03 Novembro 2023
"Tento reescrever uma espécie de diário, para observar a guerra no Oriente Médio com os olhos dos amigos que estão em Beirute, fixos no Hezbollah, impressionados com as ameaças e os medos".
O comentário é do jornalista italiano Riccardo Cristiano, publicado por Settimana News, 01-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 13 de outubro passado, no fim da visita a Beirute do ministro das Relações Exteriores iraniano, Hossein Amir-Abdollahian – durante a qual ele passou mais tempo com o secretário-geral da milícia pró-iraniana do que com seu homólogo libanês –, ele disse que o Hezbollah (com outras milícias pró-iranianas) já estava pronto “com o dedo no gatilho”: palavras literais.
Poucos dias depois, o número dois do Hezbollah no Líbano, líder do grupo no Parlamento, durante uma cerimônia fúnebre, reiterou o conceito, repetindo as mesmas palavras do pasdaran emprestado à diplomacia iraniana: “Já estamos com o dedo no gatilho”.
No dia 26 de outubro, na ONU, Hossein Amir-Abdollahian voltou a falar, ainda no papel de chefe da diplomacia iraniana e sempre com os tons caros aos pasdaran, afirmando que os crimes em Gaza estavam se agravando de modo intolerável: por isso, “como disse o guia espiritual Ali Khameni, ninguém poderá deter a resistência palestina e islâmica”, em que a conjunção explica que a questão não é só palestina, de forma alguma.
A escalada contra Israel e o Ocidente está nas palavras e menos nos fatos: ainda dentro dos limites de ataques a postos e bases militares estadunidenses, especialmente no Iraque.
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No dia 29 de outubro, Hasan Nasrallah – o líder indiscutível do Hezbollah, da referida milícia libanesa, assim como de toda a frente khomeinista da região, instalado em importantes ministérios libaneses e com o pleno controle da fronteira com Israel – anunciou que, na sexta-feira, 3 de novembro, pela primeira vez desde o início da guerra, ele mesmo tomará a palavra: uma novidade ameaçadora, anunciada com nada menos do que cinco dias de antecedência. Uma escolha que tem um significado evidente: exercer a máxima pressão psicológica.
Todos sabem que uma guerra de “intensidade moderada” já está em curso na fronteira israelense-libanesa e alcançou um ápice (relativo) no dia 31 de outubro, com o abate de um drone israelita e uma resposta “via terra”, mas não na faixa fronteiriça. Novos passos “para cima” levariam, na melhor das hipóteses, a um conflito regional muito perigoso ou algo semelhante.
No mesmo dia do anúncio, cheio de expectativa alarmante, precisamente no dia 29 de outubro, o presidente iraniano, Ibrahim Raisi, anunciou: “Israel (com a entrada de veículos de guerra em Gaza) cruzou a linha vermelha”.
É evidente, no entanto, apesar do sobreaquecimento de alguns grupos milicianos – especialmente no Iêmen e no Iraque – que a verdadeira escalada ainda não ocorreu, pelo menos até agora. Pelo contrário, o sobreaquecimento foi acompanhado por iniciativas diplomáticas. O Irã parece dizer que Israel não deve ultrapassar a verdadeira linha vermelha, que, no entanto, deve ser mais bem identificada.
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Em tal contexto, inseriu-se, no dia 30 de outubro, o telefonema do ministro das Relações Exteriores iraniano ao secretário para as Relações com os Estados do Vaticano, Dom Richard Gallagher. Parece sensato assumir que Hossein Amir-Abdollahian confirmou que o Irã não quer uma escalada, mas que sua base não pode tolerar mais derramamento de sangue por muito tempo, porque o sangue da população palestina está na verdade criando um problema de credibilidade para a retórica de Teerã.
Esse telefonema – na minha opinião e não só – parece ser um claro sucesso do Vaticano: o papa da fraternidade, “fumaça nos olhos” de todos os teocratas, incluindo os iranianos, é reconhecido como “a” ponte para evitar os desdobramentos mais perigosos.
Chego assim ao dia que está no horizonte do meu breve diário, ou seja, a próxima sexta-feira – dia da oração islâmica – em que o líder do Hezbollah tomará a palavra: a hora e o dia do discurso de Nasrallah, na imitação do regime iraniano, indicam o tempo à disposição para a diplomacia internacional restabelecer a dissuasão e as regras de enfrentamento do confronto que podem ser consideradas “aceitáveis”. E o que poderia acontecer se, até às 15h de sexta-feira, isso não fosse alcançado?
Provavelmente, essa é a “pergunta-chave”, aquela que eu me faço, com inquietação, aos amigos que vivem em Beirute. Cultivar o risco de uma deflagração regional do conflito é o cerne do efeito psicológico com o qual o Irã conta, para obter e dar, embora lembrando que o Hezbollah já obteve nestes dias a confirmação de que Israel não está buscando uma escalada contra o Irã, dado que Israel não desafiou com força o Hezbollah, que evidentemente sabe pensar em seu próprio bem-estar, muito mais do que no dos pobres palestinos. Poucos veem isso. Então, por que o Hezbollah deveria subir demasiadamente o tom e mudar sua atitude?
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Os analistas argumentam hoje que, em um mundo árabe cada vez mais irritado com a conduta de Israel, o cerne do discurso de Nasrallah se centrará na reivindicação do papel de primeira ordem do Hezbollah no conflito em curso, com mais de 60 combatentes já mortos na luta “no caminho para Jerusalém”, naquele que é considerado o golpe mais duro já desferido contra Israel pelos seus inimigos. O silêncio dos líderes árabes – que não levantaram um dedo contra Israel – apenas serviria de amplificador para as suas palavras.
Eis então que, segundo muitos observadores, especialmente libaneses, isso poderia ser suficiente, sem expansão do conflito, para recuperar prestígio, para restaurar a “face” perdida aos olhos de milhões de árabes devido à ferocidade da carnificina perpetrada pelo Hezbollah contra centenas de milhares de árabes sírios em apoio ao regime fratricida de Bashar al-Assad.
De acordo com os próprios observadores libaneses, a verdadeira linha vermelha para o Hezbollah continuaria sendo a não dita: impedir a eliminação total do braço armado Hamas, porque isso deixaria o Hezbollah sozinho para enfrentar a força do exército israelense em um futuro próximo.
Obviamente, no Irã, todos sabem que os “interlocutores” são perfeitamente capazes de inferir quais são os verdadeiros planos: a escalada regional seguiria uma agenda diferente; mas – atenção – “não se brinca com fogo”; nada é óbvio nem previsível.
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Ora, o telefonema para Dom Richard Gallagher parece ser uma peça central da estratégia de contenção do conflito. Teerã oscila entre a ideologia teocrática e o oportunismo. Se falasse apenas com os “loucos” do mundo, o oportunismo da razoabilidade desapareceria, porque sempre há “um extremista menos extremista do que os outros”, imediatamente pronto para “colher o que não semeou”.
Em tudo isto, destaca-se a surpreendente, mas também óbvia, admissão do primeiro-ministro libanês: em todo o conflito em curso – de consequências potencialmente devastadoras para todo o Líbano e para os libaneses – o governo não tem voz própria. O Líbano é um país que não tem direito a uma política nacional de defesa. Ela foi confiscada pelo Hezbollah, a única milícia que pode ter acesso às armas: um corolário da crise que o Hezbollah conhece bem nestas horas.
Portanto, se o Hezbollah levasse o Líbano para o abismo, as milícias libanesas se multiplicariam, e muitas delas certamente não manifestariam sua simpatia pelo Hezbollah. Embora o Hezbollah saiba muito bem que o Líbano, por mais que esteja em ruínas, serve imensamente para seu próprio partido.
Então, Nasrallah está apontando uma arma vazia? Seria irresponsável pensar assim. Eu acredito que ninguém cometerá tal erro de avaliação. E espero isso, porque realmente estamos caminhando sobre o cume de uma montanha, na qual, pelo menos de um lado, existe justamente um precipício!
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Diário de guerra. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU