07 Março 2020
Na juventude, a vida de Ernesto Cardenal tomou um rumo diferente. Em 1957, ele entrou no mosteiro trapista de Nossa Senhora do Getsêmani, no Kentucky, EUA, onde seu mestre de noviços foi ninguém menos do que Thomas Merton.
O relato é de Robert Ellsberg, editor-chefe da Orbis Books. Ele é autor de “Blessed Among Us: Day by Day with Saintly Witnesses” (Liturgical Press).
O artigo foi publicado em America, 04-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Provavelmente a imagem mais famosa de Ernesto Cardenal, padre, poeta, místico e revolucionário nicaraguense que morreu no último dia 1º de março de 2020, aos 95 anos de idade, surgiu quando o Papa João Paulo II visitou Manágua em 1983. Cardenal, usando sua conhecida blusa camponesa, tirou a boina preta, ajoelhou-se na pista e tentou beijar o anel do papa.
Daniel Ortega acompanha o Papa João Paulo II, que levanta o dedo para o ministro da Cultura e padre Ernesto Cardenal, durante as cerimônias de boas-vindas no aeroporto de Manágua, Nicarágua, em março de 1983 (Foto: America)
Na época, Cardenal era um dos quatro padres, incluindo seu irmão, o jesuíta Fernando Cardenal, que atuavam no governo revolucionário sandinista. Cardenal acreditava que seu serviço como ministro da Cultura era uma extensão do seu ofício sacerdotal, mas o papa discordava. Ele apontou dramaticamente o dedo para Cardenal e disse-lhe para “regularizar” a sua situação.
Foi uma prévia do resto da viagem do papa. Ele não escondeu a sua oposição ao governo sandinista – com sua pretensão de integrar ideais cristãos e marxistas – e a sua desaprovação àqueles cristãos, como Cardenal, que viam na revolução nicaraguense uma oportunidade de promover uma “caridade eficaz”.
Quando os padres do governo rejeitaram o pedido do papa de que deixassem seus cargos, eles foram privados de suas faculdades sacerdotais. No caso de Cardenal, essa situação continuou até o ano passado, quando sua saúde declinou rapidamente, e o Papa Francisco lhe concedeu a “absolvição de todas as censuras canônicas”, e ele pôde celebrar a missa novamente pela primeira vez em mais de 30 anos.
Anteriormente, Cardenal havia ficado famoso pelas liturgias que ele celebrava na comunidade de artesãos e camponeses que fundou no arquipélago nicaraguense de Solentiname. Após as leituras do Evangelho, ele convidava os camponeses a compartilhar suas próprias reflexões sobre o texto.
Durante o período da ditadura de Anastasio Somoza, não era difícil para esses camponeses ver os paralelos com a mensagem de boas novas de Jesus aos pobres e o seu confronto com os poderes corruptos do seu tempo. Cardenal gravou e publicou esses diálogos no livro “El Evangelio en Solentiname”. Como uma janela para reflexões semelhantes que ocorrem em comunidades de base na América Latina, esses livros se tornaram clássicos na literatura emergente da teologia da libertação.
Isso não passou despercebido a Somoza, que enviou sua Guarda Nacional para destruir a comunidade. Muitos dos jovens camponeses pegaram em armas e se juntaram à insurreição sandinista. Com a bênção de Cardenal.
Na juventude, Cardenal havia participado de um levante malogrado contra a ditadura do general Somoza pai. Mas, depois, sua vida tomou um rumo diferente. Em 1957, ele entrou no mosteiro trapista de Nossa Senhora do Getsêmani, no Kentucky, EUA, onde seu mestre de noviços foi ninguém menos do que Thomas Merton.
Dois anos depois, por motivos de saúde, ele deixou o mosteiro. Mas sua profunda relação com Merton continuou.
Merton apoiou sua decisão de buscar a ordenação na Nicarágua e incentivou a decisão de Cardenal de iniciar a comunidade experimental em Solentiname. Um livro sobre suas correspondências mostra como Merton se identificou profundamente com Cardenal, um poeta e místico, e com seus sonhos de ser pioneiro em um novo modelo de monasticismo. O próprio Merton sonhava em se juntar a Cardenal. Mas isso não era para ser.
Antes de morrer, Merton escreveu uma introdução a um livro profundamente lírico de reflexões de Cardenal, “'Vida en Amor”. Merton escreveu: “Em um tempo de conflito, ansiedade, guerra, crueldade e confusão, o leitor pode se surpreender ao ver que este livro é um hino de louvor ao amor, dizendo-nos que ‘todas as coisas se amam’”.
Os leitores mais familiarizados com o apoio posterior de Cardenal a uma insurreição de guerrilha podem ficar especialmente surpresos. No entanto, até o fim de sua vida, Cardenal acreditava que essa obra refletia o seu consistente esforço para reconhecer a presença amorosa de Deus na natureza, no cosmos e em todas as dimensões da vida.
Como ele escreveu nas linhas de abertura: “Todas as coisas se amam. A natureza toda tende a um ‘tu’. Todos os seres vivos estão em comunhão com outros ... A condensação de um floco de neve é o mesmo que a explosão de uma estrela nova. O besouro abraçado à sua bola de esterco e o amante abraçado à sua amada: tudo na natureza é um querer abaixar os próprios limites, transpassar as barreiras da individualidade, encontrar um ‘tu’ a quem se entregar, transformar-se no outro”.
Essas ideias continuaram em livros de poesia traduzidos em várias línguas. Mas, com a revolta contra Somoza, Cardenal se sentiu chamado a traduzir a poesia em ação em favor dos pobres e oprimidos. No contexto nicaraguense, ele escreveu que “uma luta não violenta não é prática”. Gandhi, afirmou, “estaria de acordo conosco”. Nem todos concordavam.
Daniel Berrigan, SJ, por exemplo, se envolveu em uma troca de cartas acalorada com Cardenal, citando uma declaração que ele fez aos membros da esquerda antiguerra que foram tentados pela violência: “A morte de um único humano é um preço muito alto a ser pago pela reivindicação de qualquer princípio, por mais sagrado que seja”.
Cardenal permaneceu no cargo até 1987. Três anos depois, após os anos de guerra com os Contras, os sandinistas sofreram uma derrota eleitoral. Cardenal voltou a Solentiname, retomando sua poesia e continuando a promover a causa dos pobres. Mas, em 1994, junto com seu irmão Fernando, ele rompeu publicamente com o Partido Sandinista, protestando contra as tendências cada vez mais autoritárias de seu líder, Daniel Ortega, que havia retornado ao poder. “Acho que um capitalismo autêntico seria mais desejável do que uma revolução falsa”, disse ele.
Nos últimos dois anos, quando jovens se levantaram em protesto contra o governo sandinista, Cardenal falou em seu apoio. Infelizmente, a disputa com Ortega o seguiu até o túmulo. A missa fúnebre de Cardenal na Catedral Metropolitana de Manágua, no dia 3 de março, foi interrompida por militantes sandinistas que o denunciaram raivosamente como traidor. Certamente pouquíssimos dos que interromperam a missa, se é que algum deles, estavam vivos há 40 anos, quando jovens de Solentiname foram mortos na insurreição ou quando esse padre teve que escolher entre celebrar a missa ou manter a fé na causa do povo.
Eu nunca conheci Ernesto Cardenal, embora ele tenha desempenhado um papel misterioso na minha vida. Em 1976, logo após ingressar na comunidade Catholic Worker, eu escrevia cartões de agradecimento aos muitos colaboradores que apoiavam o trabalho. Eu fiquei surpreso ao ver que um deles era do famoso padre-poeta de Solentiname. Eu havia lido algumas de suas poesias e escrevi para expressar a minha apreciação particular por um poema que ele havia escrito após a morte de Merton.
Para minha surpresa, ele respondeu com uma carta manuscrita, pedindo-me para “ir até Maryknoll” e procurar seu amigo, o Pe. Miguel D’Escoto, fundador da Orbis Books (mais tarde, D’Escoto se juntaria a ele como um dos padres do governo revolucionário, atuando como ministro das Relações Exteriores). Na verdade, eu não segui esse conselho. Mas foi a voz do destino.
Dez anos depois, eu entrei para a equipe da Orbis, onde trabalho desde então e onde tive mais uma oportunidade de me corresponder com o Pe. Cardenal, reeditando seus livros e publicando as memórias de seu irmão Fernando*, “Faith and Joy: Memoirs of a Revolutionary Priest” [Fé e alegria: memórias de um padre revolucionário], publicado pouco antes da sua morte em 2016.
Ao saber da morte de Ernesto, lembrei-me da introdução de Merton a “Vida en Amor”, na qual ele elogiava seu ex-noviço como alguém que apontava para a renovação da Igreja na América Latina, para um futuro no qual os cristãos algum dia alcançariam a libertação temporal, “mas também aprenderiam a cantar hinos à vida e ao amor”.
E isso trouxe à minha mente as frases do poema que Cardenal dirigiu mais tarde a seu ex-mestre de noviços:
Amado é o tempo da poda
Serão dados todos os beijos que não pudeste dar
As romãs estão florescendo
Todo amor é um ensaio da morte.
*Fernando Cardenal, padre jesuíta, foi ministro da Educação do 1o. governo após a vitória da Revolução Sandinista.
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Relembrando o padre e poeta revolucionário Ernesto Cardenal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU