21 Agosto 2014
Neste momento, Francisco não pode abrir mão do poder norte-americano para salvar algo do cristianismo na região do Oriente Médio.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 20-08-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Da liturgia da Igreja às liturgias da comunicação global: a coletiva de imprensa do retorno da viagem papal já se tornou um compromisso típico do pontificado de Francisco, quase como as homilias da manhã em Santa Marta.
Essa coletiva de imprensa era mais esperada do que outras por causa do quadro internacional em que a visita à Coreia ocorreu: a questão chinesa e a divisão da Coreia, a guerra permanente entre Israel e Hamas em Gaza, mas sobretudo a carta de 9 de agosto ao secretário-geral da ONU sobre a situação das minorias religiosas atacadas pelo Isis no Iraque.
A coletiva de imprensa se concentrou nas questões internacionais, e a tentação é de procurar nas palavras do papa uma "doutrina Bergoglio" que não existe.
Mas Francisco se encontra diante de uma situação que nos leva a reconsiderar, sob uma nova luz, o dever da comunidade internacional à ingerência humanitária para proteger as populações em risco de genocídio. O Papa Bento XVI não teve que lidar com uma crise internacional desse tipo.
E invocar (como se faz em alguns círculos católicos) o caráter profético do discurso de Regensburg sobre o Islã é apenas um modo para evitar de entender a conjuntura atual.
Da entrevista do Papa Francisco fica clara a linguagem usada para expressar a consciência da Igreja de que intervenções humanitárias se transformaram às vezes em guerras de conquista e para reiterar que o interlocutor de referência são as Nações Unidas.
A Europa política desempenha um papel radicalmente marginal na linguagem bergogliana, e não só desconfiança em relação a Bruxelas. Não se trata mais do papado global de João Paulo II pós-Muro de Berlim, que se desvincula do papel de garante moral e espiritual da Otan.
O papado de Francisco é um papado global de iure e de facto que não se sente mais ligado àquele projeto de Ocidente pós-1945 "concebido no Vaticano e parido em Washington", como disse o teólogo protestante alemão Martin Niemoller.
Uma das expressões mais audazes usadas por Francisco no retorno da Coreia para descrever a situação atual é a de uma "terceira guerra mundial feita em pedaços". É uma visão das coisas típica de um não europeu, que não vê no fim da Segunda Guerra Mundial o início de uma pax europeia estendida ao resto do globo: essa paz já foi rompida há muito tempo, e os conflitos encostam nas fronteiras da União, não sem responsabilidades europeias e norte-americanas.
No fim do século XX, uma visão desse tipo teria sido acusada de terceiro-mundismo, fruto de uma política "não alinhada". Mas o Papa Francisco não é apenas o primeiro papa do pós-Concílio em sentido teológico, mas também é o primeiro papa do século XXI em sentido geopolítico.
Isso envolve um redimensionamento da centralidade europeia no mapa da ecclesia global e da centralidade norte-atlântica em julgar o estado do mundo.
Francisco tem um evidente "problema americano". Certamente não é um lapso aquela passagem em que lembra aos católicos (estadunidenses) o ensinamento moral da Igreja sobre a tortura. Mas também é interessante a vontade do Papa Francisco de manter em suspense os católicos norte-americanos sobre a suposta visita de setembro de 2015: em parte para repreender o bispo da Filadélfia, Chaput, pela vontade de se credenciar em público, há alguns meses, como aquele que tinha convencido o papa a ir aos EUA; mas também porque, para Francisco, a Igreja norte-americana representa uma incógnita e, ao mesmo tempo, uma Igreja como as outras.
Se há um papa que não acredita no excepcionalismo norte-americano, ele é precisamente o argentino Bergoglio.
As palavras da coletiva de imprensa do Papa Francisco foram divulgadas apenas algumas horas antes da coletiva de imprensa de Barack Obama sobre os fatos de Ferguson. Tudo isso para dizer que o presidente gostaria de falar mais sobre o Iraque do que dos tumultos de fundo racista no Missouri: outro sinal do declínio da relevância dos EUA na geopolítica mundial.
O papa sul-americano está consciente desse declínio. Mas, neste momento, Francisco não pode abrir mão do poder norte-americano, para salvar algo daquele cristianismo que, na região do Oriente Médio, era vital ainda séculos antes de que os bispos de Roma fossem chamados de papas.
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Iraque, o "problema americano" do Papa Bergoglio. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU