Ortega de Pombal. O presidente da Nicarágua continua a guerra contra a Igreja e dissolve a Companhia de Jesus - vídeo com a entrevista do presidente da AUSJAL

Foto: Vatican Media

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28 Agosto 2023

O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, decretou a dissolução da Companhia de Jesus. Segundo o que apareceu no Diário Oficial local, de fato a Companhia foi privada de personalidade jurídica e todos os seus bens foram confiscados pelo Estado. A razão é ilusória, tal como o são todos os atos do tirano nicaraguense nos últimos cinco anos, destinados a tornar impossível a vida da Igreja no país centro-americano: segundo as autoridades, realmente os jesuítas não elaboraram os balanços dos últimos três anos e teriam esquecido de renovar o Conselho de Administração que expirou na primavera de 2020.

A reportagem é de Matteo Matzuzzi, publicada por Il Foglio, 25-08-2023.

Fim da liberdade também para as escolas ligadas à Companhia, claro, que são nacionalizadas.

Enganou-se quem pensava que com o fim da UCA, a Universidade Centro-Americana dirigida pelos jesuítas, se tinha atingido o ponto culminante da perseguição: a expulsão dos jesuítas da universidade, aos quais só tinham sido autorizados a trazer alguns pertences pessoais com eles, foi apenas o aperitivo do que aconteceria uma semana depois. Ortega como o Marquês de Pombal, que ao expulsar os soldados de Inácio de Portugal tornou inevitável que Clemente XIV, em 1773, publicasse o Dominus ac Redemptor decretando a dissolução da Companhia de Jesus.

Se não fosse uma situação dramática, o assunto mereceria ser tratado com ironia, com um presidente e uma vice-presidente (sua esposa) que consideram um país como se fosse seu, decidindo dia a dia quem exilar e quem encarcerar. Estudantes, freiras, padres e bispos: quem não está alinhado não merece clemência. E quando o Papa, numa das habituais entrevistas descontroladas, o chama de louco, ele responde que o verdadeiro louco mora em Roma e se veste de branco.

Há cada vez menos espaço para negociações reais, dada a situação. Desta vez, o regime não teve de inventar nada: bastou copiar e colar em papel timbrado os motivos que levaram à supressão de três mil associações desde 2018. Ortega não gosta de ser discreto: há uma semana, quando se tratou de requisitar Villa Carmen, residência dos jesuítas que dirigiam a UCA, enviou ao local vinte policiais armados. Vinte homens para cinco sacerdotes que foram obrigados a sair porque “a casa é propriedade do Estado da Nicarágua”.

O Conselho Nacional de Universidades, órgão controlado diretamente pelo governo, estabeleceu que a universidade mudará de nome, passando a ser dedicada a um estudante falecido enquanto lutava contra o regime de Somoza no fim dos anos 1960. O procurador-geral esclareceu que a universidade jesuíta não poderia continuar viva, dado que desde 2018 tinham ocorrido "atividades criminosas com armas de fogo, munições letais, morteiros, coquetéis molotov e objetos contundentes, causando perdas econômicas significativas ao país, traindo a confiança dos povo nicaraguense que os acolheu em nosso país”.

O resultado é caótico: centenas de alunos da UCA tentaram transferir-se para a Universidade do Exército, mas foram rejeitados por não terem apresentado a documentação exigida. Outros, admitiu, tiveram de assinar escrituras em que prometem fidelidade e garantem dedicação aos estudos. Nos últimos meses, o governo obrigou as administrações universitárias a entregar os registos com todos os dados dos alunos matriculados. A razão? Simples: o protesto contra Ortega, há cinco anos, começou logo nas universidades, quando estudantes saíram às ruas manifestando-se contra a anunciada reforma previdenciária. As turbas do governo, milícias que não economizam no uso de armas e bastões contra quem não obedece, começaram a restaurar a ordem, com jovens que buscaram abrigo em igrejas, em nome do antigo direito de asilo estabelecido pelo costume. Os militares, ignorantes das regras e práticas, não tiveram muitos problemas em entrar nos edifícios sagrados, espancando centenas de rapazes entre os bancos e os altares. Uma vez até descontaram no cardeal Leopoldo Brenes, arcebispo de Manágua, esbofeteando-o enquanto ele ainda estava vestido com vestes sagradas. Aqui estão os prelados cúmplices dos desordeiros, desestabilizadores da ordem e conspiradores.

Veja no vídeo a entrevista com o presidente da Associação das Universidades da América Latina confiadas à Companhia de Jesus

 

Um sinal claro: nada detém o presidente, nem mesmo o temor a Deus e aos seus representantes na terra. A repressão contra Ortega, nos últimos anos, tem sido um crescendo contínuo: primeiro a expulsão do núncio, D. Waldemar Stanislaw Sommertag, a quem foi ordenado “deixar imediatamente o país”, depois a expulsão das Irmãs Missionárias da Caridade de Madre Teresa, oficialmente expulso por problemas administrativos, mas também suspeito de ajudar os “terroristas”. Por fim, a proibição de manifestação pública da fé cristã, a proibição das procissões, a substituição das celebrações católicas na praça por ritos estudados pela vice-presidente e esposa do chefe de Estado, a devota Rosario Murillo. Tudo isso em meio à prisão de centenas de opositores, sacerdotes obrigados ao silêncio ou também exilados. E então os bispos.

A frente antissandinista podia contar com três pontas de lança: D. Silvio Báez, auxiliar de Manágua, D. Juan Abelardo Mata e D. Rolando Álvarez.

O primeiro foi chamado de volta a Roma - porque estaria ameaçado de morte - com a promessa de novas missões ou de regresso à sua terra natal (está há algum tempo em Miami).

O segundo foi retirado abruptamente pela Santa Sé quinze dias após o 75º aniversário canônico. Foi uma tentativa de mostrar abertura ao diálogo com Ortega, uma troca tácita perfeitamente inserida numa política realista que lembra a época da Ostpolitik de Casaroli: a Igreja procura a paz e retira de cena os prelados mais “exaltados”, o governo reporta a situação ao normal.

O resultado foi que enquanto Roma destituía ou destituía os bispos “problemáticos”, o tirano aprisionava o terceiro, aquele Rolando Álvarez que tinha uma adesão popular sem paralelo e que apareceu nos jornais de todo o mundo enquanto, ajoelhado e com as mãos atrás do chefe, deu as boas-vindas aos soldados que invadiram o arcebispado de Matagalpa.

Ortega não podia tolerar isso e, como ele, muitos ocidentais ficaram fascinados pelo charme do idoso revolucionário latino-americano, que muitas vezes rotulava os três prelados em reflexões cultas e muito chiques como nada mais do que golpistas.

O Vaticano manteve-se em silêncio enquanto a Igreja sofria perseguições. O Papa fez algumas piadas aos jornalistas a bordo do avião, com garantias de diálogo contínuo e com análises que não foram facilmente compreendidas, como por exemplo a observação de que “na América Latina existem situações deste tipo de ambos os lados” (setembro 2022). Francisco acrescentou que “as notícias sobre a Nicarágua são todas claras. Existe diálogo. Tem havido conversa com o governo, há diálogo. Isto não significa que aprovamos tudo o que o governo faz ou que desaprovamos tudo. Não. Há diálogo e há necessidade de resolver problemas. Existem alguns problemas agora. Pelo menos espero que as freiras de Madre Teresa retornem. Estas mulheres são boas revolucionárias, mas do Evangelho! Eles não fazem guerra a ninguém. Na verdade, todos nós precisamos dessas mulheres. Este é um gesto que não se entende… Mas esperemos que voltem. E que o diálogo continue. Mas nunca pare o diálogo. Há coisas que você não entende. Colocar um núncio na fronteira é diplomaticamente sério. O núncio é um cara legal que agora foi nomeado para outro lugar. Essas coisas são difíceis de entender e também difíceis de engolir.” Em suma, discreto aqui também, cuidado.

Mas se houve diálogo, os resultados não foram vistos. Tanto que alguns meses depois, em fevereiro, Dom Rolando Álvarez foi condenado a 26 anos e quatro meses de prisão por ter sido considerado “traidor da pátria”. Apenas 24 horas antes da sentença, ao vivo na televisão, Ortega definiu o prelado como “terrorista”, “soberbo”, “fanático”, “louco”, “energúmeno”. Jogado na cadeia sem delicadeza ou consideração, porque “é um homem comum e qualquer”.

O presidente ficou furioso porque sabia que Álvarez estava se tornando um mártir: havia proposto que ele partisse, embarcado junto com 222 compatriotas – também “traidores”, obviamente – com destino aos Estados Unidos. Mas o bispo de Matagalpa disse não, preferindo a prisão, sofrendo a enorme pena.

Em 12 de fevereiro, no fim do Angelus, Francisco deteve-se no caso: “As notícias que chegam da Nicarágua me entristeceram um pouco e não posso deixar de recordar com preocupação o bispo de Matagalpa, Dom Rolando Álvarez, que tanto amo, condenado a 26 anos de prisão, e também as pessoas que foram deportadas para os Estados Unidos. Rezo por eles e por todos os que sofrem nesta querida nação, e peço as vossas orações. Pedimos também ao Senhor, por intercessão da Imaculada Virgem Maria, que abra o coração dos líderes políticos e de todos os cidadãos à busca sincera da paz, que nasce da verdade, da justiça, da liberdade e do amor e se alcança através do exercício paciente de diálogo. Rezemos juntos a Nossa Senhora”.

Pode-se imaginar a reação do presidente, que por despeito proibiu as procissões da Via Sacra durante a Semana Santa. Em julho, com as luzes apagadas, foram realizadas negociações em Manágua para libertar D. Rolando Álvarez. Até certo ponto todos o queriam, a Santa Sé, a Igreja local e o próprio governo: melhor que ele também fosse a Miami, para espalhar propaganda na casa ianque, sem criar problemas internos. Um projeto de acordo foi alcançado: liberdade em troca de exílio, continuando o mesmo esquema. Mas o bispo, debilitado e preso durante meses numa prisão de segurança máxima, disse que não. O pastor não abandona o seu rebanho e está disposto a sofrer com ele.

Também na Nicarágua, no terceiro milênio, existe um Mindszenty. Perante a recusa, Ortega não viu mais nada: daí a decisão de fazer pagar até aos jesuítas, amigos do Papa: primeiro com o encerramento da sua universidade, depois com a expulsão da sua residência.

No meio de tudo isso, o governo também tomou medidas para bloquear o fundo criado pelo episcopado que paga pensões aos padres idosos. Pouco dinheiro que era usado para comida e remédios.

Desta vez, porém, a prudência deu lugar a um retumbante j'accuse. Foi a Província Centro-Americana da Companhia de Jesus quem soltou um comunicado de imprensa muito duro, que foi imediatamente divulgado pelos meios de comunicação do Vaticano, que lhe deram ampla cobertura. A Companhia “condena esta nova agressão contra os jesuítas da Nicarágua. Considera-o enquadrado num contexto nacional de repressão sistemática classificada como 'crimes contra a humanidade' pelo grupo de especialistas em direitos humanos na Nicarágua composto pelas Nações Unidas. Confirma que tudo isto visa o pleno estabelecimento de um regime totalitário. Ele responsabiliza o presidente e o atual vice-presidente da Nicarágua por compartilhar esses fatos e por impedir a existência de condições de independência e neutralidade por parte do judiciário”.

A Província Centro-Americana dos Jesuítas pede “ao casal presidencial” que “pare com a repressão, que aceite a busca de uma solução racional em que prevaleçam a verdade, a justiça, o diálogo, o respeito pelos direitos humanos, o Estado de direito”. Respeitar a liberdade e a integridade total dos jesuítas e das pessoas que com eles colaboram”. Por fim, expressa-se a solidariedade ao povo sofredor: “A Província da América Central une-se aos milhares de vítimas nicaraguenses que esperam que lhes seja feita justiça e que sejam reparados os danos que o atual governo está causando”.

Talvez, também no front da Nicarágua chegou o momento de deixar de lado o diplomaticamente correto.

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