30 Agosto 2023
O confisco da Universidade Centro-Americana pelo regime de Daniel Ortega, sob acusação de terrorismo, supõe um raio ao humanismo na Nicarágua.
O artigo é de Sergio Ramírez, escritor e vencedor do Prêmio Cervantes, publicado por El País, 29-08-2023.
Vi circular nas redes a fotografia do padre Adolfo López de la Fuente debruçado na porta da casa comunal dos jesuítas, onde morava em Manágua. Agora, aos 98 anos, expulsaram-no de lá. Ele aparece, pelo que me lembro, ao lado daquela mesma porta, na função de porteiro voluntário da vila El Carmen, localizada nas dependências da Universidade Centro-Americana. Após o confisco da universidade, acusados de terrorismo, todos foram expulsos pela força policial.
Veio abrir a porta, a pequena cruz pendurada no pescoço da guayabera gasta de tanto lavar, a barba grisalha, os olhos alertas por trás de óculos grossos; Ele sorria ao me ver e quase sempre ficava em silêncio. Não sei se o seu trabalho de porteiro lhe foi imposto por ele mesmo ou se fazia parte de suas obrigações, atribuídas pela comunidade. Fernando Cardenal (1) contou-me que na casa jesuíta de Medellín uma das suas funções era sair todas as manhãs para comprar pão para o café da manhã.
Tulita, minha esposa, que trabalhou em estreita colaboração com o padre César Jerez (2) quando ele era reitor da universidade, e que morava na vila El Carmen, lembra que cada um dos padres recebia sua mesada, uma modesta quantia em dinheiro para suas despesas pessoais. Cigarro para quem fumava, ingresso de cinema para quem queria ir ao cinema.
Tenho na memória aquela vila El Carmen, um tanto escondida do trânsito do campus jesuíta entre as árvores, mobiliada com cadeiras de balanço, o que na Nicarágua chamamos de “cadeiras de vovó”, uma pequena televisão, uma sala de jantar como uma pensão de bairro. Casa de homens solteiros e trabalhadores, ninguém diria que estava repleta de eminências acadêmicas, com dois e três doutores, investigadores científicos, teólogos, sociólogos, historiadores humanistas.
Padre Adolfo, por exemplo, quem abriu a porta. Nascido em Neguri, Bilbao, estudou matemática e engenharia, especializando-se posteriormente em malacologia, autor do livro Moluscos da Nicarágua (Bilvalvos). Defensor da biodiversidade, opôs-se à fracassada construção do canal interoceânico, porque devastaria as riquezas do Grande Lago. Seu irmão Julio, também jesuíta e engenheiro, falecido há dez anos, e especialista em ondas quadradas, produziu um conjunto de mapas detalhando a radiação solar na Nicarágua, 25 anos dedicados ao estudo do assunto.
Nunca estudei com os jesuítas. Terminei uma escola secundária secular e fui estudar Direito na Universidade Nacional de León, secular por excelência, sob a reitoria de um humanista progressista, Mariano Fiallos Gil. Os Somoza apoiaram a criação da Universidade Centro-Americana em Manágua, para neutralizar a de León, cujo lema, criado pelo reitor Fiallos, era À liberdade para a Universidade. Mas muito em breve a de Manágua tornou-se um foco de agitação estudantil igualmente acalorada, depois um centro de irradiação da Teologia da Libertação e, em abril de 2018, um refúgio para jovens perseguidos até a morte, sob a corajosa reitoria do padre José Idiáquez, que vive em exílio no México.
Quando fecharam as portas da minha alma mater, a Universidade Centro-Americana abriu a deles para mim e fui recebido como se tivesse me formado lá. A melhor universidade do país, a mais aberta, a mais livre, quando todas as universidades públicas caíam sob o jugo monótono da arcaica ideologia oficial.
Comecei a conhecer os jesuítas através de Fernando Cardenal, irmão de Ernesto Cardenal, ambos sacerdotes, e com quem conspirei para derrubar Somoza. Roma os puniu suspendendo-os ad divinis, e Fernando teve que refazer o caminho do zero, como noviço, para ser readmitido na ordem, o primeiro caso na história da Companhia de Jesus. Ernesto foi reabilitado ao seu status de padre secular pelo Papa Francisco pouco antes de sua morte.
Fernando, como muitos jesuítas, proclamou a Teologia da Libertação, florescente na América Latina na segunda metade do século passado, convertida na década de setenta num dos pilares ideológicos da revolução sandinista, e fonte de conflitos dentro da Igreja, quando ao chegar ao papado João Paulo II declarou-se contra os seus postulados.
O padre Cesar Jerez também era próximo de mim. Guatemalteco, nascido na cidade indígena de San Martín Jilotepeque, estudou teologia em Frankfurt e doutorou-se em Ciência Política pela Universidade de Chicago. Idealista maduro e focado, mas inflexível na sua convicção ética, não se concebia senão ao serviço da transformação social. Um grande conversador, com um apurado senso de humor. “Há gente da oligarquia da Guatemala que se surpreende que um índio de San Martin, como eu, fale alemão e fale inglês”, riu alegremente. Os inesquecíveis e exemplares Xavier Gorostiaga e Amando López, também reitores da universidade, Amando brutalmente assassinado em San Salvador pelo Exército em 1989, junto com outros cinco padres da ordem. E o padre Álvaro Argüello, que criou do nada o Instituto de História da Nicarágua e da América Central, onde permanece o acervo documental mais importante do país, deixou-se entregue à própria sorte. Nada menos que sua memória.
Outra porta fechada para o humanismo. Um país de portas fechadas. As portas se fecham, o barulho diminui e só resta a escuridão.
1.- Fernando Cardenal, padre jesuíta nicaraguense, foi o ministro da Educação do primeiro governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional, e liderou a Campanha de Alfabetização reconhecida pelo seu alcance pela comunidade internacional.
2.- Cesar Jerez, guatemalteco, foi superior provincial os jesuítas da América Central, nomeado pelo superior geral Pedro Arrupe. Também foi reitor da UNAM Nicarágua.
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Nicarágua: outra porta fechada. Artigo de Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU