21 Março 2023
“Tudo indica que Washington não aprendeu muito no Iraque. Deixou um país devastado e fez o mesmo no Afeganistão, onde a retirada estadunidense, em 2021, e a reocupação de Cabul pelo exército talibã parecem realçar essa estratégia tão estadunidense de entrar em um lugar, provocar o caos, como se tratasse de reconstruir o lugar e, depois, dar no pé e deixar o lugar assolado. Agora, pretende-se fazer o mesmo na Ucrânia”, escreve Juan Antonio Sanz, jornalista e analista de informação internacional, em artigo publicado por Público, 19-03-2023. A tradução é do Cepat.
A guerra que os Estados Unidos desencadearam no Iraque, há vinte anos, não terminou em 2011 com a retirada “oficial” estadunidense daquele país árabe. A invasão, realizada sem a permissão da ONU, deixou um país dividido, destruiu sua infraestrutura econômica e, em vez de promover a democracia, assentou as bases de um Estado falido, promoveu a tribalização e deixou um terreno fértil para o islamismo radical.
Ao mesmo tempo, a longa guerra favoreceu a entrada do tradicional inimigo do Iraque, o regime fundamentalista iraniano, na política do país árabe e perpetuou seu território como um campo de batalha entre sunitas e xiitas, que ainda terá repercussões por muitas décadas na segurança regional, do Golfo Pérsico ao Mar Cáspio, da Síria ao Afeganistão.
O recente pacto promovido pela China entre o Irã e a Arábia Saudita pode interromper o confronto entre Teerã e Riad nas arenas iraquianas, mas também abre as portas para uma divisão de facto do Iraque.
O Iraque foi mais um dos fracassos da agressiva política externa estadunidense, manifestada antes no Vietnã, Camboja, Somália, Sérvia, Afeganistão e Líbia, para citar apenas alguns exemplos em que a guerra foi consequência da diplomacia do caos. Em outros lugares, como na América Latina, optou-se por golpes de Estado, ações paramilitares mais ou menos acobertadas, proteção a ditaduras militares afins e desestabilização econômica. O objetivo era o mesmo: reprimir qualquer tentativa de desafio, democrático ou não, a Washington.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, há pouco mais de um ano, repete muitos dos padrões da invasão do Iraque pelos Estados Unidos e a coalizão internacional que se organizou com base em mentiras e desinformações sobre a existência de armas de destruição em massa nas mãos do regime de Saddam Hussein.
A invasão do Iraque respondia, sobretudo, aos interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e de alguns desses aliados no Médio Oriente. Abria-se a torneira para que regimes autocráticos, como o do presidente Vladimir Putin, repetissem essa agressão contra seus vizinhos para sustentar com a violência seus interesses geoestratégicos.
Inclusive, o uso de mercenários pelos Estados Unidos na invasão e ocupação do Iraque, a Blackwater, por exemplo, foi replicado pela Rússia na Ucrânia com o Grupo Wagner.
Com algumas falsas acusações ao regime de Saddam Hussein sobre a suposta posse de armas de destruição em massa (apontava-se todo um arsenal de armas químicas), no dia 20 de março de 2003, começaram a entrar no Iraque 300.000 soldados da coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos, com a Grã-Bretanha, entusiasmados com esta cruzada incomum.
A vitória foi rápida e as grandes operações bélicas levaram pouco menos de um mês para sentenciar o destino do regime iraquiano. A ocupação, no entanto, durou mais de oito anos e mudou totalmente o cenário do Oriente Médio, dando primazia às monarquias árabes do Golfo Pérsico, majoritariamente aliadas dos Estados Unidos, o que as deixou com as mãos livres em conflitos como o do Iêmen.
Se o presidente estadunidense George Bush já havia empreendido a libertação do Kuwait, invadido pelo Iraque com a épica Operação Tempestade no Deserto, entre agosto de 1990 e fevereiro de 1991, seu filho George W. Bush quis terminar o que seu pai tinha deixado incompleto (a decapitação do regime iraquiano).
Bush filho havia colocado em marcha a “guerra contra o terror” que, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, em território estadunidense, levou a ira militar de Washington ao Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia e Iêmen, com mais de um milhão de mortos, em sua maioria civis na recontagem das vítimas.
Só no Iraque, o número de mortos na guerra é ultrajante, mesmo quando consideramos os dados mais otimistas. Entre 100.000 e 600.000 mortes, por causa da guerra e a catástrofe humana provocada por ela.
A Operação Liberdade Iraquiana levou à queda de Saddam Hussein, que havia governado seu país com mão de ferro, desde 1979, e à sua execução em 2006. Curiosamente, Hussein havia sido um notável aliado dos Estados Unidos ao conter o regime dos aiatolás iranianos, na longa guerra de 1980 a 1988. No entanto, sua invasão ao Kuwait, em 1990, colocou-o na lista dos malvados. Foi quando, então, utilizaram as grandes matanças outrora ordenadas por Saddam contra dissidentes e minorias étnicas como mais um dos argumentos para derrubá-lo.
Saddam foi acusado de ter essas armas de destruição em massa em seus arsenais (algo que nunca pôde ser demonstrado e por cuja falsidade o então primeiro-ministro britânico, Tony Blair, mais tarde, pediu desculpas) e foram difundidas suspeitas de que ele poderia ter ajudado a rede terrorista islâmica Al-Qaeda a lançar os ataques do 11S, outra acusação para a qual também jamais houve provas.
O certo é que a queda de Saddam e a posterior saída das tropas estadunidenses, em 2011, levaram as forças radicais do Estado Islâmico para o Iraque. As unidades militares estadunidenses tiveram que retomar, em 2014, sua luta contra os jihadistas aliados ao Exército iraquiano, e outra coalizão internacional, até a sua derrota no final de 2017.
Hoje em dia, embora se opte por não fuçar em coisas do passado para explicar o presente, os fracassos dos Estados Unidos no Iraque, seu fracasso no Afeganistão e mesmo sua derrota indireta na Síria podem ser inquiridos no revanchismo que levou Washington a transformar a guerra na Ucrânia em uma contenda por delegação contra a Rússia.
Certamente, o conflito ucraniano pode ser explicado pelo despotismo e megalomania de Vladimir Putin, as ameaças que a Rússia tem sentido com o avanço da OTAN rumo às suas fronteiras e o desafio lançado por um país, a Ucrânia, que não quis aceitar o que o sentido comum geopolítico recomendava, antes de acontecer a invasão russa, ou seja, assumir um papel de Estado neutro e não avançar ao status de braço armado dos Estados Unidos na fronteira russa.
Contudo, não só isso. Há vinte anos, Washington tentava controlar o Oriente Médio. Agora, pretende fazer o mesmo com o Extremo Oriente à custa dos interesses e da segurança da China, e para isso se aproveita da incerteza na Europa, área prioritária para o comércio chinês. Com sua invasão, Putin deu de bandeja à Casa Branca as circunstâncias para apostar na política das canhoneiras, inaugurada pelos Estados Unidos no século XIX, e que agora dirige a Moscou e Pequim.
No entanto, tudo indica que Washington não aprendeu muito no Iraque. Deixou um país devastado e fez o mesmo no Afeganistão, onde a retirada estadunidense, em 2021, e a reocupação de Cabul pelo exército talibã parecem realçar essa estratégia tão estadunidense de entrar em um lugar, provocar o caos, como se tratasse de reconstruir o lugar e, depois, dar no pé e deixar o lugar assolado. Agora, pretende-se fazer o mesmo na Ucrânia.
Bush filho apostou em retirar Saddam Hussein e conseguiu isto à custa do caos. O presidente Joe Biden mira, agora, a cabeça de Putin, mas o erro de cálculo pode ser garrafal, neste momento.
O Tribunal Penal Internacional, em Haia, acaba de emitir uma ordem de prisão contra Vladimir Putin por sua suposta responsabilidade na prática de crimes de guerra na Ucrânia. Contudo, não foi Putin o primeiro a desencadear uma guerra injustificada.
Por ocasião do aniversário da guerra do Iraque, seria necessário lembrar que este conflito foi iniciado, sem a permissão da ONU, por alguns dos países que agora acusam, com razão, a Rússia de lançar uma invasão ilegal.
Como na Ucrânia, tratou-se de um uso ilegal da força para quebrar a ordem estabelecida e violentar a soberania de um país. Portanto, punível pelo direito internacional. George Bush, o britânico Tony Blair e, inclusive, o então presidente do Governo espanhol, José María Aznar (os três da reunião nos Açores) poderiam ter sido colocados no banco dos réus por darem rédea solta aos crimes contra a paz. Claro, isso não aconteceu e nunca vai acontecer.
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20 anos da invasão ao Iraque: a guerra ilegal dos Estados Unidos que semeou o caos no Oriente Médio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU