20 Fevereiro 2019
O núncio apostólico Stanislaw Waldemar Sommertag concelebrou com o religioso sua primeira missa em 35 anos, desde o dedo acusatório de Wojtyla.
A reportagem é de Pedro Miguel Lamet, publicada por Religión Digital, 19-02-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A foto deu a volta ao mundo. O sacerdote poeta e ministro sandinista nicaraguense recebia, de joelhos e com um sorriso, a reprimenda do papa João Paulo II, com o dedo em riste: “Você deve arrumar sua situação na Igreja”.
“Poder popular”, “Igreja popular”, foram alguns dos gritos proferidos durante a missa, enquanto o Papa falava de unidade da Igreja. O pontífice, com seu conhecido caráter, pedia silêncio de cima de um palanque, com pôsteres e bandeiras gigantes dos heróis sandinistas no aeroporto: “Bem-vindo à Nicarágua livre, graças a Deus e à Revolução”. Alguns falaram de “provocação blasfema” e de “exploração política” da visita, e até de “pirataria eletrônica”, como disse a Rádio Vaticano.
Fruto daquela armadilha foi a suspenso a divinis dos ministros sandinistas que também eram sacerdotes como Miguel d’Escoto, Fernando Cardenal, hoje falecidos, e o próprio Ernesto Cardenal, que nos últimos anos tem denunciado publicamente o flagrante pisoteamento dos direitos humanos da atual ditadura sangrenta de Daniel Ortega e sua esposa, que acabaram reprimindo também o poeta.
Pois logo o núncio apostólico na Nicáragua, o polaco Stanislaw Waldemar Sommertag, se adiantava na semana passada para comunicar pessoalmente a reabilitação a Cardenal, internado em um hospital aos seus 94 anos, e se ofereceu para concelebrar com ele sua primeira missa em 35 anos.
Da mesma forma, o bispo auxiliar da arquidiocese de Manágua, Silvio José Báez, se aproximou do hospital onde se encontra o poeta, colocou diante da sua cama e lhe disse: “Lhe peço sua benção como sacerdote da Igreja Católica”.
Seus olhos envermelheceram com algumas lágrimas. “Rezei por ele e lhe encomendei que fale ao Senhor para que nos auxilie nos momentos difíceis que vivemos. Foi tudo tão bonito”, disse Monsenhor Báez. O vídeo dessa eucaristia concelebrada na cama é emocionante, me remeteu o teólogo nicaraguense José Argüello.
Finalmente, na segunda-feira, 19-02, fazia público um comunicado contando da absolvição “de todas as censuras canônicas impostas” a Cardenal fazendo valer a obediência prestada até hoje pelo sacerdote, “sem levar a cabo nenhuma atividade pastoral”.
Dificilmente se pode esboçar em poucas linhas a poliédrica personalidade de Ernesto Cardenal. Nascido em Granada, Nicarágua, em 1925, renuncia durante e cruel ditadura de Somoza a uma juventude boemia e burguesa. Logo trocou os bordéis de Paris e as namoradas mais bonitas pela vida contemplativa. Percebeu um sinal de Deus em uma alegria física que se produzia até com um beijo. O fato é que se instalou no mosteiro de Getsemani, no Kentucky, ao lado do seu professor Thomas Merton. Tinha 32 anos, era poeta, escultor e licenciado em Filosofia e Letras e tinha passado largas temporadas em Nova Iorque e Europa. Assim, do poeta nasceu o místico, com raízes em São João da Cruz, Mestre Eckhart e Teilhard de Chardin.
De novo Deus atua, por meio da saída do mosteiro trapense por causa de uma úlcera no estômago. Criou a comunidade contemplativa e artística de Solentiname e se comprometeu com o sandinismo. “Era lógico que a causa dos pobres terminara com a incorporação à revolução. Uma expressão mais da coerência do mandato divino”, dizia Cardenal.
Colhedor de grandes prêmios como poeta e conhecido por poemas como “Oração por Marilyn Monroe” e seu monumental “Cântico Cósmico” ou “Telescópio na noite escura”, é um criador de potente originalidade e esteve várias vezes às portas do Nobel. Mas nesses momentos e antes de um Ernesto agonizante – me comunicam que está perdendo suas faculdades – recomendo sobretudo sua mística, reunida na antologia prolongada por Lucía López-Barralt e que tenho pessoalmente dedicada pelo poeta.
Ali disse: “O amor é a única lei que rege o universo... a matéria que rege o universo é o amor, e toda a alma que Deus cria, a cria apaixonada”. E em “Telescopio”: “Me quisiste todo / dáteme todo pues”.
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A última primeira missa de Ernesto Cardenal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU