma parte significativa do período colonial, León e Granada foram as principais cidades. León teve um desenvolvimento caracterizado por se tornar um importante polo de pensamento liberal e intelectual, enquanto a cidade de Granada cresceu principalmente como um centro voltado para atividades agrícolas. As tensões geradas entre estes dois polos acabaram por levar a um acordo assinado em 1857 estabelecendo Manágua como a capital.
Durante a segunda metade do século XIX, os conservadores exerceram o domínio na Nicarágua, mas em 1893, os progressistas assumiram a presidência e desencadearam uma repressão contra o governo anterior. Permaneceram no poder até 1909, quando a influência dos Estados Unidos levou os conservadores de volta ao poder, apoiados por uma presença militar dos marines americanos no país. Em 1925, as forças militares americanas deixaram a Nicarágua, porém isso resultou num conflito entre progressistas e conservadores, evoluindo para uma guerra civil. Em resposta, os marines foram novamente enviados ao território em 1927, a fim de encerrar o confronto.
Nas eleições de 1928 e 1932, os Estados Unidos supervisionaram a escolha de dois presidentes progressistas. As tropas norte-americanas deixaram a Nicarágua em 1933, após terem treinado a Guarda Nacional Nicaraguense para preservar a estabilidade interna. No ano seguinte, o líder da Guarda Nacional, Anastasio Somoza García, esteve envolvido no assassinato de César Augusto Sandino, líder rebelde progressista. Em 1936, Somoza ganhou as eleições presidenciais e governou de maneira autoritária durante duas décadas. Apesar disso, os seguidores de Sandino persistiram na resistência armada. Somoza foi assassinado em 1956 e substituído pelo seu filho, Luís Somoza. Em 1962, a guerrilha estabeleceu a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), com o objetivo de destituir os Somoza do poder. Posteriormente, Anastasio Somoza sucedeu ao seu irmão Luís Somoza. A FSLN tornou-se uma importante força política na Nicarágua.
Ao longo de quatro décadas, a família Somoza liderou um regime ditatorial que tinha como prioridade a defesa dos seus interesses comerciais e o enriquecimento pessoal. Em 1979, após um período de violência, o ditador Somoza foi forçado a exilar-se no Paraguai, onde foi assassinado. A FSLN estabeleceu uma junta de reconstrução nacional liderada por Daniel Ortega Saavedra, que garantiu os direitos civis e defendeu a criação de um Conselho de Estado, uma Assembleia e uma nova Constituição. Daniel Ortega seria eleito presidente em 1984. Em 1989, um conselho eleitoral foi formado para preparar as eleições de 1990, ano em que Daniel Ortega foi derrotado por Violeta Barrios de Chamorro. Após a vitória da candidata da União Nacional de Oposição (UNO), os rebeldes sandinistas retomaram a luta armada. Isso foi seguido por diversos protestos contra a inflação, o desemprego e a crise econômica generalizada. Com assistência internacional, a situação começou a melhorar, e a partir de 1990, a presidente Violeta Chamorro adotou uma abordagem conciliadora para governar a Nicarágua.
Daniel Ortega manteve a sua atividade política sempre ligado à FSLN, tendo perdido as eleições presidenciais em 1996 e 2001. Em 2006 voltaria a ser eleito presidente, mantendo-se até hoje no poder. Em 2014 fez aprovar na Assembleia Nacional da Nicarágua o fim do limite dos mandatos presidenciais, sendo que até a esse momento, a Constituição estabelecia o limite de dois mandatos consecutivos.
Nessa mesma altura, foi decidido que a eleição do presidente se faria por maioria relativa, sendo posto de parte o limite de 35% dos votos. O Parlamento nicaraguense concordou ainda em ceder autoridade ao presidente, permitindo que este emitisse decretos com força de lei e passasse a ter a capacidade de estabelecer ou modificar impostos. Em 2017, a mulher de Daniel Ortega, Rosario Murillo tomou posse como vice-presidente do país, já depois de ter sido porta-voz do governo.
Esta reforma Constitucional imposta por Daniel Ortega foi criticada pela Universidade Centro-americana (UCA), da Companhia de Jesus, e, a partir desse momento, as relações entre o governo e os jesuítas começaram a deteriorar-se. Na primeira fase de governação sandinista, houve uma colaboração significativa da Companhia de Jesus quer em nível da reforma agrária, quer em nível da alfabetização.
Com o reforço dos poderes presidenciais ocorridos em 2014, não é de estranhar uma crescente centralização do poder no presidente da Nicarágua, mas é a partir de 2018 que o seu autoritarismo se torna cada vez mais evidente e implacável.
Este reforço da repressão governamental foi desencadeado pelos protestos pacíficos contra as reformas no sistema de Segurança Social, que começaram a 18-04-2018, pois Daniel Ortega optou por uma resposta violenta para lidar com a agitação social. Essa resposta originou a morte de mais de 300 pessoas, provocou mais de 2.000 feridos, levou à prisão arbitrária de centenas de pessoas e retirou a cidadania nicaraguense a mais de 300 cidadãos. A instabilidade social e econômica e o ambiente de repressão levaram a que milhares de pessoas abandonassem a Nicarágua, dados que foram pormenorizadamente analisados num relatório da Anistia Internacional.
Nesse relatório fica claro o modo como a população e a sociedade civil (ONGs, defensores dos direitos humanos, jornalistas) têm sido violentados nos seus direitos, através do uso excessivo da força pelas autoridades policiais e por grupos paramilitares apoiados pelo governo. Aqui ficam igualmente demonstradas as sucessivas arbitrariedades do sistema judicial cuja independência face ao poder político deixou de existir.
Um dos fatos mencionados pelo relatório da Anistia Internacional foi a ilegalização, nos últimos cinco anos, de mais 3.000 organizações ligadas a meios de comunicação social, à defesa dos direitos humanos, de organizações culturais, educacionais e de apoio social e associações empresariais, entre outras. Em muitos destes casos, os bens destas organizações foram nacionalizados. Entre estas organizações encontram-se estruturas que estavam ligadas às Missionárias da Caridade fundadas pela Madre Teresa de Calcutá (expulsas do país) e a Cruz Vermelha da Nicarágua perseguida, entre outros motivos, por ter prestado assistência aos feridos que resultaram da repressão das manifestações de 2018.
As últimas eleições presidenciais e legislativas (2021) e municipais (2022) decorreram já neste ambiente de repressão e não podem ser consideradas livres e democráticas.
Em 2021 as eleições presidenciais foram antecedidas pela detenção ou exílio da maioria dos candidatos da oposição e contaram apenas com a participação de 25% dos eleitores. Os seus resultados não foram reconhecidos por 25 dos 34 membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entre os poucos países que reconhecem legitimidade a estas eleições estão a Venezuela e a Rússia. É igualmente significativo alguns dos países que enviaram representantes à tomada de posse que se seguiu a esta eleição: China, Irão, Rússia, Índia, Coreia do Norte, Angola e Síria.
Nas eleições municipais de 2022, o partido do presidente estendeu o seu domínio às diversas partes do país. O controlo e falta de verdadeira democracia foram uma vez mais denunciadas, tendo sido identificadas candidaturas que apenas na aparência representavam uma oposição aos sandinistas.
Neste contexto generalizado de silenciamento de todas as forças sociais que denunciam as injustiças no país, não é estranho que a Igreja Católica sofra as consequências do seu compromisso com os mais pobres e com a justiça.
São diversos os relatórios que assinalam as centenas de atos contra a Igreja que ocorreram nos últimos anos. Um desses relatórios foi publicado em maio de 2023 recolhendo dados desde 2018, é da autoria da investigadora Martha Molina e está disponível no site da Ajuda à Igreja que Sofre. Segundo as informações nele recolhidas, nos últimos anos ocorreram mais de 500 incidentes, da responsabilidade do governo liderado por Daniel Ortega, que afetaram a Igreja Católica no país. Isso incluiu o decreto de 26 anos de prisão de Dom Rolando Álvarez, em fevereiro deste ano, por alegada prática de crimes de conspiração e divulgação de notícias falsas.
O bispo nicaraguense preferiu a prisão ao exílio. Além desta prisão, assinala-se ainda o exílio de 37 padres e a expulsão de 32 religiosas do país; várias propriedades da Igreja, incluindo um convento, foram confiscadas, e meios de comunicação católicos, como rádios e televisões, foram fechados. Já depois de publicado este relatório, o número de religiosas expulsas atingiu as 65.
Esta perseguição também já passou pela repressão de manifestantes pacíficos. Num relatório do Centro Nicaraguense dos Direitos Humanos faz-se uma cronologia dos incidentes ocorridos em 2019 e 2020, dos quais se citam dois exemplos: em 18-05-2019 a polícia agrediu vários cidadãos na entrada da Igreja Molagüina, enquanto estavam ajoelhados a rezar e seguravam uma faixa que exigia justiça pelo assassinato do prisioneiro político Eddy Montes Praslin. Em 15-07-2019, forças de choque do governo e paramilitares atacaram na Catedral de León os participantes de um serviço religioso que assinalava o aniversário do assassinato do acólito Sandor Dolmus, morto em junho de 2018.
Em junho de 2022 foram expulsas do país as Missionárias da Caridade fundadas por Madre Teresa de Calcutá. Presentes na Nicarágua desde o fim da década de 1980, as Missionárias da Caridade mantinham uma creche, um lar para raparigas vítimas de abuso ou abandonadas e um lar para idosos. Em setembro do mesmo ano foi também expulsa a congregação das Religiosas da Cruz do Sagrado Coração, que se dedicava a rezar o terço na catedral da diocese de Matagalpa e a promover o culto ao Santíssimo Sacramento.
Já este ano foram proibidas as procissões da Semana Santa, nomeadamente a Via-Sacra, sendo que a maioria das igrejas realizou esta celebração no interior dos templos. No entanto, houve 17 pessoas presas por desafiar esta ordem. Um dos presos foi um jornalista que fazia a cobertura da procissão. Também este ano foi encerrada a embaixada do Vaticano na Nicarágua.
Neste contexto de perseguição e repressão, a Universidade Centro-americana (UCA) da Companhia de Jesus desempenhou sempre um papel importante, incentivando uma reflexão e um pensamento críticos relativamente à situação política e social da Nicarágua. Foi esta atitude que acabou por levar à dissolução da UCA, ao congelamento das suas contas, à confiscação dos seus bens e à sua transformação numa nova universidade estatal.
Tendo em conta o enquadramento de tudo o que tem acontecido desde 2018 na Nicarágua e à inexistência de um verdadeiro Estado de Direito naquele país da América Central, é fácil compreender porque é que os jesuítas desmentem tão categoricamente as acusações de Daniel Ortega de que a UCA seria um “centro de terrorismo”.
Já depois da dissolução da UCA, a pessoa jurídica da Associação Companhia de Jesus na Nicarágua foi também anulada. Esta associação era proprietária do edifício em que viviam os jesuítas que trabalhavam na UCA e de uma residência universitária para estudantes bolsistas. Era também através dessa associação que a sede dos jesuítas na América Central (Cúria Provincial), situada em El Salvador, financiava a enfermaria para jesuítas idosos que residiam na Nicarágua. Este corte implicou que três jesuítas com 99, 91 e 85 anos fossem transferidos para El Salvador.
Relativamente a esta associação, a acusação feita foi a de não ter apresentado contas nos últimos três anos. O que realmente se passou foi que a Companhia de Jesus apresentou sempre estas contas pontualmente, mas o governo recusava-se a recebê-las e a documentar essa recusa. Essa recusa permitiu agora ao governo afirmar que não tinha recebido a informação legalmente exigida no que se refere ao estado financeiro da Associação Companhia de Jesus.
Esta arbitrariedade não cancelou, ainda, toda a ação dos jesuítas na Nicarágua. Até que lhes possa ser dada uma eventual ordem de expulsão os jesuítas pretendem continuar naquele país. Ali permanecem 11 jesuítas que trabalham em dois Colégios da Companhia de Jesus e na rede de escolas Fé e Alegria. Esta rede internacional de educação popular congrega, na Nicarágua, 20 escolas do Ensino Básico e Secundário em zonas urbanas e rurais carenciadas. Cada um destes dois colégios e a rede Fé e Alegria têm a sua própria personalidade jurídica que até ao momento permanece ativa.
Tendo em conta o bloqueio do Estado de Direito e da Justiça, as pressões com vista à mudança da situação na Nicarágua terão que vir cada vez mais do exterior. A União Europeia já impôs diversas sanções. As Nações Unidas, na sequência da supressão da UCA, apelaram através do secretário-geral António Guterres à defesa da liberdade acadêmica. Já em fevereiro deste ano um conjunto significativo de intelectuais e escritores pediram através de um abaixo-assinado o fim de abusos de direitos humanos na Nicarágua. Salman Rushdie, Mário Vargas Llosa, Gonçalo M. Tavares e José Eduardo Agualusa foram alguns dos subscritores deste documento.
O porta-voz da Companhia de Jesus que acompanha a situação dos jesuítas na Nicarágua, José Maria Tojeira, SJ, já denunciou de um modo claro o regime de terror, ameaças e prisões que se tem aprofundado naquele país. José Maria Tojeira explicou também em entrevista ao Religión Digital que os jesuítas ponderam “possíveis denúncias em organismos internacionais que zelam pelos direitos humanos, como a ONU e a OEA (Organização dos Estados Americanos), devido à impossibilidade de realizar queixas ou demandas jurídicas dentro da Nicarágua”. O jesuíta espanhol manifestou também apreensão quanto à possível expulsão ou prisão dos jesuítas que permanecem no país.
A Nicarágua funciona como um Estado autoritário e constitui-se, na prática, como um regime ditatorial, como enfatizou o Papa Francisco. Parece claro que a pressão internacional terá que ser mais enfática, determinada e enérgica se existe o desejo da reposição da democracia e do respeito pelos direitos humanos, só assim se pode libertar o povo nicaraguense da asfixia que a sua liberdade tem sofrido, só desse modo se iniciará o desmantelamento de um poder cada vez mais absoluto.
Quanto a Portugal, mesmo reconhecendo os limites que uma mobilização da sociedade civil portuguesa possa ter neste contexto, não deixa de ser assinalável a quase invisibilidade mediática desta situação tão grave ao longos dos últimos cinco anos.
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Nicarágua. A liberdade asfixiada, o poder cada vez mais absoluto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU