20 Mai 2022
“Em vez de uma integração em escala planetária, parece surgir a imagem de um mundo cada vez mais dividido sobre uma base nacional e continental e em torno de esferas de influência, em particular a hegemonizada pela China e a que está sob a supremacia dos Estados Unidos, no que parece cada vez mais uma reedição da Guerra Fria”, escreve Paolo Gerbaudo, professor de Cultura e Sociedade Digital, no Departamento de Humanidades Digitais do King’s College London.
Em sua avaliação “embora a abertura ao mercado global tenha sido vista durante os longos anos 1990 como uma fonte de prosperidade, agora também é percebida como fonte de perigos contra os quais é preciso recuperar as formas de controle e proteção exercidas pelo Estado. O que é necessário é um enfoque mais crítico, seletivo e intervencionista da própria globalização”.
O artigo é publicado por Agenda Pública/El País, 19-05-2022. A tradução é do Cepat.
A guerra na Ucrânia tem sido vista por muitos como o mais recente sinal da crise da globalização. Este acontecimento está acelerando as decisões políticas destinadas a gerir um momento marcado pela implosão da ordem global e, em particular, as políticas de dupla circulação, que pretendem separar a economia nacional da global, protegendo a primeira e extraindo oportunidades de benefício da segunda.
Desde a grande crise financeira, a globalização se viu submetida a uma série de choques econômicos e políticos que a minaram irremediavelmente, tanto material como moralmente. O colapso dos mercados de ações mundiais, no outono de 2008, foi um duro golpe para a legitimidade do sistema financeiro global, que durante muito tempo foi apresentado como uma fonte inesgotável de prosperidade para todo o planeta. Durante a Grande Recessão dos anos 2010, muitos países experimentaram graves dificuldades econômicas, o investimento estrangeiro direto diminuiu e o comércio mundial (um indicador chave do nível de interconexão econômica global) estagnou.
Muitos esperavam que a recuperação iniciada no final dos anos 2010 marcaria um retorno às glórias da alta globalização. No entanto, o início dos anos 2020 marcou dois novos choques que, embora considerados exógenos, revelaram problemas essencialmente endógenos, ou seja, próprios da globalização e seus desequilíbrios.
A crise do coronavírus significou um profundo golpe no imaginário de um mundo sem barreiras. Na primavera de 2020, muitos países se viram forçados a fechar suas fronteiras e suspender os voos internacionais, enquanto milhões de expatriados (figura social emblemática da globalização) retornavam para seus países de origem. Além disso, as medidas anticontágio provocaram interrupções e desacelerações nas cadeias de fornecimento, o que fez empresas e governos reavaliarem os riscos associados à sua integração global.
O segundo acontecimento traumático foi a invasão russa à Ucrânia, em fevereiro de 2022, que contribuiu para romper as últimas ilusões sobre a estabilidade da globalização. As medidas adotadas pelos países da OTAN, com sanções econômicas aos oligarcas próximos a Putin e a exclusão da Rússia dos circuitos financeiros mundiais, bem como a crescente tensão entre o Ocidente e a China, são outros sinais do fim da globalização da forma como a conhecíamos.
Em vez de uma integração em escala planetária, parece surgir a imagem de um mundo cada vez mais dividido sobre uma base nacional e continental e em torno de esferas de influência, em particular a hegemonizada pela China e a que está sob a supremacia dos Estados Unidos, no que parece cada vez mais uma reedição da Guerra Fria. Em março de 2022, Larry Fink, diretor da empresa financeira BlackRock, também declarou que a guerra na Ucrânia marcava “o fim da globalização que vivemos nas últimas três décadas”.
Após a desaceleração da integração econômica mundial, nos anos 2000, assistimos agora a uma fase de autêntica desglobalização, uma fase de convulsão mundial que, pelo menos a médio prazo, parece destinada a traduzir-se em uma redução da interconexão mundial: as cadeias logísticas são encurtadas, as empresas efetivam processos de relocalização e regionalização de suas atividades econômicas e os governos intervêm cada vez mais na esfera econômica, muitas vezes, justamente para protegê-la das tormentas globais.
No entanto, não se trata apenas de uma mudança por causa das tendências econômicas, mas também existem decisões políticas concretas por trás disso. Em muitos países, as opções de política econômica estão se afastando de uma estratégia de integração global indiscriminada e vão se aproximando de um modelo de integração seletiva e controlada.
O exemplo mais claro é a China, cujo 14º Plano Quinquenal (2021-25) se concentrou na estratégia de dupla circulação, com o objetivo de investir mais na economia nacional. A ideia é garantir a capacidade de produção nacional em determinados setores estratégicos (como alimentos, energia e tecnologia), ao mesmo tempo em que se investe mais em pesquisa e desenvolvimento e infraestruturas para permaneceram competitivos no mercado mundial.
Este é o espírito com o qual se desenvolveu o Bidenomics, o plano de política econômica de Joe Biden para a Casa Branca. O presidente colocou em curso uma estratégia chamada Made in America, cujo objetivo é investir 400 bilhões de dólares por ano em contratos do Governo estadunidense em produtos e serviços de empresas estadunidenses. Em seu programa eleitoral, afirmou que “quando gastamos o dinheiro dos contribuintes, devemos comprar produtos estadunidenses e apoiar os postos de trabalho estadunidenses”.
Além disso, Biden seguiu de perto a promessa de Donald Trump de devolver os postos de trabalho da indústria manufatureira para os Estados Unidos, prometendo penalizar as empresas que deslocalizaram tais empregos. Semelhante é a lógica da política industrial de Biden no estratégico setor de carros elétricos, com generosas bonificações fiscais para a compra desse tipo de carro produzido em solo estadunidense.
O espírito dessas intervenções está condensado no Discurso sobre o Estado da União, de 1º de março de 2022, no qual o presidente enviou esta mensagem às empresas do país: “Façam mais carros e semicondutores na América. Mais infraestruturas e inovação na América. E em vez de depender de cadeias de fornecimento estrangeiras, vamos fabricar nos Estados Unidos”.
A ideia que subjaz a tais planos é a construção do que o jornalista da Bloomberg, Noah Smith, chamou de “economia de duas vias”. Neste desenho, a economia é concebida (semelhante ao sistema de dupla circulação) como sendo formada por dois níveis divididos em uma proporção 80/20. Sendo 80% da economia o setor “doméstico”, caracterizado sobretudo pelo setor de serviços, fundamental para o bem-estar dos cidadãos, mas de baixa produtividade e, portanto, especialmente frágil frente às tendências para baixo da globalização.
O segundo, de 20%, é o setor internacionalizado e de alta produtividade, concentrado em uma série de produtos voltados para a exportação. A ideia do Bidenomics era proteger os 80% e continuar aplicando estratégias de expansão nos 20% restantes para gerar lucros, parte dos quais poderiam ser redistribuídos internamente.
Mesmo a União Europeia, tradicionalmente voltada para estratégias de livre mercado, está lentamente tomando um caminho semelhante. Atualmente, o mercado único é a zona mais aberta do mundo: 68% das mercadorias importadas não pagam nenhuma tarifa comercial. No entanto, por vê-la cada vez mais apertada entre as duas esferas comerciais opostas de China e Estados Unidos e comprimida em meio a suas guerras comerciais, vários políticos europeus, entres eles Emmanuel Macron, refletem sobre a necessidade de uma autonomia estratégica, especialmente em áreas cruciais para segurança e a competitividade, como energia e tecnologia.
Um exemplo é o plano de investimento de 43 bilhões de euros em semicondutores, um componente fundamental de muitos produtos tecnológicos. Embora a maior parte agora seja fabricada em outros lugares, os responsáveis políticos europeus querem garantir que uma parte substancial seja produzida no continente.
A iniciativa faz parte de um plano mais amplo para perseguir o objetivo da “soberania digital”. Trata-se de uma iniciativa que não faria sentido no marco do credo liberalista de comprar todo bem onde estiver disponível pelo menor custo, mas que se justifica por uma condição na qual a segurança tem prioridade sobre a comodidade. No entanto, muitos duvidam que exista no continente europeu o espírito de iniciativa necessário para realizar uma política de dupla circulação em toda a sua extensão.
De fato, a guerra na Ucrânia forçou a Europa a fortalecer sua aliança militar e econômica com os Estados Unidos ao custo de retroceder em algumas das pedras angulares da estratégia de soberania digital. Por exemplo, alcançando um acordo sobre o fluxo transatlântico de dados com os Estados Unidos, visto por muitos como uma rendição ao capitalismo digital estadunidense.
A evolução mostra que, embora a abertura ao mercado global tenha sido vista durante os longos anos 1990 como uma fonte de prosperidade, agora também é percebida como fonte de perigos contra os quais é preciso recuperar as formas de controle e proteção exercidas pelo Estado. O que é necessário é um enfoque mais crítico, seletivo e intervencionista da própria globalização. Mas, de momento, parece que enquanto a China e, em menor medida, os Estados Unidos estão dispostos a seguir essa estratégia, os países europeus, em parte por suas dificuldades institucionais, seguem indecisos entre a esperança de voltar à globalização e a consciência de que é preciso tomar um novo caminho.
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Adeus à globalização: chegam as economias de ‘dupla circulação’. Artigo de Paolo Gerbaudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU