Eichmann em gaza. Artigo de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz

Arte: Alexandre Francisco | IHU

24 Mai 2025

"Gaza representa uma interpelação ética similar e ainda mais grave que o julgamento de Eichmann em Jerusalém, pois nos enfrentamos a uma nova versão da irresponsabilidade moral do dever da função, ou do funcionário que meramente cumpre seu dever permitindo que a barbárie se naturalize."

O artigo é do Prof. Dr. Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz

Professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Bilbao. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade" e a Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. Publicou vários livros, dos quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016), Os paradoxos do imaginário (Editora Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).

Eis o artigo. 

O que mais assusta da barbárie é sua normalidade. O genocídio do holocausto nazista só atingiu tal grau de brutalidade porque muitas pessoas, que não eram nazistas, o normalizaram na sua consciência moral. Olharam silenciosamente a repressão política dos judeus, silenciaram docilmente  sua prisão massiva e  acharam normal a condução para campos de milhões de pessoas como se fossem gado levado ao matadouro. Essas cumplicidades silenciosas viabilizaram a barbárie nazista da aniquilação em massa de milhões de inocentes nos fornos crematórios.

A barbárie só pode atingir o patamar de genocídio quando a consciência moral de muitas pessoas envolvidas no processo apaga qualquer vestígio de interpelação moral na consciência subjetiva, e como consequência anula os rasgos de humanidade do outro que vai ser violentado. Ao normalizar a violência da barbárie se criam as condições sociais e políticas para que ela se implemente em grande escala, como se fosse parte de um processo qualquer. A normalização da barbárie inicia-se pelo apagamento ético da consciência moral de muitas pessoas comuns, quase que até secundárias no processo global da violência, porque elas simplesmente cooperam de modo colateral, sem sentir-se responsáveis direitas pelas decisões que são tomadas na aniquilação do outro.

Adolf Eichmann (dentro da cabine de vidro) é condenado à morte pela Suprema Corte de Israel, na conclusão do julgamento | Foto: Wikipédia

Um dos paradigmas da normalização da barbárie foi Adolf Eichmann. Ele foi responsável por uma grande parte do aparato logístico do translado dos prisioneiros judeus para os campos de extermínio. No seu julgamento em Jerusalém, 1961, argumentou insistentemente que ele era um mero cumpridor do dever de ofício e que só obedecia ordens.  Ainda que esta argumentação não era real, Eichmann se apresentou como uma pessoa comum, que nunca tinha matado a ninguém, que nem tinha ódio dos judeus, e que simplesmente era um funcionário exemplar que cumpria as ordens que recebia sem nunca as questionar. Eichmann se apresentou como um modelo de obediência ao dever da função. Inclusive invocou em vários momentos a ética kantiana do dever ser, como sendo seu modo ético de comportamento. Segundo ele, o seu sentimento do dever era o valor moral superior que guiava seus comportamentos e decisões. Pelo cumprimento do dever, ele obedecia cegamente, sem questionar, as ordens que recebia. Eichmann tinha como valor ético principal a obediência aos superiores, sendo este o máximo dever do bom funcionário, de um funcionário de excelência, que ele se considerava.

Hannah Arendt, que acompanhou o julgamento de Eichmann em Jerusalém, escreveu suas impressões numa obra com esse mesmo título: “Eichmann em Jerusalém”. Arendt entendeu que realmente Eichmann era cínico em muitas de suas afirmações, pois era consciente e responsável da barbárie que cometeu contra milhões de pessoas inocentes. Contudo, Arendt também percebeu que o mais assustador de Eichmann é que ele não era um monstro da violência, nem sequer era um fanático nazista. Ele era uma pessoa comum, muito normal, quase que uma pessoa socialmente medíocre, que viu no nazismo uma oportunidade de crescimento social.  Filiou-se ao partido nazista não por suas convicções ideológicas, mas como uma oportunidade que se apresentava para crescer socialmente. Vendo a oportunidade, Eichmamm quis ascender socialmente filiando-se a um grupo que estava vencendo politicamente na Alemanha, mesmo que ele não era nazista e diz que nem sequer leu a obra de Hitler, Mein Kampf (Minha luta). Essa aspiração tipicamente burguesa de obter ascensão social, foi a motivação principal que levou Eichmann a, pouco a pouco, ir se dobrando aos modelos comportamentais nazistas, apagando quaisquer vestígio na sua consciência moral sobre as consequências  da violência impetrada. Ele simplesmente pretendia se mostrar como um eficiente funcionário do III Reich. Em Eichmann destaca seu senso de oportunidade para se aproveitar dos acontecimentos que lhe envolviam com o objetivo de crescer social e economicamente. A final, Eichmann é o protótipo do pequeno burguês que está na espreita das oportunidades de negócio e lucro, sem medir as consequências finais dessas opções.

 

Foram estes rasgos biográficos que fizeram a Arendt perceber que o assustador de Eichmann era sua normalidade. Ou seja, que seu comportamento era muito similar ao de qualquer funcionário ou burocrata que se limita a cumprir seu dever de ofício, independentemente de sua consciência moral a respeito do que lhe é solicitado fazer. Eichmann normalizou a barbárie a partir de um paradigma de subjetivação produzido pela burocracia.

O terrível da normalidade de Eichmann é que ele, de fato, representa o paradigma do funcionário moderno. Ele não era um monstro sanguinário, nem um fanático político, mas um funcionário exemplar que sacrificou sua consciência moral ao dever de sua função para poder crescer socialmente na hierarquia da burocracia. Eichmann representa o processo normal através do qual as barbáries se normalizam porque existe um exército obediente, silencioso e cúmplice de funcionários que não matam diretamente, mas fazem funcionar a maquinaria da letalidade.

A figura do funcionário exige que este se limite a cumprir seu dever de oficio, sem interpelar as demandas ou ordens que lhe são dadas. O modelo de subjetivação do funcionário  modela um comportamento fiel e dócil às funções encomendadas ou as ordens ditadas. Para criar a figura do funcionário se exige a cisão interior entre a consciência moral do sujeito e o dever da função. Ele é obrigado a cumprir seu dever de função independentemente de sua consciência moral. Nessa cisão interior da consciência moral entre o dever a ser cumprido e a própria consciência é pressuposta a superioridade moral da obediência ao dever da função sobre qualquer resquício de consciência moral subjetiva. Ao funcionário se lhe exige que no agir funcional se perceba como representante do dever da função e não como pessoa moral subjetiva. Desse modo, também se lhe exime de qualquer responsabilidade moral no cumprimento do dever da função, pois ele só está obedecendo ordens. Moralmente, se doutrina ao funcionário para transferir a responsabilidade moral de seus atos como funcionário para os superiores que lhe ditam ordens. O modelo de subjetivação do funcionário foi produzido na modernidade concomitantemente com a implantação da burocracia do Estado e também com as burocracias corporativas.

Gaza: o novo Campo

Hoje, quase um século depois daqueles terríveis acontecimentos protagonizados por Eichmann, nos enfrentamos a um novo genocídio na população palestina da faixa de Gaza. A figura do campo muda suas versões, porém a realidade continua nos assombrando. O campo só existe conexo com a violência de um poder soberano que suspende a vigência de direitos fundamentais sobre a vida de determinados grupos sociais. O campo é o espaço que se abre quando a exceção se torna a norma. O campo é o espaço da exceção onde os direitos fundamentais são suspensos e deste modo as vidas nele capturadas se tornam vulneráveis ao arbítrio de qualquer violência de modo inimputável. As vidas capturadas na exceção do campo podem ser violentadas ou até mortas com total inimputabilidade. Por isso, o campo se torna o dispositivo biopolítico mais eficiente para controlar ou exterminar populações indesejáveis ou perigosas.

Gaza é o espaço geográfico onde, nestes momentos, o estado de exceção é a norma. Gaza é um espaço anômico, onde há um vazio de direitos fundamentais e as vidas ali capturadas encontram-se expulsas do direito e capturadas na anomia. Nesse espaço, todas as vidas capturadas existem fora do direito, com todos os seus direitos suspensos, sobrevivendo ao arbítrio de uma violência soberana que a qualquer momento pode decidir sobre sua vida ou morte. Em Gaza há uma mortandade indiscriminada com total impunidade. As vidas mortas em Gaza não requerem imputabilidade de ninguém, pois o arbítrio de uma violência soberana é que decide quem pode morrer e quem deixa viver. A violência em Gaza está fora do direito, pode se violentar com total impunidade, porque no espaço anômico do campo o direito é substituído pela força de um poder soberano.

No campo, o vazio do direito é preenchido pela violência de um poder que decide arbitrariamente sobre a vida e a morte das vidas que aqui se encontram capturadas. Neste caso, é o governo de Benjamin Natanyahu, Israel, e seus militares, que agem com poder soberano de vida e morte sobre toda a população de Gaza.

Há um direito de defesa do governo de Israel contra os ataques de Hamas. Mas esse direito não consegue justificar, nem de perto, os mais de 50.000 mortos de uma guerra cujo objetivo final parece ser a expulsão ou aniquilamento total da população palestina, para poder ocupar totalmente o território de Gaza e, desse modo, conseguir anexá-lo ao Estado de Israel. Entre esses mortos, há dezenas de milhares de crianças e adolescentes, assim como mulheres e idosos que continuam sendo assassinados de modo sistemático como efeitos colaterais de uma estratégia bélica. As dezenas de milhares de mortes de inocentes são contabilizados como efeitos colaterais necessários para a lógica estratégica traçada pelo poder soberano.

Vestígios de interpelação moral: como isso é possível?

Atingidos pela sombra desta barbárie, ainda com o vestígio de consciência moral que nos resta antes da normalização definitiva do mal, temos que nos questionar: como é moralmente  possível que alguém programe o lançamento de mísseis de alta precisão contra hospitais, contra escolas, contra meros acampamentos onde sabem que com certeza dormem famílias inteiras e dezenas e até centenas de inocentes irão morrer nesse ato?  Como é possível moralmente que alguém possa lançar bombas de alta precisão contra concentrações de população, sabendo que vai ter que matar a centenas, talvez milhares de inocentes? Como é possível que alguém dirija um ataque contra as caravanas de refugiados que se deslocam de um lado para outro sendo um alvo fácil, sabendo que muitos inocentes serão mortos como se fossem gado a abater? Como é possível moralmente que alguém execute ataques contra comboios de ajuda humanitária, cientes de que esses medicamentos e comida são questão de vida ou morte para milhares de pessoas? Como alguém pode utilizar a fome e a inanição como uma arma de guerra a céu aberto e perante todos os holofotes e redes tecnológicas do mundo? Como alguém pode moralmente lançar ataques de drones contra barcos de ONGs humanitárias que levavam comida, mantimentos e medicamentos para os habitantes famintos e até moribundos sitiados de Gaza?  Como alguém pode moralmente planejar a morte por fome e desnutrição de milhares de bebes e crianças que estão sem comida, de tal modo que sua morte poderá evitar que essa população tenha continuidade no futuro?

A sombra de Eichmann

Definitivamente a sombra de Eichmann se projeta sobre Gaza. Esta, como tantas barbáries, não é obra de um monstro, senão de uma racionalidade estratégica, que está utilizando a vida da população de Gaza como meio tático para conseguir ampliar o domínio deste território pelo Estado de Israel. O sofrimento, a morte e no extremo o extermínio desta população, são analisados pela estratégia do poder violento como meros efeitos colaterais necessários para esses objetivos estratégicos. A racionalidade estratégica opera além da figura da monstruosidade, e se apresenta como normalidade estratégica.

Tanta barbárie normalizada ocorrendo à luz midiática do mundo não poderia acontecer se não tivesse a cumplicidade silenciosa e anônima de milhares de “funcionários” que cumprem ordens obedientemente como um dever de função. Alguém toma a decisão e da ordens para matar populações de inocentes. Alguém, no anonimato de sua função, programa os algoritmos dos mísseis para atingir com alta precisão uma escola, um hospital, um acampamento. Alguém, também no anonimato de funcionário, guia os misseis, os drones, as bombas inteligentes para seus objetivos. Alguém, sempre no anonimato de sua função, cumpre a ordem de disparar e finalizar a matabilidade inimputável das vidas inocentes, as vidas nuas ceifadas pelo arbítrio de uma nova violência soberana, num novo campo de extermínio.

Ainda cabe nos questionar moralmente: e se esses assassinatos massivos fossem realizados na modalidade das guerras antigas? Eles deveriam de ser fuzilados e enterrados em grandes covas coletivas secretas, para que não os encontrassem. Ou talvez queimados para que não deixassem rastro. De qualquer modo, os genocídios tradicionais deixavam rastros de barbárie que possibilitavam identificar os responsáveis por estes crimes contra a humanidade. Os nazistas que não tinham ainda a sofisticada tecnologia atual, pensaram no que eles denominava de “Solução final” como um extermínio que não deixaria vestígios. Mas, apesar de todos seus intentos foi possível identificar a uma grande parte dos responsáveis do genocídio nazista. Desse modo foi possível identificar Eichmann. Em Gaza, não é possível identificar os responsáveis. Embora os mísseis produzem uma matabilidade muito superior à dos fuzilamentos tradicionais, os funcionários responsáveis pela execução permanecem invisíveis em seus bunkers bélicos. Em Gaza se cumpre o objetivo de invisibilizar os responsáveis diretos e toda a cadeia de funcionários que operam a maquinaria da letalidade.

Fornos nazistas com restos humanos, etapa final da chamada "Solução Final" | Foto: Wikimedia Commons

Eichmann retornou com toda sua imoralidade do dever de função a agir contra as dezenas de milhares de vidas inocentes ceifadas de modo deliberado e estratégico em Gaza. Porém, Eichmann agora se oculta sob a tecnologia de alta precisão, que também oculta duplamente a responsabilidade de tanta matabilidade. Neste sentido, Gaza tornou-se um laboratório de imoralidade. Conseguiu superar a Eichmann na sua irresponsabilidade da execução do dever de função, pois Eichmann, a pesar dos seus argumentos, foi encontrado, julgado e condenado. Os novos Eichmann de Gaza são funcionários anônimos que se ocultam sob o véu da alta tecnologia para que sua consciência moral continue sem ser atingida, e no anonimato também conseguem evitar qualquer responsabilidade jurídico-política perante um Tribunal Penal Internacional. Gaza representa uma interpelação ética similar e ainda mais grave que o julgamento de Eichmann em Jerusalém, pois nos enfrentamos a uma nova versão da irresponsabilidade moral do dever da função, ou do funcionário que meramente cumpre seu dever permitindo que a barbárie se naturalize.

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