09 Março 2021
Cada viagem papal é, em certo sentido, um exercício de narração de histórias. Um papa escolhe viajar para um dado destino em parte porque acredita que tem uma história que o mundo precisa ouvir e, por alguns dias, ele empresta o seu holofote para que a mídia global preste atenção.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 07-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A viagem do Papa Francisco ao Iraque de 5 a 8 de março não é exceção. A história do Iraque é angustiante, composta de levantes, violências e um sofrimento humano inimaginável, tudo isso agravado pela negligência global. Sua minoria cristã foi especialmente atingida, um ponto que Francisco lembrou nesse domingo com a sua visita à aldeia cristã de Qaraqosh, que foi devastada pela ocupação do ISIS de 2014 a 2017.
Certamente, os iraquianos pareceram entender. No domingo de manhã, enquanto o Papa Francisco estava chegando a Mosul, uma jovem estudante de psicologia iraquiana em Roma chamada Sana Rofo disse à TV italiana que nunca tinha visto seu país tão unido e entusiasmado: “O papa fez um milagre!”.
Enquanto isso, um tuíte de um muçulmano iraquiano que assistia ao desenrolar da viagem estava se tornando viral no país: “Espero que o papa venha todos os anos”, escreveu ele, apenas meio brincando.
No entanto, pode-se argumentar que a história mais importante contada nesta viagem, pelo menos de um ponto de vista estritamente católico, não tem a ver realmente com o Iraque, mas com o próprio Papa Francisco.
Não importa por quanto tempo ele ainda permanecerá no cargo e apesar de todo o drama que já vimos e do que ainda está por vir, não haverá nenhuma síntese melhor de quem é Francisco e do seu significado como papa.
Para começar, esta viagem cristaliza a vontade e a determinação de Francisco – ou, para usar um termo menos elegíaco, a sua obstinação.
Se há seis meses você tivesse entrevistado 100 autoridades vaticanas e diplomatas papais, provavelmente 99 desaconselhariam uma viagem papal ao Iraque. Isso seria irresponsável em meio a uma pandemia global, diriam eles, e, além disso, a situação de segurança é muito precária. Eles também poderiam apontar que o Vaticano acabou de registrar um déficit de 60 milhões de dólares em 2020, e talvez este não seja o momento para aumentar os custos com viagens (mesmo que a maior parte do custo seja absorvida pelo país anfitrião, o Iraque também não está nadando em dinheiro).
Além disso, há também a questão da própria condição física do papa. Recentemente, ele foi obrigado a cancelar ou a adiar vários eventos devido às batalhas contra a ciática, a condição dolorosa de que ele sofre. Devido em parte à relativa inatividade imposta pelos confinamentos do coronavírus, Francisco também ganhou um pouco de peso nos últimos meses, complicando ainda mais os seus movimentos e deixando-o mais sujeito à exaustão. Ao vê-lo no Iraque, seu cansaço era muitas vezes visível.
Sem dúvida, Francisco ouviu todos esses argumentos, repetidamente e com ênfase crescente à medida que a data de partida se aproximava. Mesmo assim, ele foi, algo que é característico da sua insistência desde o início.
Mais profundamente, não é por acaso que Francisco fez essa viagem enquanto a pandemia da Covid-19 ainda está ocorrendo. Em muitos aspectos, é precisamente por causa da Covid que Francisco sentiu que essa viagem é tão essencial.
Desde o início, Francisco defendeu uma maior solidariedade e compaixão nos assuntos globais, desde o tratamento aos migrantes e refugiados até a estrutura da economia global no início do século XXI. Embora essas preocupações estejam enraizadas na sua leitura do Evangelho e na sua experiência pastoral na América Latina, a crise do coronavírus claramente os exponenciou. Em sua mente, a pandemia revelou a fragilidade subjacente da ordem global atual, apresentando uma escolha decisiva: ou saímos melhores desta crise ou aceleramos a queda rumo à autodestruição.
Na encíclica Fratelli tutti, Francisco articulou amplamente a sua visão sobre o que é “ser melhor”. No entanto, Francisco também percebe que esta é uma era visual, na qual as pessoas respondem muito mais instintivamente às imagens do que às palavras.
Do ponto de vista do pontífice, a viagem ao Iraque não só não precisava esperar pelo fim definitivo da pandemia, como também tinha que acontecer agora, porque ela é a Fratelli tutti em miniatura e um tecido de gestos em vez de palavras.
Quando Francisco se encontrou com o grande aiatolá Ali al-Sistani nesse sábado, em Najaf, o “Vaticano” de fato do Islã xiita, ele enviou uma mensagem poderosa sobre como superar as divisões sectárias e criar uma cultura do diálogo. Quando ele visitou Mosul no domingo para rezar pelas vítimas da guerra, na verdade ele ministrou um curso de graduação sobre o custo humano da violência. Quando ele parou no vilarejo cristão de Qaraqosh, ele escreveu o equivalente visual de uma carta apostólica sobre liberdade religiosa, direitos humanos e tolerância.
Se o “ser melhor” pós-Covid significa um senso mais profundo da fraternidade e da solidariedade humanas, com uma ênfase especial no fato de ir ao encontro daqueles que foram prejudicados pela negligência e pela injustiça, existe um lugar melhor na terra para defender isso do que o Iraque?
Além disso, lembremo-nos do seguinte: o que mais quer que o Papa Francisco seja, ele também é um político jesuíta astuto, e nada do que ele faz é sem lógica. Sem dúvida, o pontífice entende que, em um momento em que outros líderes mundiais geralmente não estão fazendo viagens públicas de alto perfil e em que a mídia global está faminta por boas notícias para contar, a sua presença no Iraque tem uma ressonância máxima.
Há muitos anos, Bruce Springsteen publicou uma coletânea de “Greatest Hits” com notas pessoais sobre os vários álbuns representados. Com relação ao seu icônico álbum de 1975 “Born to Run”, Springsteen escreveu que foi “a minha chance de ganhar o título” de maior álbum de rock-and-roll de todos os tempos.
A viagem de Francisco ao Iraque, com efeito, também é a sua chance de ganhar o título – não da “maior” viagem papal de todos os tempos, talvez, mas sim da mais emblemática, daquela que melhor resume o espírito de um papado e da sua mensagem para o mundo em seu momento histórico.
Resta saber se esta viagem realmente mudará o mundo, mas provavelmente nunca veremos um esforço mais significativo de Francisco para tentar isso.
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Francisco no Iraque: a viagem papal mais emblemática de todos os tempos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU