18 Julho 2023
"São várias os motivos que explicam as expulsões dos domínios portugueses e espanhóis entre 1757 e 1767, as proibições na França e a supressão de 1773. Além das crises internas da ordem, os métodos missionários adotados pelos jesuítas são considerados demasiado tolerantes em relação às tradições religiosas das antiquíssimas civilizações asiáticas".
O artigo é de Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, publicado por Domani, 16-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
250 anos atrás, em 21 de julho de 1773, o Papa Clemente XIV assinava o documento Dominus ac redemptor que decretava a dissolução dos jesuítas. A decisão, embora precedida por suas expulsões dos domínios portugueses e espanhóis, era de qualquer forma inaudita. Durante mais de dois séculos, de fato, apesar das dificuldades e contrastes, a Companhia de Jesus fundada por Inácio de Loyola tornara-se a ponta de lança da Igreja Católica em todo o mundo - desde os países europeus, inclusive protestantes, até as missões nos diversos continentes.
O longo texto papal se reportava às supressões anteriores de ordens religiosas, depois revisava as relações dos jesuítas com a sede romana e os problemas que surgiram com os soberanos católicos. Incidentes de tal magnitude que "tornaram impossível para a Igreja ter uma paz verdadeira e duradoura enquanto esta Ordem existir", ressaltava o pontífice. Por isso - afirmava Clemente XIV - “extinguimos e suprimimos a várias vezes citada Sociedade”. Casas, escolas, colégios e todas as instituições tiveram que ser fechadas, todas as hierarquias dentro da ordem foram anuladas e os religiosos foram submetidos aos bispos diocesanos. As consequências da medida do Papa Ganganelli foram devastadoras para a ordem concebida por Santo Inácio, que havia sido canonizado já em 1622. O “breve” – este é o nome técnico do documento – legitimou de fato "uma orgia de sistemáticas pilhagens, conduzidas com o consenso oficial", escreve o historiador jesuíta John O'Malley em um breve e inteligente perfil de sua ordem (Gesuiti, Vita e Pensiero).
Aconteceu de tudo: obras de arte confiscadas, preciosas bibliotecas dispersadas, enquanto o geral da Jesuítas, o manso e fraco Lorenzo Ricci, foi aprisionado em Castel Sant'Angelo, onde morreu por dois anos depois. A ferida foi profunda e deixou marcas duradouras.
A ponto de provocar uma manifestação surpreendente de Francisco, o único papa jesuíta, só três dias depois da eleição, inspirado pelo inusitado nome que havia escolhido e que - afirmou o pontífice – havia sido comentado por alguns cardeais. “Outro me disse: ‘Não, não, seu nome deveria ser Clemente’. "Mas por que?’. ‘Clemente XV: assim você se vinga de Clemente XIV que suprimiu a Companhia de Jesus!’. São brincadeiras…” concluía o Papa.
Mesmo em Bergoglio, portanto, permanece a memória do trauma da supressão, que marcou um divisor de águas na história da ordem, ao mesmo tempo em que contribui para alimentar o mito da Jesuítas, tanto positiva como negativamente. Mito que envolveu a imagem de Giovanni Vincenzo Ganganelli, o pontífice franciscano demonizado pelos defensores da Companhia e exaltado, ao contrário, pelos adversários dos jesuítas.
Eleito em 1769 após um conclave que durou três meses em que as divergências sobre os jesuítas foram centrais, o conventual teve que enfrentar de imediato o problema. Já as primeiras medidas tomadas em 1771 pelo papa contra a Companhia provocaram profecias sobre sua morte. Clemente XIV morreu em 1774, um ano após a supressão. Logo espalharam-se rumores opostos: por um lado, a lenda de um envenenamento do pontífice, descartado por um parecer de seus médicos; do outro, aquela do remorso por ter dissolvido a ordem, que supostamente teria atormentado o agonizante Papa Ganganelli. Até um terceiro boato, segundo o qual o pontífice teria publicado em breve uma revogação da dissolução.
A lenda do remorso chega a Chateaubriand, que a põe na boca de Pio VII, arrependido de ter assinado em Fontainebleau a concordata de 1813 com Napoleão, que havia obrigado o papa a essa decisão (posteriormente retirada). "Vou morrer louco por isso, como Clemente XIV", teria dito o pontífice prisioneiro do imperador.
As imagens contrapostas de Ganganelli – Voltaire contribuiu a criar o mito de um papa amigo do Iluminismo – sobreviveram à dissolução da Companhia, que durou mais de 40 anos, e sua reconstituição em 1814. E obscureceram a real figura do papa, segundo Mário Rosa “não desprovida de um senso instintivo e, em suma, uma percepção flexível do momento histórico em que se viu atuando”: a grande crise do Ancient Régime.
Mas como se chegou – dois séculos e meio atrás – à supressão, aliás anunciada, dos jesuítas?
A ordem parecia consolidada, apesar de todas as dificuldades, tendo conseguido o seu apogeu em meados do século anterior. Tudo começou muito antes, por iniciativa de um quarentão, o nobre basco Íñigo (depois Inácio) de Loyola, no ambiente universitário parisiense. Homem de armas que ficou gravemente ferido em 1521 em Pamplona lutando contra os franceses, Inácio se converte após experiências místicas que mais tarde serão a base dos famosos Exercícios espirituais. Anos depois, tendo concluído a sua formação na Sorbonne, Inácio e mais seis estudantes – entre eles Pierre Favre, Francisco Xavier e Diego Laínez, posteriormente figuras fundamentais na história dos jesuítas – empenharam-se em 1534 a atuar para "o bem das almas".
Impossibilitada de viajar para a Terra Santa, a pequena "Companhia de Jesus" (a societas Iesu mais tarde conhecida pela abreviatura S.I.) reúne-se em Roma colocando-se à disposição do Papa. E ele – Paulo III, com a bula Regimini militantes ecclesiae - em 1540 aprova-a formalmente. O desenvolvimento, resumido por Peter Hartmann (I gesuiti, Carocci), é realmente assombroso: já mil em 1556, os religiosos saltaram para mais de 8500 no final do século; passaram a mais de 15 mil em 1627, chegando a quase 20 mil em 1710 e cerca de 23 mil em 1773, ano da supressão.
O sucesso explica-se pela rigorosa formação dos religiosos, no plano cultural e espiritual, e com as consideráveis realizações em duas frentes principais em que a Companhia de Jesus se move, muito estudada recentemente também por historiadores leigos. De fato, os Jesuítas se empenham, por um lado, no estudo pessoal (dos clássicos profanos, das ciências e da teologia), na educação dos jovens – abrindo escolas e colégios, logo na vanguarda em toda a Europa - e na formação das consciências como confessores e diretores espirituais; pelo outro, multiplicando missões ousadas e inovadoras, na Ásia, na América e na Europa já dilacerada pelo cisma protestante.
A orientação ampla e tolerante de seus estudos humanísticos e teológicos caracteriza a novidade nas escolas e nas missões. Juntamente com os Exercícios Espirituais, é fundamental a equilibrada Ratio studiorum, a ordem dos estudos publicada em 1599 após uma consulta muito longa entre os próprios jesuítas.
Famosa também é a abertura às culturas de civilizações milenares nas missões no Japão, na China e na Índia graças a homens de gênio como Alessandro Valignano, Matteo Ricci e Roberto De Nobili, até a extraordinária experiência das "reduções" Guarani na América do Sul, que já em 1743 foi celebrada por Muratori.
São várias os motivos que explicam as expulsões dos domínios portugueses e espanhóis entre 1757 e 1767, as proibições na França e a supressão de 1773. Além das crises internas da ordem, os métodos missionários adotados pelos jesuítas são considerados demasiado tolerantes em relação às tradições religiosas das antiquíssimas civilizações asiáticas.
O gatilho é o sucesso das missões entre os Guarani, garantido pelo modelo de organização social e econômica igualitária das "reduções" e que dificulta a exploração dos indígenas por portugueses e espanhóis. Estes movem uma verdadeira guerra que leva ao fim das missões, contada por Scorsese em A Missão. Mas já na Via Láctea de Buñuel um episódio dramatizava o embate teológico e político – muito duro na França, onde As provinciais de Pascal desferem um duro golpe na Companhia – que os jesuítas protagonizam com o rigorismo de jansenitas.
Em países não católicos, a disposição papal não é aplicada. Assim, na Prússia de Frederico o Grande e na Rússia de Catarina a Companhia de Jesus sobrevive até seu restabelecimento em 1814. O recomeço é quase do zero - os jesuítas são 600 - mas o desenvolvimento novamente é rápido: no final do século são mais de 15 mil e chegam a 36 mil em 1965, quando termina o Vaticano II. Depois a queda, que em meio século os reduziu aos atuais 14.000. Mas a história após a reconstituição da Companhia é bem diferente. Além disso, a eleição de Bergoglio também surpreendeu, "e talvez até mais", os jesuítas, escreve O'Malley. Com efeitos imprevisíveis sobre o futuro da ordem.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A dissolução dos jesuítas é uma ferida que perdura há 250 anos. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU