10 Novembro 2023
"O principal combustível do antissemitismo de hoje, muito diferente do antissemitismo racial de um século atrás, é precisamente a atitude cultural de Israel", escreve Andrea Zhok, italiano, professor de filosofia na Universidade de Milão, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 08-11-2023. A tradução é de Juliana Haas.
Nos últimos dias, voltou-se a falar intensamente sobre antissemitismo por ocasião de algumas manifestações simbólicas (danos em lápides, estrelas de David pintadas nas paredes etc.) que recordam precedentes históricos obscuros.
Ora, que o antissemitismo é uma aberração humana – na melhor das hipóteses uma estupidez, na pior das hipóteses um crime – é certo, sem nenhuma sombra de dúvida. O antissemitismo é uma variante do racismo e é condenável pelas mesmas razões pelas quais todo racismo deve ser condenado: como uma visão que generaliza um julgamento moral negativo, estendendo-o a todos os membros de um grupo étnico-racial, como tal.
Os julgamentos morais são, e podem legitimamente ser, apenas julgamentos sobre atos e pessoas específicas. Quando são formulados julgamentos morais negativos sobre grupos, uma atribuição negativa (presumida ou real) é estendida a todos os membros do grupo, poupando o esforço de avaliar se isso é aplicável aos indivíduos que dele fazem parte.
Se agora nos perguntarmos quais são as razões para as ostensivas recorrências antissemitas contemporâneas, a primeira coisa que devemos notar é como hoje faltam as motivações que nos períodos mais sombrios do antissemitismo do século XX formavam a espinha dorsal daqueles preconceitos.
O nazismo se nutria de uma concepção biológico-racial que lhe permitia saltar com facilidade das culpas do indivíduo para as do grupo: a ideia era que o “mal” estivesse nas “disposições naturais da raça”. Hoje, porém, esta visão está essencialmente extinta e não acredito que, desde a Segunda Guerra Mundial, tenha sido reivindicada por ninguém (casos psiquiátricos a parte).
Isto significa que, quando hoje falamos de antissemitismo, devemos considerar que não pode ser exatamente a mesma coisa daquilo que para nós é a imagem arquetípica do antissemitismo, quer dizer, a história da perseguição judaica na Europa entre 1935 e 1945.
Se quisermos falar de antissemitismo hoje, devemos falar de um antissemitismo étnico-político e não de um étnico-racial, no qual a questão histórica do Estado de Israel desempenha um papel muito significativo, se não totalizante. E, no entanto, parece claro que aqui está mais uma vez em ação aquele pernicioso paradigma da generalização, segundo o qual um indivíduo é julgado de uma maneira moralmente negativa simplesmente porque pertence a um grupo. Assim, um judeu que não tem nada a ver com o Estado de Israel pode ver-se envolvido em um julgamento desdenhoso, por extensão, a partir de um julgamento em relação às políticas de Israel.
Quando isto acontece estamos diante de um verdadeiro exemplo de antissemitismo.
A questão, porém, agora é: quem fomenta esta identificação forfetária de Israel, e especificamente das escolhas da sua classe política, com o judaísmo em geral? E a resposta aqui, acredito, é bastante clara. O primeiro culpado desta identificação forfetária e acrítica entre o judaísmo e o Estado de Israel é o Estado de Israel.
Isso pode ser notado em vários exemplos. Em primeiro lugar, é a classe política israelense que tem continuado, constantemente, desde 1948 até hoje, a qualificar qualquer crítica internacional às suas políticas como antissemitismo. Dado que Israel viola constantemente inúmeras resoluções internacionais, especificamente no que diz respeito ao tratamento que dispensa às populações autóctones (palestinas), a reiterada e infalível resposta a muitos que defenderam a causa palestina nos últimos 80 anos foi de acusá-los de antissemitismo. Se você desaprova a Nakba, significa que você aplaude a Shoah. Simples assim.
A acusação de antissemitismo não é uma acusação qualquer no mundo ocidental, nascida dos escombros da Segunda Guerra Mundial: trata-se de uma acusação que dá continuidade ao nazismo e, portanto, ao que é considerado “mal absoluto”. É uma acusação que em muitos países corresponde a uma acusação criminal. É uma acusação que deslegitima completamente o interlocutor, que lhe declara guerra (não se pode, de jeito nenhum, discutir com alguém que, por definição, só quer o seu extermínio, certo?).
Este reflexo condicionado está associado a outra carta, simétrica e muito perigosa, nomeadamente o “vitimismo histórico”. Vimos, nestes dias, esta carta ser jogada da maneira mais óbvia quando, nos mesmos dias em que o exército israelense matava entre 300 e 400 civis por dia, seus representantes na ONU achavam melhor apresentar-se com a Estrela amarela de David presa no paletó. Como disse o presidente do Yad Vashem (instituição responsável pela memória do Holocausto), este gesto “desonra as vítimas do Holocausto”.
E, naturalmente, o mundo inteiro notou imediatamente este escândalo (ok, salvo aqueles que ainda engolem o ácido lisérgico das dançarinas norte-americanas nos nossos meios de comunicação).
O papel vitimista é o mais constantemente utilizado como arma de propaganda e de pressão diplomática pelo governo de Israel desde seu nascimento. Para o embaixador da ONU, Gilad Erdan, pareceu perfeitamente normal, e consoante a uma tradição consolidada, apresentar-se como herdeiro direto dos erros de quatro gerações atrás.
Como é claro, o que está implícito nesta visão é a ideia de uma identificação étnica que transcende o tempo e o espaço, e que tornaria o atual governo israelense em dívida com o mundo no qual Anne Frank ou Primo Levi sofreram. O fato de se sentir vítima, de se colocar como credor da história, aparentemente justifica todas as vinganças, inclusive as 3500 crianças massacradas em 20 dias.
Livre de outras considerações, o que sempre nos deixa curiosos nesta atitude é a escolha dos objetos sobre os quais descarregar a própria fúria vingativa. Afinal de contas, se o embaixador Gilad Erdan, ou primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, ou o ministro Galant estão tão firmemente convencidos da herdabilidade histórica de culpas e méritos, dívidas e créditos, não está claro por que ainda não tenham declarado guerra à Alemanha, pedindo um “lar nacional” na Baviera, em vez de culpar dois milhões de pessoas famintas na Palestina.
Uma observação final sobre esta tendência à generalização dos méritos e das culpas, dívidas e créditos históricos, deve ser feita em relação ao que acontece na Palestina, onde a ideia de culpa (e punição) coletiva é tida como absolutamente garantida pelo governo israelense. A ideia de punição coletiva está presente desde a década de 1970 com a destruição de casas de famílias palestinas suspeitas de atividades anti-israelenses, bem como em milhares de outros casos, mas nos últimos dias ouvimos isso repetidas vezes aos mais altos níveis (ex-embaixadores, membros do Knesset, ministros) com a declaração de que “não há civis inocentes em Gaza”.
Agora, infelizmente, a ideia de culpas e de méritos coletivos baseada na pertença a um grupo étnico é o que Israel tem de modo contínuo reivindicado em seu próprio benefício, mas, lamentavelmente, é, com rigor e precisão, a mesma operação que, quando revertida, se encarna no antissemitismo.
Simplificando, o principal combustível do antissemitismo de hoje, muito diferente do antissemitismo racial de um século atrás, é precisamente a atitude cultural de Israel, que raciocina sistematicamente de modo a propor uma identificação entre as próprias políticas – mesmo as mais inqualificáveis – e a identidade judaica.
Felizmente, há muitos judeus no mundo que continuam a contestar lucidamente o projeto sionista e as violências que ele provocou. Vimo-los, nos últimos dias, protestar em Nova York, mas também em Jerusalém.
Talvez todos aqueles meios de comunicação que sempre falam sobre o espectro do antissemitismo prestassem um serviço à verdadeira luta contra o antissemitismo, dando um pouco mais de voz a estes judeus e um pouco menos a um governo genocida.
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O problema do antissemitismo atual. Artigo de Andrea Zhok - Instituto Humanitas Unisinos - IHU