03 Março 2020
O padre nicaraguense, que faleceu neste domingo, 01-03-2020, concentrava os traços essenciais da identidade de seu país: o espírito de luta pela pátria
O depoimento é de Gioconda Belli, poeta nicaraguense, publicado por El País, 02-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Não sei por que me felicitam por completar os 90 anos. É horrível”. Assim me disse Ernesto Cardenal há cinco anos. Ri. Assim era ele. Sincero e direto. Rotundo. Havia ganho esse lado mal-humorado que não se dobrava ao que os demais esperavam dele. Não o interessava o encaixe das relações sociais, porém gostava de seus amigos, em silêncio, mas inquestionável. Dava para ver nos olhos que era imensamente doce. E bastava que se falasse de espaço, de ciência, de poesia, para que seu mutismo desaparecesse e conversasse entusiasticamente sobre a última coisa que lera na Scientific American ou em qualquer outro periódico científico ao qual se assinava, e isso incluía o New Yorker, porque, como o universo, ele estava interessado no mundo. Ele era místico, mas tinha suas raízes bem plantadas na terra. Gostava de comida, salsichas alemãs, vinho, mas vivia como um monge em sua casa em Manágua, um quarto com uma cama, uma mesa de cabeceira e uma rede.
Ernesto Cardenal concentrava nele dois traços essenciais da identidade nicaraguense: o espírito de luta pelo país amado e o amor pela poesia. Seus poemas de juventude, sobretudo seus epigramas, são poemas de amor, assim como afiadas condenações contra ditadura de Somoza. O mosteiro trapista no Kentucky na qual esteve nos anos cinquenta e onde fez uma amizade imensa com Thomas Merton, seu mestre de noviços, o ensinou que sua vocação religiosa não era contemplativa. Ali cresceu sua ideia de fundar em Solentiname, uma ilha do Grande Lago da Nicarágua, uma comunidade que, ao redor da simples igreja que construiu com os camponeses, uniu o Evangelho com a arte. Era uma pequena, mas transcendente utopia, que, no entanto, não hesitou em abandonar. Com seus filhos, ele se juntou à luta contra a ditadura de Somoza. Quando os poetas e pintores de Solentiname se tornaram guerrilheiros, a guarda somocista destruiu a comunidade.
Ernesto foi ministro da Cultura da Revolução. Quis disseminar a poesia e montou oficinas onde as pessoas dos bairros aprendiam que qualquer feito simples de suas vidas podia ser contado em verso. Porém, o exteriorismo que caracterizou sua obra não se contagiava. Era seu. Foi ele quem o usou magistralmente, tanto para contar o fragor da luta, como para falar das estrelas. Seu poema, Canto Nacional, dedicado à Frente Sandinista, o reproduzimos no mimeógrafo e o passávamos de mão em mão nos anos 1970. Ele pôs em palavras de dor e a esperança dessa luta tenaz. Essa luta que, chegado o sandinismo ao poder, o enfrentou não somente o papa João Paulo II, que o apontou um dedo acusador tão logo pôs os pés na Nicarágua, como também Rosario Murillo.
Nos anos 1980, quando nós escritores criticamos Murillo e pedimos uma reunião com a direção sandinista, sem Ortega, ele chegou para defender sua esposa. Nunca esquecerei a primeira coisa que Cardenal disse nessa reunião: “Nós não queríamos nos reunir contigo, porque você é marido dela”. A integridade e firmeza de Cardenal não foi suficiente com as manobras com que Ortega se apropriou do FSLN nos anos 1990. O poeta renunciou ao partido.
Farto da política, Cardenal sumiu em uma vida reclusa, e nessa vida, no entanto, apontou seu telescópio à noite escura e começou a remexer no Deus do universo. Fascinado com o mistério da vida humana em meio essa inescrutável imensidão, escreveu seu monumental Cântico Cósmico: “somos pó de estrelas”, escreveu.
Agora ele está ali, seguramente sendo bem recebido na Via Láctea. Para nós, nicaraguenses, é duro vê-lo desaparecer. Sentiremos falta da sua boina preta, sua figura, sua voz lendo poesia, sua santa indignação contra a tirania”.
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Ernesto Cardenal, poeta do universo. Depoimento de Gioconda Belli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU