01 Março 2024
A fome e a desnutrição se generalizam na Faixa de Gaza, onde cerca de 2,3 milhões de palestinos enfrentam uma situação de grave escassez, após Israel destruir as suas fontes de alimentos e restringir severamente o fluxo de alimentos, medicamentos e outros fornecimentos básicos, além de suas tropas dispararem contra caminhões da ajuda humanitária e em palestinos na fila para receber assistência.
A reportagem é de Nina Lakhani, publicada originalmente por The Guardian e reproduzida por El Diario, 28-02-2024. A tradução é do Cepat.
“Não há qualquer razão para bloquear de modo intencional a passagem da ajuda humanitária e para destruir intencionalmente a pesca artesanal, estufas e plantações em Gaza, a não ser que seja para impedir o acesso das pessoas aos alimentos”, declara ao The Guardian o relator especial da ONU para o Direito à Alimentação, Michael Fakhri.
“Privar as pessoas de alimentos de modo intencional é claramente um crime de guerra”, afirma. “Israel anunciou a sua intenção de destruir os palestinos, total ou parcialmente, simplesmente por serem palestinos. Como especialista em direitos humanos da ONU, a minha opinião é que esta já é uma situação de genocídio. Isto significa que o culpado que deve prestar contas é o Estado de Israel em sua totalidade, não apenas alguns indivíduos, este Governo ou alguma pessoa em particular.
“A acusação de genocídio responsabiliza todo um Estado e o remédio para o genocídio é a questão da autodeterminação do povo palestino”, acrescenta.
A fome afeta especialmente crianças, bebês, mulheres grávidas e idosos, grupos em maior risco de desnutrição, doenças e mortes prematuras. No norte de Gaza, onde 300.000 pessoas vivem presas e as forças israelenses impedem quase totalmente a chegada de alimentos, uma em cada seis crianças com menos de dois anos (quase 16% desta faixa etária) sofre desnutrição aguda e perda de peso, de acordo com um estudo publicado, neste mês de fevereiro, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF.
Quase 3% sofrem perda de peso grave, uma condição que faz com que o risco de sofrer complicações médias ou de morrer seja alto, caso não recebam ajuda urgente. Nesta quarta-feira, o Ministério da Saúde de Gaza anunciou a morte de seis crianças por falta de água e alimentos, em dois hospitais do norte da Faixa: duas delas morreram no Hospital Al-Shifa e as outras quatro no Centro Kamal Adwan, onde há sete crianças em risco pela desidratação e desnutrição.
“A velocidade em que avança a desnutrição das crianças também é assombrosa”, lamenta Fakhri, que também é professor de direito na Universidade de Oregon (Estados Unidos). “Os bombardeios e as pessoas que morrem diretamente são algo brutal, mas esta fome, a perda de peso das crianças e o atraso em seu crescimento são uma tortura e é infame. É algo que, a longo prazo, irá impactar a população do ponto de vista físico, cognitivo e moral... E tudo indica que é intencional”.
Na cidade de Rafah, no sul da Faixa e onde se concentra atualmente a maioria dos habitantes de Gaza, 5% das crianças com menos de dois anos sofrem desnutrição aguda. Antes do conflito, a desnutrição aguda atingia 0,8% das crianças com menos de cinco anos e a perda de peso não era uma grande preocupação.
Em 2019, um estudo sobre a agricultura de pequena escala nos territórios palestinos concluiu que “a ocupação israelense é a causa mais importante da insegurança alimentar e nutricional”. “Já era uma situação muito frágil devido ao controle asfixiante que Israel exerce sobre tudo o que entra e sai de Gaza. Sendo assim, Israel pôde facilmente fazer com que todos passassem fome quando a guerra começou, porque já tinha a maior parte da população à beira do precipício”, segundo Fakhri.
“Nunca tínhamos visto uma população civil passar tanta fome, de forma tão rápida e absoluta, esta é a opinião que nós, especialistas em fome, compartilhamos. “Israel não está apenas disparando contra civis, também está buscando condenar o futuro do povo palestino, prejudicando seus filhos”, acrescenta.
Em toda a Faixa de Gaza, 95% dos lares reduziram o número de refeições e o tamanho das porções, e os adultos abrem mão delas para poder alimentar as crianças pequenas. Contudo, a pouca comida a que têm acesso carecem de nutrientes essenciais ao crescimento humano e o seu desenvolvimento físico e cognitivo. Nos domicílios pesquisados, cada pessoa tem em média menos de um litro de água potável por dia. No mínimo, 90% das crianças com menos de cinco anos sofrem de uma ou mais doenças contagiosas.
“A fome e a doença são uma combinação letal”, explica Mike Ryan, médico e diretor do Programa de Emergências da Organização Mundial da Saúde - OMS. A velocidade com que esta crise nutricional avançou também tem a ver com a insegurança alimentar que, mesmo antes da guerra, metade dos habitantes de Gaza sofria, 80% dos quais dependiam de ajuda humanitária, após 16 anos de bloqueio por parte de Israel e do Egito.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional - TPI considera um crime de guerra matar, de modo intencional, civis de fome, “privando-os de itens indispensáveis à sua sobrevivência e até impedindo deliberadamente o fornecimento de ajuda”. Entre os bens essenciais estão os alimentos, a água e o refúgio, que Israel tem nega aos palestinos de modo sistemático, desde o início da ofensiva sobre a Faixa. Nas convenções de Genebra e no Estatuto de Roma, a inanição é um crime de guerra. Em 2018, o Conselho de Segurança da ONU também a reconheceu como um crime de guerra e uma violação geral do direito internacional.
A situação catastrófica ainda pode piorar. Mais de uma dúzia de países, entre eles os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha, a Austrália e o Canadá, suspenderam, no final de janeiro, o seu financiamento à Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA). A ajuda financeira foi suspensa imediatamente após Israel ter acusado doze funcionários da agência de vínculos com o Hamas, acusações feitas no mesmo dia em que uma decisão provisória do Tribunal Internacional de Justiça - TIJ ordenou que aquele país tomasse todas as medidas possíveis para evitar “atos genocidas” e garantir imediatamente a prestação de serviços básicos e a ajuda humanitária à população civil de Gaza.
Os 30.000 funcionários da UNRWA providenciam alimentos de emergência, cuidados de saúde, educação e outros serviços básicos a quase seis milhões de refugiados palestinos em Gaza, na Cisjordânia, na Jerusalém Oriental, no Líbano, na Síria e na Jordânia. A UNWRA anunciou, nesta sexta-feira, que não poderá continuar operando no norte de Gaza, onde a última vez que entregou alimentos foi há cinco semanas.
“Acabar de modo quase instantâneo com o financiamento, a partir de denúncias infundadas contra um pequeno número de pessoas, não tem outra intenção a não ser infligir um castigo coletivo a todos os palestinos em vários países. Os países que retiraram esta ajuda vital são, sem dúvida, cúmplices da inanição dos palestinos”, denuncia Fakhri.
A Anistia Internacional também denuncia que Israel não tomou “nem mesmo as medidas mínimas indispensáveis” para cumprir a decisão do TIJ e garantir que uma população em risco de genocídio e à beira da fome recebesse assistência humanitária e serviços básicos suficientes. O Governo israelense argumenta que sua guerra é contra o Hamas e uma resposta justificada ao ataque transfronteiriço, sem precedentes, de 7 de outubro, no qual morreram mais de 1.200 pessoas.
Mais de 30.000 habitantes de Gaza morreram, desde então, em ataques israelenses, segundo dados do Ministério da Saúde palestino, considerados válidos pela ONU. Outros 70.000 ficaram feridos e milhares estão desaparecidos e supostamente mortos. Estima-se que 134 israelenses permanecem sequestrados pelas milícias palestinas na Faixa.
Há anos, Israel mira as fontes de água e de alimentos dos palestinos. Transformou em crime penal a busca por ervas silvestres nativas como zaatar (tomilho), akkoub (gundélia) e miramiyyeh (sálvia), atribuindo punições com multas e penas de até três anos de prisão. Há muito tempo, as forças israelenses disparam, detêm e sabotam os pesqueiros palestinos, indo contra os acordos de Oslo de 1993 e 1995, que lhes concedem até 20 milhas náuticas para pescar.
A violência atual contra os palestinos e a seus fornecimentos de água e alimentos também ocorre na Cisjordânia ocupada. Após o ataque de 7 de outubro, cerca de 9.700 hectares de oliveiras ficaram sem a colheita na Cisjordânia porque Israel impediu os agricultores de acessarem suas plantações. Desta forma, perderam 1.200 toneladas métricas de azeite de oliva (avaliadas em cerca de 9,2 milhões de euros), um poderoso símbolo da identidade palestina e um produto de exportação central.
“A destruição das oliveiras não é apenas um tema alimentar e comercial, mas está no cerne do que significa ser palestino e da sua relação com a terra; do mesmo modo que o mar é fundamental para o que significa ser de Gaza”, explica Fakhri.
O governo israelense não respondeu às solicitações de resposta às declarações de Fakhri, enviadas por The Guardian. O relator está convencido de que “Israel alegará que há exceções aos crimes de guerra, mas não há exceções ao genocídio e não há como argumentar por que Israel permite este grau de desnutrição e fome, destruindo a infraestrutura civil, o sistema alimentar e os trabalhadores humanitários”.
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Gaza. “Nunca tínhamos visto uma população civil passar tanta fome, de forma tão rápida e absoluta” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU