11 Novembro 2023
"A carta branca dada pelo Ocidente a Israel implica uma duplicidade incompatível com sua proclamada política externa baseada em valores, mas também é um profundo erro estratégico", escreve Marcus Schneider, diretor do projeto regional da Fundação Friedrich Ebert FES para a paz e segurança no Oriente Médio, com sede em Beirute, no Líbano, em artigo publicado por Nueva Sociedad, novembro de 2023.
A votação de 27 de outubro foi clara. As 120 nações presentes na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) votaram a favor de uma resolução apresentada pela Jordânia para um cessar-fogo imediato e permanente em Gaza. Apenas 14 países votaram contra, incluindo Israel e os Estados Unidos. O fato de a República Federal da Alemanha se abster, juntamente com outros 44 países, embora a explicação divulgada sugira mais um rejeição, pode ter sido principalmente devido ao desejo de manter canais de comunicação com todos aqueles que criticam a guerra de Israel contra a Faixa de Gaza.
A opinião generalizada na Alemanha de que Israel deve ter carta branca para empreender qualquer ação contra o Hamas é claramente minoritária globalmente. Diante das atrocidades desumanas de 7 de outubro, o Ocidente político queria enquadrar a resposta como uma luta contra o terrorismo. Já pode ser considerado um fracasso. O mundo árabe está em convulsão desde que foram divulgadas as imagens horríveis da explosão no Hospital Árabe al-Ahli na cidade de Gaza. Embora as origens deste desastre, que provavelmente custou centenas de vidas, ainda estejam em discussão, esta foi a faísca que incendiou as ruas de Argel a Amã, de Beirute a Bagdá. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas, enquanto as redes sociais explodiam com expressões de solidariedade com a Palestina.
Os líderes dos Estados árabes, que até então haviam tentado um delicado ato de equilíbrio entre o Estado de Israel, não desejado mas agora aceito, por um lado, e a organização terrorista disfarçada de movimento de libertação, por outro, foram então obrigados a mostrar suas verdadeiras intenções. Em um golpe diplomático sem precedentes, o rei da Jordânia fechou a porta na cara do presidente dos Estados Unidos e cancelou uma cúpula de quatro partes com os líderes palestino e egípcio. Ele não viu nenhuma possibilidade de "pôr fim à guerra e aos massacres" e afirmou que Israel está levando a região "à beira do abismo".
É especialmente a guerra de Israel, considerada extremamente brutal, que contribuiu para que o apoio às vítimas de 7 de outubro desse lugar a uma onda de indignação. Algumas imagens de satélite sugerem que a força aérea israelense está realizando bombardeios de saturação em Gaza. De acordo com dados da ONU, 1,4 dos 2,3 milhões de habitantes se tornaram deslocados internos e 45% das moradias foram destruídas ou danificadas. Após quatro semanas de guerra, as autoridades palestinas, cujas informações não podem ser verificadas de forma independente, forneceram uma lista de vítimas que contabiliza mais de 8.000 mortos, incluindo mais de 3.400 crianças, ou seja, mais do que o triplo das crianças que foram vítimas da guerra de agressão russa na Ucrânia nos últimos dezoito meses.
No discurso global, as declarações beligerantes feitas por políticos israelenses também estão contribuindo para alimentar a percepção de que está sendo infligido um castigo coletivo. O ministro da Defesa, Yoav Gallant, vê seu país em uma batalha contra "animais humanos". O presidente Isaac Herzog possivelmente já não reconhece nenhum "civil inocente em Gaza", mas vê "uma nação inteira que é responsável". Mesmo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, utiliza repetidamente referências bíblicas que evocam ideias de uma guerra santa com a vontade de destruir.
A situação geopolítica no Oriente Médio mudou à velocidade da luz. Há pouco mais de quatro semanas, parecia que a aproximação entre Israel e a Arábia Saudita, país hegemônico dentro do mundo árabe, estava à beira de um avanço substancial. Teria sido um triunfo sem precedentes para Netanyahu e sua promessa de não apenas "gerenciar" o conflito com os palestinos, mas também de evitá-lo e negociar a paz com os potentados árabes. Em Washington e em algumas capitais europeias, vários políticos até sonhavam com uma aliança israelense-árabe-americana contra o "Eixo de Resistência" do Irã. Essa ilusão também desapareceu no ar. Em vez de uma aproximação árabe-israelense, o príncipe herdeiro saudita prefere consultar-se com o presidente iraniano. A amarga verdade para o Ocidente é que não é a República Islâmica do Irã que está atualmente isolada, mas sim Israel.
Em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que na tentativa frustrada de retratar o Hamas como uma ressurreição do chamado Estado Islâmico devido às atrocidades que cometeu. Se a luta contra o Estado Islâmico gerou uma coalizão antiterrorista com apoio mundial, atualmente há pouca evidência de algo semelhante. Além de Israel e de países centrais do Ocidente, como Estados Unidos e Alemanha, quase ninguém acredita na história de Netanyahu sobre a "luta entre os filhos da luz e os filhos da escuridão". Em seu lugar, é o secretário-geral da ONU, António Guterres, tão duramente atacado nos meios de comunicação alemães, quem tocou a fibra sensível da opinião majoritária mundial com sua contextualização dos fatos. De repente, a atenção não se concentra no terrorismo, mas em toda a desgraça do conflito não resolvido no Oriente Médio.
O fato de que este conflito impopular e primário no Oriente Próximo, que já se acreditava estar marginalizado, seja catapultado novamente para o centro da atenção mundial com um estrondo ameaça diretamente a credibilidade do Ocidente, que se vê envolvido, principalmente em sua defesa de uma Ucrânia atacada pela Rússia, em uma luta global por uma ordem mundial liberal e baseada em regras. Aos olhos de muitos no Sul global, a solidariedade incondicional com Israel impede esse objetivo. Apesar de todas as diferenças entre os dois conflitos, a referência ao duplo padrão ocidental está demasiadamente presente no mundo árabe e em grande parte do Sul global.
Tudo o que ontem se aplicava à Ucrânia parece não se aplicar mais hoje aos palestinos: o direito à autodeterminação nacional, a libertação da ocupação estrangeira, a necessidade de fazer cumprir o direito internacional humanitário e a proibição de bombardear áreas residenciais. O anúncio de Israel de que cortaria água, eletricidade e fornecimento de alimentos à população civil não gerou condenação por parte do Ocidente, apesar de a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ter criticado os ataques russos à infraestrutura ucraniana um ano antes, rotulando-os como "atos de puro terrorismo". Entre muitos pontos conflitantes no Sul global, há um em particular: como disse o rei da Jordânia, a aplicação do direito internacional humanitário é opcional e os direitos humanos valem para alguns, mas não para outros.
A acusação de aplicação sistemática de duplos padrões não se deve apenas ao recente bombardeio em Gaza. Vai muito além. Por décadas, Israel tem mantido um regime de ocupação nos territórios ocupados, o que, de acordo com as definições oficiais alemãs e da ONU, inclui também a Faixa de Gaza, privando sistematicamente os palestinos de direitos, intimidando e humilhando a população. Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a Faixa de Gaza, esse processo continua com força na Cisjordânia.
Ao longo da última década e meia, ficou claro que a ocupação não é mais uma medida temporária no caminho para uma solução de dois Estados. Netanyahu se opõe abertamente a que a Palestina adquira qualquer categoria de Estado. Sua visão e a de seus parceiros de coalizão de extrema direita no governo baseiam-se em perpetuar esse regime por toda a eternidade. Em outras palavras, "do rio ao mar", deveria haver apenas um Estado, com cidadãos (principalmente judeus) desfrutando de direitos democráticos e milhões de sujeitos sem direitos (ou seja, todos os palestinos), governados por Israel e sem voz alguma. Planos de "limpeza étnica" estão sendo desenvolvidos abertamente, não apenas nos programas de extremistas de direita, mas até mesmo em documentos oficiais do governo.
O terrorismo do Hamas não pode ser explicado por essa falta de perspectiva. Como vemos em outros lugares, o islamismo assassino e o antissemitismo não precisam de ocupação para começar. No entanto, o Hamas ganhou popularidade principalmente quando as forças moderadas dispostas a negociar foram colocadas contra a parede: uma política que Netanyahu até aplicou oficialmente. A direita de Israel e os islamitas sempre estiveram unidos em sua recusa a uma paz justa.
Isso por si só não deveria ser um problema para o Ocidente político, pois também cultiva relações intensas com vários Estados que têm conceitos completamente intransigentes em relação à participação política e proteção das minorias. No entanto, esses Estados são autocracias de diferentes tipos, não democracias autoproclamadas como Israel, que, como parte de um grupo que se considera uma comunidade de valores, é medido com padrões mais elevados em matéria de direitos humanos.
São precisamente os países centrais do Ocidente – Estados Unidos e Alemanha – que mostram uma proximidade especial com Israel: a relação com o Estado judeu é praticamente constitutiva de sua autoimagem política e estatal ("raison d'état"). A propósito: esses são também os dois países que afirmam em voz alta que sua política externa se baseia em valores e, portanto, afirmam que suas políticas se baseiam em ideais gerais e não em meros interesses. O mundo os julga cada vez mais por isso. O apoio de fato à política de ocupação de Israel, que viola todos e cada um de seus preciosos princípios, é uma ferida infectada no flanco argumentativo do "Ocidente dos valores".
A guerra que está atualmente em seu auge é um presente para todos aqueles que, especialmente em Pequim e Moscou, rotulam de hipócrita a ordem mundial liberal e baseada em regras defendida pelo Ocidente. Agora eles podem se apresentar como defensores do direito palestino à autodeterminação e, portanto, como líderes da maioria dos 138 estados membros da ONU que reconheceram o Estado palestino. O que possivelmente está surgindo na opinião pública mundial é equivalente a um grande conflito entre o Ocidente e o Sul global.
Com relação à Ucrânia, nos países emergentes da América Latina, África e Ásia, prevaleceu um certo ressentimento contra a arrogância moral do Ocidente, uma forma de desafio. O conflito no Oriente Médio é diferente. É verdadeiramente um conflito Norte-Sul. De maneira alguma é o "mundo civilizado" contra o eixo terrorista de Teerã, mas sim um conflito global que toca os alicerces dos valores proclamados pelo Ocidente.
Tendo isso em mente, aqueles no poder em Washington e nas capitais europeias deveriam pensar cuidadosamente se vão continuar dando a Israel carta branca para a ilusão de uma solução puramente militar. A guerra de vários meses que Israel anuncia agora poderia resultar em um desastre. Não apenas porque poderia ser uma missão suicida, mas também porque levaria a crise humanitária ao extremo. Não há saída para a população civil de Gaza: centenas de milhares de pessoas ficarão presas entre as frentes. Uma guerra assim implica imagens de milhares de seres humanos sofrendo, compartilhadas milhões de vezes nas redes sociais, o que inevitavelmente levará o ressentimento global contra Israel ao ponto de ebulição.
O produto seria uma tempestade de indignação contra todo o Ocidente. A mobilização em massa, não apenas no Sul global, mas também nas capitais ocidentais, as declarações mordazes de líderes de Estado proeminentes como Recep Tayyip Erdoğan e Luiz Inácio Lula da Silva e os distúrbios diplomáticos na América Latina são sinais de que há uma ruptura no horizonte entre o Ocidente e o resto do mundo. Além disso, essa guerra também poderia radicalizar toda uma geração no mundo inteiro. Israel acredita que pode esmagar o Hamas pela força. No entanto, uma nova onda de terrorismo pode estar se aproximando.
Ainda não é tarde demais para acionar o freio de emergência, especialmente para evitar uma conflagração regional que ameace toda a região, com efeitos sobre a paz mundial possivelmente incontroláveis. Afinal, a justificativa para evitar uma escalada desse tipo através da dissuasão – e a transferência maciça de equipamento militar para o Oriente Médio pelos americanos – pode acabar sendo um grave erro de cálculo. Quão realista é supor que as organizações terroristas, cuja única razão ideológica é lutar contra Israel, ficarão de fora do iminente massacre em Gaza? Ou que os aliados regionais resistirão à crescente ira popular sem consequências para sua própria estabilidade? Ou que Pequim e Moscou ficarão de fora como meros observadores? É um jogo de tudo ou nada, com apostas extremamente altas, mas ganhos modestos.
O horrendo cenário de uma conflagração não é de modo algum inevitável. No entanto, para mantê-lo à distância, os Estados Unidos e os países europeus devem reconhecer que este conflito não pode ser resolvido militarmente. Pelo contrário, a tentativa de uma solução puramente militar criaria um terreno fértil para um ódio ainda maior, mais violência e uma lacuna sem precedentes globalmente. É hora de verdades amargas. E uma delas é que a causa fundamental do conflito no Oriente Médio não é o Hamas. Mas é o Hamas quem precisa do conflito para sobreviver; é o Hamas que quer uma guerra de grande magnitude. Outra verdade é que, enquanto tiver a oportunidade de manter a ocupação, Israel não a encerrará. Porque Netanyahu e a direita israelense querem todo o país e não tolerarão um Estado palestino.
O fracasso dos Acordos de Oslo e a incapacidade demonstrada por ambas as partes em conflito em concordar com uma paz justa dentro do quadro de uma solução de dois Estados, que foi formulada há muito tempo em seus princípios básicos, deveriam atrair mais atenção tanto do Ocidente quanto do mundo árabe. Agora, eles têm duas opções. Se desejam arriscar uma conflagração regional, podem deixar o controle nas mãos das partes em conflito. Mas se desejam manter a paz e possibilitar uma paz justa e duradoura, deverão impô-la tanto aos assassinos islamistas do Hamas quanto aos radicais de direita de Israel. Ainda há tempo.
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Israel-Palestina: verdades incômodas. Artigo de Marcus Schneider - Instituto Humanitas Unisinos - IHU