01 Agosto 2018
A liberdade é uma aspiração e uma fome, mas também um deserto e uma prova, onde devemos apreender a ajudarmos uns aos outros e a partilhar. A imagem do maná (pão) e dos codornizes (peixes) que não podemos acumular não será um aprendizado de como vivermos juntos, preocupados uns com outros e de sermos solidários como as pessoas?
A reflexão a seguir é de Raymond Gravel (+1922-2015), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do Domingo 18º do Tempo Comum - Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Ex 16,2-4.12-15
2ª leitura: Ef 4,17.20-24
Evangelho: Jo 6,24-35
Depois de ter lido, no domingo passado, a narrativa da multiplicação dos pães ou, melhor, a narrativa do dom e da partilha do pão segundo São João, nós começamos hoje, durante três domingos consecutivos, o discurso sobre o Pão da Vida. Esse discurso quer primeiramente nos fazer passar da fome material para a fome espiritual: do pão que acalma a fome do ventre ao verdadeiro Pão que acalma todas as fomes. E esse Pão da Vida é Cristo mesmo. Podemos, então, ver que esse discurso do evangelho de João é o fruto de uma longa reflexão cristã sobre a Eucaristia que está composta pela Palavra proclamada e pelo Pão da Vida partilhado. Mas que mensagens podemos tirar desta primeira parte do discurso de João 6?
Há certamente a fome material, a fome básica de pão, do alimento que todo mundo precisa, e do qual uma de cada dez pessoas carece. Segundo as últimas estatísticas da ONU, seis milhões de seres humanos no mundo sofrem fome. É escandaloso! Enquanto isso, nós ficamos sabendo de todo o desperdiço que produzem os que possuem a riqueza e a capacidade de alimentar os outros. Infelizmente, nós fazemos parte de tudo isso. E, portanto, esse tipo de fome deve ser acalmado mesmo antes de falar em outro tipo de fome. E por quê? Simplesmente pelo ditado que diz: “Não adianta fazer discurso para quem está com fome”. Quando temos fome física, não podemos perceber as outras fomes.
Por outro lado, precisamos definir as outras fomes. Pode ser que essas podem nos fazer tomar consciência do que nós possuímos e nos motivar mais ainda a partilhar e a alimentar os que têm fome. As fomes de liberdade, de ternura, de dignidade, de perdão, de justiça, de amor, de paz e de esperança são fomes humanas que precisamos saciar para poder continuar vivendo, amando e sendo amados. Mas todas essas fomes só podem ser acalmadas, alimentadas, sob o preço dos muitos sacrifícios e sofrimentos de todo tipo que se expressam na imagem do deserto, tanto no Antigo Testamento como no Evangelho. O teólogo Michel Hubaut escreve: “Quem de nós, qual povo, qual igreja, não deveria fazer alguma vez na vida a experiência da travessia no deserto, e descobrir lá a sua pobreza radical, a fim de ficar disponível aos dons de Deus! Travessias do deserto mais ou menos dramáticas: uma prova moral ou de saúde, um período de dúvida, de aridez, de ruptura, uma impressão de caminhar sobre si...”.
Os desertos não são nunca fáceis de atravessar e de habitar. Podemos até nos negar a entrar neles, mesmo sabendo que são necessários para descobrir e compreender as fomes e para encontrar o alimento que precisamos para saciá-las. No trecho do livro de Êxodo que temos hoje, o povo de Israel, logo que saiu da escravidão do Egito, sentiu saudades dos bons tempos passados na escravidão: “Era melhor termos sido mortos pela mão de Javé na terra do Egito, onde estávamos sentados junto à panela de carne, comendo pão com fartura. Vocês nos trouxeram a este deserto para fazer toda esta multidão morrer de fome!” (Ex 16,3). A liberdade é uma aspiração e uma fome, mas também um deserto e uma prova, onde devemos apreender a ajudarmos uns aos outros e a partilhar. A imagem do maná (pão) e dos codornizes (peixes) que não podemos acumular não será um aprendizado de como vivermos juntos, preocupados uns com outros e de sermos solidários como as pessoas? Esse pão e esses peixes que os evangelhos retomam fazem da multidão anônima um povo de irmãos e de irmãs (cf. o evangelho do domingo passado).
Segundo o autor da carta aos Efésios, os cristãos também têm saudades das suas vidas em épocas passadas, e que Paulo chama de homem velho, onde imperava o cada um por si de uma sociedade em que os que têm boas condições podem aproveitar e se esquecem dos excluídos. Não é assim que devem viver os cristãos: “Não foi assim que vocês aprenderam a conhecer Cristo” (Ef 4,20). Mas, o que aprenderam esses cristãos de Éfeso? No versículo 24, há uma tradução litúrgica que não é boa. Em lugar de dizer: “adotem o comportamento do homem novo...” deveria dizer: “se revistam do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade que vem da verdade” (Ef 4,24). Revestir-se como se reveste uma roupa faz referência ao batismo cristão que fala da nossa pertença ao Cristo da Páscoa e que nos convida a partilhar com aquele ou aquela que está precisando (Ef 4,28).
E no evangelho de João, se a multidão corre atrás de Jesus não é porque primeiramente ela se deu conta que tinha fome do Cristo Ressuscitado, mas sim porque ela aproveitou o dom e a partilha do pão: “Jesus respondeu: ‘Eu garanto a vocês: vocês estão me procurando, não porque viram os sinais, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos’” (Jo 6,26). É preciso, então, ensinar a essa multidão que quer seguir Jesus a tornar-se um povo de irmãos e irmãs que se entreajudam e que partilham o Pão de Vida que é Cristo mesmo. Esse pão acalma todas as fomes e as sedes: “Jesus disse: ‘Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem acredita em mim nunca mais terá sede’” (Jo 6,35). Mas atenção! Antes disso, é necessário que todas as pessoas atravessem seus desertos para conhecer as suas fomes. É o preço da liberdade; é o preço do Amor.
Para terminar, eu gostaria de partilhar esta bela reflexão de Michel Hubaut: “A grandeza do homem é de ser um caminhante que deve avançar de um acampamento a outro para tomar consciência da sua fome do Absoluto. Dificilmente escolhemos o nosso deserto! Ele é diferente para cada pessoa. Mas, mais cedo ou mais tarde, é preciso atravessá-lo! Uma verdadeira escola onde eu aprendo a viver, a pensar, a rezar sem preocupar-me em acumular provisões para acolher o maná, o dom quotidiano do Senhor. Despojado de todas as minhas respostas piedosas, superficiais, das minhas antigas seguranças, eu devo cavar as minhas fomes para acolher humildemente um pedacinho de pão, a pequena porção do Evangelho, a pequena Palavra de vida que me impedirá de morrer ou de me desesperar em meu deserto. Quem vem a mim não terá mais fome!”.
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Ter fome de Cristo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU