05 Janeiro 2024
"Permitamos que o Espírito de Deus atue em nós de tal modo que possamos glorificá-lo por meio de nossas vidas, seja lá como algumas pessoas descrevam essas vidas", afira Brendan Callaghan, padre jesuíta, ao celebrar a 'missa para gays', na The Church of Our Lady of the Assumption & St. Gregory, na Warwick Street, no bairro Soho, Londres, no dia 06-01-2013, festa da Epifania.
A tradução da íntegra da homilia é de Luís Marcos Sander.
O texto foi publicado por Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 11-01-2013.
A celebração da Epifania – o anúncio do Emanuel para os povos – é um dos momentos-chave da época de Natal, embora em nossa cultura inglesa isso não pareça ser assim. Em alguns países, sua importância é assinalada pelo fato de os reis magos serem os portadores de presentes para as crianças: hoje, por coincidência, é o 65º aniversário de um amigo meu, muito querido desde a infância, que é metade belga e metade inglês e que, quando menino, costumava cruzar o Canal nesta época do ano e tirar vantagem duas vezes.
O nascimento de Cristo em si, o Natal em si, talvez tenha sido simplesmente visto como uma festa de família para o primeiro povo de Deus – a vinda daquele “prometido da história de Israel”. Mas a Epifania desfaz esse aconchego em potencial: o que está acontecendo vai além dos limites de Belém, além das fronteiras de Israel. Exige uma nova compreensão do que significa ser filho ou filha de Deus.
O próprio fato de estarmos aqui hoje reflete essa nova compreensão, porque na história de Natal nós não estamos naquele primeiro círculo aconchegante: nós estamos com os reis magos – aqueles que tinham sido gente de fora, “pagãos”, mas que agora estão incluídos entre “as pessoas que Deus ama”. Isso vale para todos e todas nós, assim como vale para todos os cristãos: é na Epifania que realmente começa a derrubada das barreiras prometida pelos profetas.
Para alguns e algumas de nós que estão aqui hoje à noite (que frequentam regularmente as missas no Soho (1), poderia parecer irônico celebrar uma festa de inclusão justo quando estamos às voltas com as decisões tomadas por nosso arcebispo a respeito da “missa no Soho”. Talvez esteja parecendo que a “derrubada das barreiras” é justamente onde nós não estamos. Mas eu gostaria de convidar todos e todas para escutar o que as Escrituras nos dizem sobre a festa de hoje e, assim, deixar o Espírito de Deus atuar em nossos corações, o Espírito que sempre é o amor e a verdade de Deus, presente e atuante aqui e agora, em nossa situação real.
No final do ano passado, o papa Bento XVI publicou o terceiro de seus livros sobre Jesus. Em mais ou menos 130 páginas, o papa reflete sobre as narrativas da infância de Jesus, examinando-as por um olhar perspicaz e erudito, ou, como o expressou o jornal Daily Mail: “O pontífice detona mitos! O papa desmancha-prazeres destrói as tradições do nascimento de Jesus e do Natal: novo livro sobre Jesus revela que não havia jumentos ao lado da manjedoura, nem bois que mugiam e certamente tampouco hinos de Natal”.
O que o papa faz efetivamente, em relação à festa de hoje, é ler o texto do Evangelho de Mateus e fazer algumas perguntas inteligentes e sensíveis sobre quem esses três homens poderiam ser. Ele diz que os três não eram apenas astrônomos:
Eles eram “sábios” [...] Em um certo sentido, eles eram sucessores de Abraão, que partiu para uma jornada em resposta ao chamado de Deus. Em outro sentido, são sucessores de Sócrates e seu hábito de questionar, indo mais alto e mais além da religião convencional, rumo à verdade mais elevada. Neste sentido, essas figuras são precursores, preparadores do caminho, pessoas em busca da verdade, como as que encontramos em todas as épocas.
Então, o jornal poderia ter dito “O papa desmancha-prazeres acaba com os camelos!”, mas Bento XVI, em vez de fazer isso, nos indica onde nós e nossos contemporâneos poderiam estar nessa parte da história de Natal, nessas pessoas em busca da verdade que respondem ao chamado de Deus e questionam indo mais alto e mais além da religião convencional, rumo à verdade mais elevada.
Talvez precisemos lembrar a nós mesmos que o papa não estava dizendo nada realmente novo (e muito menos qualquer coisa não ortodoxa!). A capacidade das grandes celebrações da igreja de integrar adornos originados fora da Escritura é bem conhecida e compreendida. Na verdade, de certa forma, poderíamos ver isso, em si, como algo que celebramos hoje: a maneira pela qual a boa nova do evangelho de Jesus Cristo não respeita fronteiras. Carregando nas tintas: nós reivindicamos o título “católica” – universal –, então esse alcance universal deveria ser algo de que sentimos orgulho. O Deus que é sempre Emanuel, Deus em nosso meio, revela sua presença das mais variadas formas – “igrejeiras” e “não igrejeiras” – para nos ajudar a ouvir e celebrar a plenitude da verdade – uma plenitude que ainda pode nos pegar de surpresa.
As leituras bíblicas previstas para hoje nos remetem a essa verdade. A obra salvadora de Deus vai além de todas as nossas expectativas. O poder de Deus derruba todas as nossas barreiras. O amor de Deus inclui todos os povos.
Isaías percebeu isso, e o expressou numa imagem gráfica na passagem que ouvimos em nossa primeira leitura, ao falar para Jerusalém, a cidade santa:
"As nações caminharão na tua luz
[...] Ergue os olhos em torno e vê:
todos eles se reúnem e vêm a ti.
Teus filhos vêm de longe,
tuas filhas são carregadas sobre as ancas".
Trata-se de uma visão maravilhosa – imaginem o que um diretor de cinema como Peter Jackson, do Senhor dos Anéis, poderia fazer com ela! Mas o que precisamos compreender e guardar conosco é que essa é uma visão que inclui todos e todas – o futuro para o qual se encaminham os planos de Deus é um futuro para todas as pessoas, não apenas para o primeiro povo eleito de Deus.
E, se ainda estamos um pouco hesitantes, na segunda leitura São Paulo deixa isso claro. Se Isaías estava falando da Cidade Santa, Paulo está falando primordialmente para aquele primeiro povo eleito e quer que seus integrantes tenham clareza sobre a extrema importância do que agora se tornou visível:
Às gerações e aos seres do passado este mistério não foi dado a conhecer, como foi agora revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito: os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus, por meio do evangelho.
E se, ao ouvir Isaías, precisamos perceber o alcance oni-includente – “católico” – dos planos de Deus, ao ouvir São Paulo, precisamos perceber a referência aos “gentios” ou “pagãos” – aos goyim – porque esses somos nós. A inclusividade universal é importante para nós porque nos inclui.
Portanto, os detalhes do relato do evangelho que acabamos de ouvir estão situados num contexto em que os seguidores de Jesus estavam reconhecendo o alcance oniabrangente do amor de Deus. Não era necessário ser judeu para estar dentro do raio de alcance da obra salvadora e transformadora de Deus; Deus é amor-em-ação, a graça de Deus está disponível para todas as pessoas.
Assim, você pode chegar de um país diferente, vir como estrangeiro, vir como pagão, vir com um modo de viver, vir com um “estilo de vida” que talvez pareça diferente demais e “outro”: você pode vir à presença de Jesus e saber que esse é o seu lugar.
Portanto, você pode encontrar o caminho até Jesus sem ter estudado a Torá e os Profetas, sem ter se enfronhado em tudo o que as autoridades religiosas codificaram e estipularam: você pode ser alguém que busca a verdade, alguém que faz perguntas; você pode seguir uma estrela e ser levado ao lugar certo – o lugar em que Jesus está esperando para que você o descubra em sua vida: não em algum lugar lá no fim de uma jornada a um lugar distante, mas bem aí na sua vida, que é, ao mesmo tempo, o lugar mais estranho e o mais familiar de todos.
Assim, junto com os reis magos nós podemos trazer nossos verdadeiros presentes – por mais estranhos e exóticos (ou até, segundo certas pessoas, completamente fora de propósito e inapropriados – e saber que Deus (que é o doador de todas as verdadeiras dádivas, inclusive das “inapropriadas”) recebe, aceita e usa nossos presentes ou dádivas como eles sempre foram: canais do amor gracioso de Deus.
E, junto com os reis magos, nós sabemos que a vida não consiste em ficar ao lado da manjedoura em Belém. Hoje aqueles e aquelas de nós que temos participado das missas no Soho estamos sendo solicitados pelo arcebispo Vincent a passar para uma nova fase (2) na celebração das dádivas de Deus e de sua aceitação amorosa em nossa vida. Especialmente se tivermos ficado sabendo disso por meio da mídia ou de blogs, isso poderá parecer outra rejeição ou exclusão, claramente contrária à aceitação inclusiva que celebramos na festa de hoje.
Assim, permitam-me expor, a título de conclusão, além das reflexões sobre as Escrituras que vocês ouviram com tanta generosidade (e paciência!), uma crença pessoal e um pensamento positivo inspirado pela nova tradução da missa (o que não acontece com frequência na minha vida!).
Uma crença muito pessoal: o arcebispo Vincent, ao tomar as decisões que tomou, está fazendo o melhor que considera possível no mundo real em que vivemos e atuamos.
Um pensamento inspirado pela liturgia (se podemos usar a palavra “liturgia” a respeito da nova tradução): podemos estar ouvindo um “Ite, missa est”. Mas permitamos que o Espírito de Deus atue em nós de tal modo que possamos traduzir isso não por “A missa terminou”, mas por “Ide e glorificai a Deus por meio de vossas vidas – seja lá como algumas pessoas descrevam essas vidas!”
Nota da IHU On-Line:
1. Bairro gay de Londres, onde se localiza a igreja de Nossa Senhora da Assunção e São Gregório, na Warwick St, em que são celebradas, há cinco anos, as missas para gays.
2. As missas para gays continuarão a ser celebradas, a partir do dia 17 de fevereiro, normalmente, no 1º e 3º domingo do mês, na igreja jesuíta de Farm St, um bairro mais nobre, próximo da embaixada dos EUA e do Brasil.
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Homilia da Epifania na "missa para gays" em Londres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU