O professor mobiliza os conceitos de exceção, guerra e campo para compreender o fenômeno
A partir de uma articulação entre Agamben e Foucault, entre outros pensadores, o professor Dr. Castor Ruiz (Unisinos) se dedica nos últimos anos a pensar sobre as questões do estado de exceção e do governo das populações. Nesta entrevista, concedida ao professor Dr. Emiliano Aquino (UECE), com apoio da assessora de comunicação da Anpof, Dra. Nádia Junqueira (Unicamp), Ruiz reflete sobre a atual experiência colonial da Palestina a partir de sua pesquisa.
Nesta conversa, o professor Castor defende que o Estado de Israel utiliza o dispositivo da exceção como estratégia para tentar legitimar internacionalmente o que ele chama de Nakba, ou catástrofe, termo cunhado pelo povo palestino para expressar a grande expulsão de cerca de 750 mil palestinos de suas casas e terras em 1948, conceito que os mesmos estendem ao processo contínuo e ainda presente de expropriação de seu território. Ruiz articula os conceitos de guerra e de campo para refletir sobre essa experiência que ele chama de tanatopolítica, isto é, uma política de Estado cujo objetivo é eliminar fisicamente os opositores. O professor da Unisinos ainda promove o exercício de aproximar a experiência do estado de exceção na Alemanha nazista e o que acontece hoje em Gaza.
A entrevista é de Emiliano Aquino e Nádia Junqueira, publicada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), 08-08-2025.
Castor Ruiz (Foto: Ricardo Machado | Acervo IHU)
Professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero-Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade". Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016); Os paradoxos do imaginário (Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).
Gostaria de começar com uma questão conceitual: como podemos nomear o que está acontecendo em Gaza?
O que está acontecendo em Gaza é uma autêntica catástrofe humanitária que interpela e envergonha a nossa geração. É uma catástrofe cujo significado ético e simbólico para nossos tempos é paralelo ao da Shoah nazista ou ao das duas bombas atômicas jogadas taticamente sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Quando os acontecimentos nos assombram ao limite, a linguagem comum se torna incapaz de designar a realidade. Há que recriar a linguagem para que nos permita aproximar-nos minimamente do sentido singular de um acontecimento extraordinário. O próprio povo palestino, para denominar o horror que está vivendo desde 1948, cunhou um termo árabe, Nakba (catástrofe), a fim de conseguir designar pela linguagem o horror da violência que estão sofrendo. Assim como o horror do extermínio nazista dos judeus exigiu criar o termo Shoah para qualificar a brutalidade do genocídio nazista, a violência que sofre o povo palestino, e agora particularmente em Gaza, é uma Nakba. A Nakba está sendo uma autêntica eugenia política, uma limpeza étnica produzida pelo Estado de Israel e realizada de forma estratégica no período de longa duração.
Nos últimos anos sua pesquisa tem se voltado para as questões do estado de exceção e do governo das populações, numa articulação entre Agamben e Foucault. Como a atual e já septuagenária experiência da ocupação colonial da Palestina se encontra com as reflexões que o senhor tem desenvolvido em sua pesquisa?
O Estado de Israel utiliza o dispositivo da exceção como estratégia para tentar legitimar internacionalmente a Nakba. A exceção é um dispositivo jurídico político através do qual um poder soberano suspende os direitos fundamentais de pessoas ou populações inteiras, capturando-as assim numa zona de anomia. Através da exceção, as vidas são capturadas num espaço anômico no qual o vazio de direitos é substituído pelo arbítrio de uma vontade soberana. O dispositivo da exceção, de um lado, traz à luz a existência de um poder soberano, e de outro, a exceção produz vidas vulneráveis e até descartáveis, são as denominadas vidas nuas. As vidas capturadas pela exceção se encontram sob o arbítrio de uma vontade soberana, porque sobrevivem no vácuo do direito. Desse modo, a exceção possibilita que a violência cometida contra as vidas que se encontram nela capturadas seja uma violência inimputável. A exceção, como dispositivo biopolítico de controle e até extermínio de populações, opera com um singular paradoxo, pois consegue excluir vidas fora do direito ao mesmo tempo que as inclui num espaço anômico dominado pelo arbítrio de uma vontade soberana. Esta sinuosa engenharia política confere à exceção uma potencialidade de violência inimputável que não é possível encontrar em outras formas políticas ou jurídicas. Na exceção vigora o arbítrio do poder soberano como lei. Nesse caso, a violência cometida na exceção é legal e por tanto inimputável. A exceção expõe as vidas das pessoas capturadas nesse espaço a uma total vulnerabilidade com absoluta inimputabilidade. Através da exceção se pode cometer uma violência total de forma inimputável. Do outro lado, as vidas capturadas pela exceção se tornam vidas vulneráveis à violência, são vidas até descartáveis e, portanto, puras vidas nuas. Esta é a condição das vidas capturadas no espaço anômico da exceção e expostas a qualquer violência sem direitos.
O Estado de Israel, que se identifica como um Estado democrático de direito, utiliza-se permanentemente do dispositivo da exceção para conseguir enquadrar o povo palestino em seus diferentes territórios. Desse modo pode capturar “legalmente” a vida desse povo num espaço anômico, no qual vigora um vazio de direitos fundamentais. No lugar do direito vigora o arbítrio do poder soberano, neste caso do governo de Benjamin Netanyahu. A violência cometida contra os palestinos se torna uma violência inimputável, porque ela se exerce dentro da exceção. A violência contra o povo palestino ocorre em Gaza de forma brutal, mas também na Cisjordânia, o território palestino que Israel ocupou e no qual se está realizando uma violência cotidiana para expulsar palestinos de suas terras, ocupar as suas casas, extorquir seus negócios, acossar as pessoas ou famílias inteiras. Tudo numa estratégia de exceção na qual a violência contra um/a palestino/a é um ato inimputável porque se comete no marco da exceção que torna suas vidas meras vidas nuas.
Além da exceção, me parece que há uma outra estratégia de violência sendo operada aqui no que você chama de Nakba: a guerra. Como ela pode ser pensada como parte do dispositivo da exceção ou como um dispositivo biopolítico?
A guerra tem por objetivo implantar a exceção do modo mais absoluto possível. Para entender as peculiaridades da guerra como parte do dispositivo da exceção, temos que considerar que as guerras atuais são qualitativamente diferentes das guerras clássicas convencionais. A guerra tradicional era uma guerra entre Estados soberanos e havia uma declaração de guerra entre Estados. A luta bélica era entre exércitos dos Estados. E a guerra se concluía com pactos de rendição ou um pacto de paz entre Estados. Nenhuma destas condições essenciais para uma guerra tradicional se observam nas guerras contemporâneas. Depois da II Guerra Mundial, embora tenha havido dezenas de guerras cruéis como Vietnã, Coreia, Iugoslávia, Iraque, Líbia, Afeganistão, Síria, Iêmen, Irã, Ucrânia, ou Gaza, em nenhuma dessas guerras houve nenhuma declaração formal de guerra entre os Estados. Por exemplo, Rússia diz que a guerra contra Ucrânia é uma “Operação Especial”, Estados Unidos invadiram Iraque, Afeganistão, Síria, atacaram Irã, mas nunca houve uma declaração de guerra com esses Estados.
A segunda característica da guerra atual é que ela não é concebida como um confronto entre exércitos estrangeiros, senão que afeta muito mais a populações inteiras não militarizadas. Não se está em guerra contra um exército estrangeiro, senão que a guerra é contra a população inteira. A guerra contemporânea não pretende derrotar outro exército, senão controlar determinadas populações. Por isso a terceira característica de que as guerras não se concluem nunca, não há um pacto de paz que finaliza a guerra. A guerra permanece em aberto como possibilidade constante de acontecer contra as populações de um determinado território.
A guerra atual tornou-se um dispositivo biopolítico para gestão da ordem mundial. O conceito de ordem mundial veio substituir ao conceito de ordem social de um Estado. Desse modo, a guerra se tornou um dispositivo de “policiamento” do mundo. O objetivo atual da guerra não é destruir um Estado, senão policiar a ordem mundial de tal modo que os governos e populações dos diferentes Estados se enquadrem dentro da lógica dos interesses dominantes dessa ordem mundial. Por outro lado, a guerra tornou-se um dispositivo para controle de populações, operando como meio para enquadrar governos ou populações incômodas ou discordantes com a ordem mundial. A guerra contemporânea opera com uma lógica utilitarista da morte, a tanatopolítica. A lógica tanatopolítica da guerra possibilita operar com plena violência contra uma população e quase com total inimputabilidade.
A guerra surge por um ato de poder soberano e se instala como um espaço de violência onde a exceção é a norma. Na guerra, a violência é a norma e aqueles que são catalogados como inimigos se tornam vidas nuas que ficam capturadas no espaço anômico da exceção decretado por uma vontade soberana. Desse modo, numa guerra se pode matar impune e seletivamente os engenheiros, cientistas, juristas, intelectuais ou políticos considerados inimigos, como se fosse um ato legítimo de guerra. Se não houvesse a guerra, esses assassinatos seletivos seriam considerados um mero ato de terrorismo contra um país soberano. A guerra legitima a tanatopolítica estratégica como eliminação utilitarista de inimigos potenciais ou reais. Desse modo, a guerra se tornou a legalização da violência terrorista de um poder soberano que decide quem pode viver e quem deve morrer de modo arbitrário e inimputável. A guerra contemporânea tornou-se o dispositivo através do qual a exceção se torna a norma e através dela é permitida e legalizada toda violência contra aqueles que são considerados inimigos.
Como poderíamos aproximar a experiência do estado de exceção na Alemanha nazista e o que acontece agora em Gaza?
É paradoxal desta estratégia da guerra que as teses “Sobre o político” de Carl Schmitt tornaram-se evidentes na atuação do Estado de Israel. A política como eliminação do inimigo e a guerra como estratégia política dessa relação são os elementos basilares de uma estratégia que considera a população palestina como um inimigo biológico cuja mera existência interna ameaça a viabilidade do Estado de Israel. O governo de Benjamin Netanyahu está seguindo com muita fidelidade as teses filosóficas do pensador nazista. As teses de Carl Schmitt que serviram para legitimar o estado de exceção na Alemanha nazista e a limpeza étnica dos judeus, são agora implementadas como estratégias de guerra preventiva e como estratégia imunitária para eliminar os elementos considerados patógenos do corpo social, os quais podem contaminar e corromper todo o corpo político. Neste caso, os elementos patógenos a serem eliminados é a população palestina. Por isso devem ser extirpados cirurgicamente, como se eliminam os elementos patógenos de um corpo biológico. A guerra opera, no duplo sentido do termo, essa cirurgia no corpo social, eliminando o máximo de elementos patógenos numa estratégia de eugenia étnica do corpo político. A guerra contemporânea se torna um dispositivo que possibilita a eugenia do corpo social, com uma violência considerada legítima na eliminação daqueles catalogados como inimigos e, portanto, expostos a pura violência inimputável.
No caso de Gaza, essa violência está sendo levada, desde qualquer perspectiva, a extremos inusitados e inumanos de crueldade. A Nakba de Gaza contém requintes de barbárie absolutamente singulares. Mísseis inteligentes de alta precisão são dirigidos contra escolas, hospitais, centros de distribuição de alimentos etc., nos quais se sabe antecipadamente que há um alto número de pessoas inocentes. Atiradores especializados matam aleatoriamente as pessoas que aparecem no seu ponto de mira. Há uma perversa utilização da estratégia bélica do “duplo ataque” na qual, após bombardear com um míssil um prédio residencial ou público qualquer, quando as pessoas se aproximam para tentar ajudar e socorrer os sobreviventes que estão sofrendo e imploram por socorro, os militares programam um segundo bombardeio com um outro míssil para matar as pessoas que pretendem socorrer e concomitantemente terminar de matar os feridos do primeiro ataque. Utiliza-se da fome como arma de guerra. O governo de Benjamin Netanyahu impede a entrada de comida e alimentos para intensificar a morte por inanição, e ainda bombardeia comboios de ajuda humanitária ou os grupos de pessoas que, famintas, desesperadamente recolhem alimentos. Assalta e captura em águas internacionais os barcos de ajuda humanitária, desrespeitando toda legislação internacional a esse respeito.
A violência em Gaza tem tintes de crueldade muito similar àquela que os nazistas desenharam para o extermínio dos judeus na Europa. O número de palestinos mortos nesta guerra de Gaza já se aproxima, senão ultrapassou, os 60.000 (sessenta mil). Desse número letal, a maioria absoluta são mulheres e crianças. Numa guerra tecnológica da alta precisão como a que o Estado de Israel está implementando, é absolutamente improvável que esse alto número de mulheres e crianças mortas sejam meros efeitos colaterais imprevistos da guerra. Muito pelo contrário, esse requinte de barbárie retrata uma estratégia objetiva perseguida por esta guerra, qual seja infringir um controle populacional ao povo palestino de Gaza através da tanatopolitica, a qual aniquilando um elevado número de crianças consegue que a próxima geração de palestinos seja truncada e menos numerosa. Ao eliminar um alto número de mulheres se impede a fertilidade e o crescimento biológico da população palestina. Afinal das contas o principal inimigo a abater é o crescimento da população palestina. Esse é o maior problema político que o Estado de Israel e o governo de Nentayahu avaliam como entrave estratégico para conseguir se anexar a totalidade do território de Gaza e Cisjordânia.
A guerra como dispositivo de exceção oferece a possibilidade legitimar a pura violência de um poder soberano como um ato de defesa preventiva. Ao mesmo tempo, a guerra como controle biopolítico de populações condena à matabilidade inimputável às vidas nuas que foram capturadas nesse espaço de exceção, tornando-as vidas descartáveis.
Além da exceção e da guerra, podemos também pensar na noção de “campo” para compreendermos o alcance e a eficiência da estratégia da violência na Nakba do povo palestino?
Com certeza. É o terceiro elemento que falta para compreendermos esta estratégia. O campo pode ser definido como o espaço jurídico-político que se abre quando a exceção se torna operativa. O campo é o espaço no qual a exceção se torna a norma. O campo é o espaço anômico no qual o vazio de direitos é substituído pelo arbítrio de um poder soberano que decide sobre as vidas daqueles que habitam esse espaço. O campo captura as vidas num espaço vazio de direitos no qual opera como lei a pura violência do arbítrio de uma vontade soberana.
Para entender a singularidade da figura jurídico-política do campo é conveniente contrastá-la com a do cárcere. O cárcere é um dispositivo do direito penal moderno no qual se confinam vidas incriminadas e condenadas. Porém, no cárcere há um direito. O cárcere existe através do direito e é instituído por um ato de direito. Dentro do cárcere está operativo o direto carcerário que outorga direitos aos presos e permite incriminar aqueles que violem esses direitos. O campo é uma figura absolutamente singular porque ele não é criado por um ato de direito. Na realidade o campo não existe para o direito. Os campos de extermínio nazistas não foram criados por decretos jurídicos ou pessoais do Hitler, senão que sua realidade permanece invisibilizada para qualquer forma de direito. Da mesma forma, os espaços de tortura das ditaduras latino-americanas, como no Brasil, nunca foram reconhecidos como espaços criados pelo Estado, eles simplesmente não existiam, mesmo operando nas entranhas dos aparelhos do Estado, como o exército, a marinha ou nos porões de algumas delegacias de polícia.
A singularidade do campo é que o campo opera como um vazio de direitos e ele mesmo, enquanto campo, não é reconhecido como ato de direito. Essa característica possibilita que a violência arbitrária do campo seja absoluta e inimputável pelo Estado. Dentro do campo, diferentemente do cárcere, não há direitos, há um vazio de direitos. Por isso, a violência cometida contra as vidas capturadas no campo é uma violência fora do direito e, portanto, inimputável.
O senhor pensa na tanatopolítica, política da morte, como uma política de Estado cujo objetivo é eliminar fisicamente os opositores. Em entrevista recente, o professor comenta que esta política gerencia de forma instrumental e útil a morte de pessoas e até grupos sociais considerados indesejáveis ou prejudiciais para uma sociedade ou grupo social. Como podemos pensar o campo como um dispositivo tanatopolítico e, em especial, Gaza como esta forma de campo?
Por todas as características que acabei de mencionar: o campo se tornou o dispositivo tanatopolítico por excelência, porque permite o controle eficiente e extremo das vidas e no limite viabiliza o extermínio de populações indesejadas. O vazio de direitos existente no campo torna o poder arbitrário da vontade soberana absoluto e, por isso, capaz de exercer um controle absoluto sobre as vidas capturadas no campo. As vidas no campo se tornam vidas que sobrevivem ao arbítrio de uma decisão soberana que delibera para onde elas vão ir, como elas vão viver ou se elas vão viver ou morrer. No campo, o arbítrio soberano reproduz o princípio da soberania absoluta de quem pode viver e de quem deve morrer.
O campo é uma figura jurídico política versátil. Não há um modelo único ou exclusivo de campo. Sua versatilidade se adapta aos contextos necessários para o controle das populações indesejadas. Os campos de extermínio nazistas são a versão do paroxismo contemporâneo do campo, mas eles não inventaram o campo e o campo não deixou de existir com o final do regime nazista. Há que lembrar que durante os diferentes processos de colonização, as potências colonizadoras criaram e utilizaram os campos como dispositivo tanatopolítico para controlar e até exterminar populações inteiras. O campo operou no colonialismo como uma espécie de laboratório tanatopolítico, cuja eficácia comprovada permitiu que saltasse das colônias para os diferentes Estados modernos.
A figura contemporânea do campo sofre muitas metamorfoses, porém todas elas conservam a essência tanatopolítica de controlar, de modo extremo, as populações indesejadas. Atualmente, por exemplo, os campos de refugiados são uma das lacras sociais mais estendidas de nossos tempos. Os refugiados, nos campos, são meros seres viventes que sobrevivem de ajuda humanitária, porém, no campo, há um vazio dos direitos da cidadania que os torna vulneráveis a múltiplas violências, a maioria delas inimputáveis. Outra versão do campo pode ser vista nos centros de retenção de migrantes, nos quais o controle das suas vidas depende do arbítrio de funcionários burocráticos que decidem arbitrariamente seus destinos. Eles não estão detidos como criminosos, pois teriam direitos específicos. Eles estão “retidos” sem acusação formal, nem processo, nem sentença, pois nos centros de retenção opera a decisão arbitrária de um burocrata. Uma terceira metamorfose contemporânea do campo é Guantánamo. Guantánamo representa o paroxismo da violência no paradigma do campo pós-nazista. Em Guantánamo há um vazio total de direitos para as vidas ali capturas. O destino dessas vidas depende do arbítrio de um poder soberano que decide sobre elas de forma totalmente arbitrária e fora de qualquer direito. Guantánamo se tornou o paradigma do campo utilizado por um Estado de direito, os Estados Unidos, como espaço fora do direito, no qual pode agir de modo absolutista e violento contra as vidas nuas ali capturadas, porque é um espaço inimputável.
Em relação ao campo, Gaza é uma versão absolutamente singular. Se o campo foi criado pelo colonialismo como laboratório tantapolítico para controle e até extermínio de populações. Em Gaza estamos testemunhando um novo laboratório de experiência tanatopolítica, que se bem-sucedida poderá se exportar para outras realidades, modificando meras questões conjunturais necessárias. Gaza é um espaço geográfico muito limitado e há décadas está cercado por terra, por mar e pelo ar pelo exército de Israel. Nada nem ninguém entra ou sai de Gaza sem o controle do exército de Israel. Gaza espelha um modelo muito similar ao que ocorreu com o modelo de campo criado pelo exército nazista em Varsóvia para confinar os judeus, o denominado gueto de Varsóvia.
Gaza foi convertido num “gueto” de tal modo que, como em Varsóvia, as pessoas sobrevivem dentro do gueto como podem, porém, seu destino coletivo não lhes pertence. Até o ato de entrar ou sair, ou de que coisas se pode entrar ou com que coisas se pode sair do gueto depende da decisão soberana do exército de Israel. Gaza se tornou um campo aberto com mais de 2 (dois) milhões de pessoas nele confinadas. O Estado de Israel trata Gaza como um campo no qual não vigoram os direitos fundamentais que existem para os cidadãos, por exemplo, israelenses. Desse modo, todos os atos de violência que o exército israelense ou até qualquer colono israelense fanático possa cometer contra um habitante de Gaza se torna inimputável.
A guerra elevou a condição de campo em Gaza a um patamar singular, muito próximo do que pode ser um campo de extermínio. Toda violência cometida dentro de Gaza é uma violência consentida e até aplaudida pelo Estado de Israel, em concreto pelo governo de Benjamin Netanyahu. Essas violências são celebradas como estratégias bem-sucedidas contra as vidas de elementos intrinsecamente patógenos de Israel. Gaza tornou-se um campo para uma eugenia racial e uma limpeza étnica em profundidade. No campo como dispositivo tanatopolítico, a limpeza étnica e a eugenia social se tornaram uma arma de guerra legítima. Desse modo, Gaza opera como um novo protótipo do campo, conseguindo fazer operativo o controle extremo da violência tanatopolítica. Em contrapartida, a condição de campo em Gaza torna legítima essa violência conferindo-lhe uma inimputabilidade inerente à figura jurídico-política do campo. Gaza se tornou um protótipo do campo eugénico a céu aberto.
A barbárie da Nakba em Gaza não está conseguindo interpelar com uma vergonha ética suficiente à denominada opinião internacional, que nada mais é que a opinião pré-fabricada das potências dominantes da ordem mundial, para conseguir frear a barbárie. As pessoas de boa vontade vivem a dupla vergonha e indignação de serem testemunhas impotentes da barbárie da Nakba contra o povo palestino. Uma Nakba que tornou explícito o objetivo estratégico da limpeza étnica operativa nesse espaço.