Segundo o professor, para melhor compreender os atuais confrontos entre Israel e o Hamas, é preciso recuar no tempo, observar os desfechos da Guerra Fria e os vácuos de poder surgidos neste complexo jogo geopolítico
A polarização dos debates destes nossos tempos das redes sociais digitais é um dos principais entraves para que se compreendam mais profundamente os conflitos no Oriente Médio e a atual guerra que temos visto. Para o professor Paulo Visentini, o teatro de horrores na Faixa de Gaza é a ponta de um complexo iceberg de tramas geopolíticas. Por isso, antes de sentenciar qualquer opinião, ele esclarece: “os conflitos do Oriente Médio não possuem fundamentos religiosos ou étnicos, pois sua base histórica é a construção dos Estados Nacionais na região, em função do desmembramento do Império Turco Otomano no fim da I Guerra Mundial”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Visentini classifica a guerra entre Israel e o Hamas como “trágica e, ao mesmo tempo, teatral”. “As Relações Internacionais são constituídas por imagens e percepções, e a guerra é a continuação da política por outros meios”, analisa. E detalha: “com o fim da Guerra Fria, houve a ilusão de que os EUA haviam ‘vencido’, podendo reafirmar sua presença na região. Hoje, se verifica que suas iniciativas eram ações táticas, sem estratégia consistente, e no Iraque, Síria e Afeganistão houve derrotas, que levaram Washington a refluir da região para se concentrar contra a China”.
Além disso, o professor lembra que após a Guerra Fria “criou-se um vazio de poder, sem a prioridade das grandes potências, levando as potências médias da região a disputar o espaço, por razões de segurança, despontando três países não árabes: Israel, Turquia e Irã”. “As Revoluções Coloridas da Primavera Árabe destruíram ou enfraqueceram os regimes progressistas, mas a presença econômica da China na região e militar da Rússia na Síria criaram uma nova realidade. Ou seja, cada tentativa de ‘finalizar a História’ é sucedida por sua retomada em nível mais elevado”, explica.
Visentini também destaca a importância de romper com esse debate visceral das redes. É só assim que, minimamente, poderemos compreender o que se passa. E não adianta nos agarrarmos a conceitos que nos chegam como comida enlatada. É o caso do conceito de terrorismo. “O uso e abuso do conceito de terrorismo perturba a iniciativa dos estrategistas, assim como outros conceitos que se apoiam numa narrativa política manipulativa e sem concretude”, adverte o professor.
Paulo Gilberto Fagundes Visentini (Foto: Câmara dos Deputados)
Paulo Gilberto Fagundes Visentini é professor titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atua na pós-graduação em Ciência Política da UFRGS e em Ciências Militares na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME. Realizou pós-doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – ePUC-Rio. É doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política e graduado em História, ambos pela UFRGS.
Leciona no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, Universidade de Cabo Verde, Instituto Superior de Relações Internacionais, em Moçambique, e Universidade de Veneza, na Itália. O professor está lançando o livro “O pensamento autoritário brasileiro e a crise mundial” (Porto Alegre: Leitura XXI, 2023).
IHU – O que é fundamental saber sobre os conflitos no Oriente Médio antes de chegarmos ao atual conflito entre Israel e o Hamas?
Paulo Visentini – Os conflitos do Oriente Médio não possuem fundamentos religiosos ou étnicos, pois sua base histórica é a construção dos Estados Nacionais na região, em função do desmembramento do Império Turco Otomano no fim da I Guerra Mundial. Os responsáveis originais pelos problemas atuais foram a Inglaterra e, secundariamente, a França.
A posição geopolítica da confluência de três continentes e da ligação entre dois oceanos, evitando contornar a África, a perseguição à comunidade judaica na Europa (que buscou refúgio nas terras ancestrais) e a crescente importância do petróleo, tornaram o problema muito mais complexo. Embora o conflito Israel-Palestina seja dominante na narrativa sobre a região, ele não é o principal, apesar da dimensão humanitária que envolve.
O principal, desde 1953 (com a ascensão do nasserismo e, depois, do baatismo pan-árabe), é o conflito entre regimes árabes republicanos, laicos, modernizadores e socializantes e as monarquias absolutistas socialmente conservadoras, especialmente as ricas petromonarquias. Ou seja, a diplomacia regional era triangular: os EUA e a Europa apoiavam Israel e os monárquicos árabes, contra os republicanos laicos. Houve mais guerras interestatais e civis entre os dois últimos do que os breves e localizados conflitos entre Israel e os vizinhos. As monarquias passaram, gradativamente, a fomentar e apoiar sua legitimação em um islã sunita politizado (que é uma faca de dois gumes) contra os árabes modernizadores.
A mudança do Egito em 1973, que se aproximou dos EUA e de Israel (Acordos de Camp David), e a Revolução Iraniana (xiita, mas republicana) em 1979, alteraram a geopolítica local. A URSS, já enfraquecida na região, dez anos depois (sob Gorbachov) cortou a ajuda aos árabes progressistas e normalizou sua relação com Israel e com os árabes pró-Ocidente. Todavia, há que constatar que, sociologicamente, os países muçulmanos estão avançando na via da modernização, como analisou o historiador e demógrafo francês Emmanuel Todd.
IHU – Que leitura faz do atual conflito?
Paulo Visentini – A guerra atual é trágica e, ao mesmo tempo, teatral. As Relações Internacionais são constituídas por imagens e percepções, e a guerra é a continuação da política por outros meios, segundo Clausewitz. Com o fim da Guerra Fria, houve a ilusão de que os EUA haviam “vencido”, podendo reafirmar sua presença na região. Hoje, se verifica que suas iniciativas eram ações táticas, sem estratégia consistente, e no Iraque, Síria e Afeganistão houve derrotas, que levaram Washington a refluir da região para se concentrar contra a China (Iniciativa do Pivô da Ásia, Obama, 2011).
Da guerra, de Carl Von Clausewitz (Martins Fontes, 2010). É um tratado póstumo de arte militar publicado em 1832-1837 | Imagem: divulgação
Criou-se um vazio de poder, sem a prioridade das grandes potências, levando as potências médias da região a disputar o espaço, por razões de segurança, despontando três países não árabes: Israel, Turquia e Irã. As Revoluções Coloridas da Primavera Árabe destruíram ou enfraqueceram os regimes progressistas, mas a presença econômica da China na região e militar da Rússia na Síria criaram uma nova realidade. Ou seja, cada tentativa de “finalizar a História” é sucedida por sua retomada em nível mais elevado.
A tentativa mal calculada do Brasil de mediar a questão nuclear iraniana (um passo longo demais para o qual não tínhamos perna) nos gerou problemas políticos internos e diplomáticos, que ainda persistem. Então, vieram a pandemia e, na sequência, a Guerra Russo-Ucraniana, a qual fez emergir novos e inesperados alinhamentos na região, de efeitos planetários.
IHU – Em que medida o conceito de terrorismo pode ou não nos auxiliar no entendimento do conflito entre Israel e o Hamas?
Paulo Visentini – A dimensão teórico-metodológica nos ensina que um conceito que tudo explica, nada explica... O uso e abuso do conceito de terrorismo perturba a iniciativa dos estrategistas, assim como outros conceitos que se apoiam numa narrativa política manipulativa e sem concretude. Qualquer conflito pós-Guerra Fria gera narrativas desse tipo, levando a opinião pública e a academia a um estado de anomia, então tais conceitos perdem sua viabilidade política. Uma crise deleta a outra nas redes sociais, onde vegetam os zumbis do século XXI. Onde foi parar a análise acadêmico-científica objetiva?
IHU – Muitos analistas apontam que um caminho para a solução nos conflitos do Oriente Médio é a efetiva constituição do Estado palestino. O senhor concorda?
Paulo Visentini – Israel, fundada predominantemente por judeus asquenazes (provenientes da Europa, especialmente após o Holocausto), tinha uma visão ocidental moderna, mas as sucessivas guerras provocaram a migração dos judeus sefarditas do Oriente Médio para o país, que nos anos 1970 alteraram a percepção israelense. E, depois, vieram os soviéticos de origem judaica.
Houve uma mudança demográfica e geracional, que provocou uma fratura cultural entre um grupo light e outro hard. Enquanto isso, a infindável ocupação da Cisjordânia e Gaza criava novas realidades, com a Organização para a Libertação da Palestina – OLP se moderando, as facções esquerdistas se dissolvendo e um movimento islâmico-radical (o Hamas) ganhando força e o controle de Gaza.
Honestamente, a maioria dos Estados árabes e/ou muçulmanos da área exploram politicamente a questão palestina, mas poucos realmente se importam. É por isso que a narrativa do Hamas se dirige à “rua árabe”, a opinião pública diluída pelos países da vizinhança. A reação da Rússia e as sanções contra ela tiveram efeito direto na região, com evoluções inesperadas: a mudança radical saudita (que normalizou relações com o Irã), o ingresso do Egito, do Irã, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no BRICS.
A reação da administração Joe Biden, presidente dos EUA, foi lançar no G-20 o IMEC (corredor de desenvolvimento da Índia-península arábica-Jordânia-Israel-Europa), para cortar o Corredor Norte-Sul Russo-Iraniano e a Rota Oceânica (via Paquistão) China-Oriente Médio (OBOR).
Todos esses realinhamentos deixaram de lado duas questões: a palestina (que desapareceu da agenda) e a israelense (de que adianta ter relações com sauditas que se conectam com iranianos?). Então, veio a guerra do partido Hamas com o Estado de Israel, cujo governo se encontra em situação difícil internamente... Outro detalhe não menos relevante: Israel não é subordinado aos EUA e não pode ser ignorado, e Biden ficou em situação difícil com a guerra.
Quanto a um Estado palestino, suas chances são improváveis, a não ser que ocorra uma mudança política em Israel. A Organização das Nações Unidas – ONU pouco pode fazer, e a estranha e contraditória lista de apoios, de um lado e de outro, está focada em problemas geopolíticos globais. Portanto, há muito a se refletir, com menos manipulação midiática emotiva.
IHU – Vivemos tempos de guerras em série?
Paulo Visentini – Estamos em situação semelhante à dos anos 1930: crise econômica desde 2008, pandemia que a agravou e empurrou para diante, com a saída natural da guerra. Tudo em um quadro de transição tecnológica, geopolítica, mudança climática, eliminação dos postos de emprego (produzindo “empreendedores uberizados”), movimentos políticos neoconservadores, degradação sociocultural no Ocidente e ascensão no Oriente.
Donald Trump, ex-presidente dos EUA, mostrou o que os intelectuais não viam: a globalização retrocede frente à recuperação dos Estados nacionais como espaço econômico e civilizacional. Projeto de desenvolvimento, vontade política, lideranças qualificadas (que sentem o pulso da população, sem se apegar a narrativas esvaziadas), elevação da autoestima e coragem refletida estrategicamente estão fazendo o que o neoliberalismo considerava superado. Novas potências e projetos político-econômicos desejam ocupar uma posição também relevante na “ordem” mundial, mas os antigos poderes não lhes dão espaço e, então, a pressão aumenta e produz fraturas cada vez mais profundas.
A crise econômica prévia, a pandemia e as guerras atuais são peças articuladas de uma mesma engrenagem, que pode, sim, evoluir para uma III Guerra Mundial, ainda que ela, provavelmente, venha a ser diferente das duas quentes [I e II Guerras Mundiais] e da fria anteriores.
IHU – Eu gostaria de saber qual sua análise sobre a guerra na Ucrânia e quais os caminhos possíveis para cessar este conflito.
Paulo Visentini – A guerra russo-ucraniana teve início em 2014, com a derrubada do governo ucraniano pela Revolução Colorida Maidan (implantando um governo conservador), a reação de Moscou e das populações russófonas que perderam direitos constitucionais.
O problema da Rússia não é ter a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN na fronteira (o que já ocorre), mas o abandono dos tratados de armamentos estratégicos por parte dos governos George Bush, Barack Obama, Trump e Biden. Como reconheceram publicamente Angela Merkel [ex-chanceler alemã] e François Hollande [ex-presidente francês] em 2022, os Acordos de Minsk eram “apenas para dar tempo para os ucranianos serem preparados militarmente” (pela OTAN).
Em fins de 2021, tudo estava pronto para o ataque ucraniano visando recuperar o Donbass e a Crimeia, o que geraria um ataque russo, o qual permitiria desencadear sanções Ocidentais. Elas quebrariam a economia russa e acabariam com o governo Putin. Era para ser uma guerra rápida e fácil, e o grande objetivo norte-americano era eliminar o projeto eurasiano implícito na cooperação entre a União Europeia industrial e os recursos minerais, energéticos e militares russos.
A surpresa foi que a Rússia, que já estava sob sanções desde 2014, preparou sua economia industrial de consumo (substituição de importações), a militar de alta tecnologia (mísseis hipersônicos e munições), desenvolveu a agricultura e diversificou seu comércio exterior e finanças por oito anos. Como um bumerangue, as sanções se voltaram contra o Ocidente, a Rússia se manteve firme e os países do Sul se realinharam a ela.
A OTAN e a União Europeia estão enfraquecidas e a ação parte dos Estados Unidos e do Reino Unido, com seu Brexit. A guerra se transformou num atoleiro personalizado por um ex-humorista (que vê seu país ser destruído) e um ex-oficial de inteligência (que luta o mínimo necessário, por mutáveis objetivos políticos). Uma guerra de trincheiras e drones, travada entre povos irmãos e mercenários de ambos os lados, segue, para que a Europa pague e os russos se desgastem.
Mas o problema é que o mundo mudou radicalmente devido à guerra. Todos têm uma explicação pronta sobre o mundo que vai nascer, mas que não está baseada na complexidade da grande humanidade e de seu pequeno planeta. Ainda vai haver mudança na mudança e precisamos de mais análises e menos narrativas politicamente corretas.