17 Outubro 2023
"Permito-me apresentar uma tese sobre a data do ataque do Hamas: todos notaram que era o 50º aniversário do ataque árabe surpresa contra Israel em 1973. Por quê? A mensagem é clara: 'Somos nós, os teocratas, que hoje sabemos como colocar o inimigo em crise, enquanto as coroas árabes (os sauditas) querem firmar paz conosco'", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 15-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O líder da revolução iraniana, Ali Khamenei, e o seu braço operacional para todo o Levante Árabe alargado, de Gaza a Bagdá, o chefe do Hezbollah, Hasan Nasrallah, são chamados nestas últimas horas para tomar a decisão mais importante das suas vidas: intervir ou não no conflito em curso entre Israel e o Hamas? A última palavra é de Khamenei. O que eles decidirão? Até agora evitaram intervir, mas os fatos mudam rapidamente e com eles as decisões possíveis.
Nós não podemos dar a resposta, mas é útil entender onde e como chegaram a esse ponto. Eles lideram a exportação da revolução khomeinista, uma revolução teocrática xiita, a família islâmica em conflito com a majoritária, sunita, à qual o Hamas adere. Precisamos rever o passado recente e remoto para ter uma ideia.
A primeira memória que se impõe é aquela de 2011, a Primavera Árabe, as ruas que como uma onda continental lançaram o slogan “o povo quer a queda do regime”, rejeitando assim a teocracia de tipo Bin Laden ou Khamenei, com a qual muitos ainda assim haviam simpatizado. O slogan não dizia: “os muçulmanos querem a queda dos regimes”, no plural, mas sim: “o povo quer a queda do regime”, no singular, ou seja, precisamente a queda de todo regime vigente, naquele lugar onde estava se manifestando.
Portanto, ao sistema teocrático se opunha aquele democrático. Um povo era o tunisino, ou o egípcio, e assim por diante: não o árabe ou o islâmico em geral. Com isso aceitava-se a ideia de um Estado nacional, não tribal ou confessional-imperial. Duas escolhas decisivas que desafiaram efetivamente a visão islamista de Khamenei e Nasrallah.
A segunda evidência vê hoje os países que lançaram aquele desafio em ruínas, especialmente na parte do Levante Árabe alargado, isto é, de Beirute a Damasco e Bagdá, juntamente com o Iêmen: um mundo reduzido a uma extensão de escombros sujeitos ao controle imperial e teocrático das milícias persas (apenas no Iêmen, depois de anos ferozes, tenta-se uma trégua). As milícias persas – acho melhor defini-las dessa forma em vez de milícias iranianas – têm a sua referência realmente no império persa, para reconstituí-lo após a derrota de 331 a.C. infligida por Alexandre, o Grande em Gaugamela.
Empurrado por Alexandre, o Grande, para além da antiga Mesopotâmia, aquele império viu-se restrito à Pérsia, islamizada após as conquistas árabes que deram vida – entre a Mesopotâmia e o Mediterrâneo – ao seu império árabe e confessionalmente sunita (a maioria do Islã), depois absorvido por aquele Otomano. Os persas não desistiram e espalharam um Islã completamente novo, persianizado, após a islamização, não por ser xiita – a minoria islâmica que ainda é a religião oficial no Irã – mas por ser imbuído de novidades até então desconhecidas pelo Islã histórico, por exemplo o valor do número 12: de onde os doze imãs, o último dos quais, o escondido, ou seja, o nem vivo nem morto, mas sim o presente no entretempo, pronto para retornar no fim dos tempos.
Esse tempo médio tornou-se fundamental na teologia khomeinista. Os mártires e homens-bomba – uma criação da teologia khomeinista desconhecida do Islã histórico, exceto por uma pequena seita herética – não morrem, mas chegam ao imã escondido no entretempo, de onde contribuem para acelerar o fim dos tempos e favorecer a chegada do último dia, quando a justiça divina se cumprirá para sempre.
Se essa visão for puramente khomeinista, o xiismo, em si, é outra coisa: como se sabe, é a confissão islâmica minoritária, nascida nos conflitos entre os herdeiros de Maomé, todos árabes naquela época. A discriminação dos hereges xiitas é, portanto, muito anterior à reforma khomeinista.
Após o declínio do Império Otomano, com o nascimento dos Estados nacionais, o confronto voltou sobretudo entre árabes sunitas e persas xiitas, gerando um evidente problema: os árabes xiitas são árabes mas não sunitas, são xiitas mas não persas. Como resultado da discriminação em ambos os sentidos, definiu-se o novo arranjo da oposição política, em defesa dos discriminados, mas em nome do comunismo. Uma novidade muitas vezes esquecida, mas importante para todo o Levante alargado, que ali encontrava uma sua própria expressão, isto é, interconfessional. Mas com o declínio do comunismo afirmou-se o khomeinismo na direção de um pertencimento confessional rígido. À frente do movimento árabe xiita chegavam os pasdarans e milicianos organizados por Teerã, para o controle imperial dos territórios.
Então: como é possível que hoje um grupo do extremismo sunita mais radical – Hamas – esteja fidelizado, financiado e armado pelo Irã khomeinista? Lembro apenas que essa divisão existe porque não nasce na teologia, mas no sangue dos pais do Xiismo (como outros líderes islâmicos antes deles).
A questão é enorme: não se pode deixar de perceber a prevalência escondida do projeto imperial, sobre todo o Levante Árabe alargado; portanto, o conflito islâmico que reduziu a escombros o Levante Árabe passa há anos entre os herdeiros do império persa, que conquistou essas terras em tempos distantes, e aqueles do império árabe que nasceu nessas terras séculos depois. Os herdeiros em questão são o Irã e a Arábia Saudita: origem do xiismo persa o primeiro e do sunismo árabe o segundo.
É por isso que, para entender essa estranha convergência, deve ser lembrada toda a obra do ideólogo comum que atende pelo nome de Sayyd Qutb, egípcio, nascido no país que deu origem ao Islã político sunita.
Qutb foi executado em uma penitenciária egípcia por Nasser. A figura de Nasser não pode ser aqui evocada em poucas linhas; lembro apenas que o seu slogan era: “Que nenhuma voz se eleve acima da voz da batalha”. A prefigurar sociedades aniquiladas e reduzidas ao silêncio devido à primazia do conflito árabe contra Israel. Esse foi o pensamento predominante naquelas paragens, até 2011; até, justamente, o grito das ruas: “O povo quer a queda do regime”.
Qutb estava fortemente empenhado com a justiça social de uma perspectiva islamista. Graças a um companheiro de escola, que se tornou ministro, foi enviado para estudar nos Estados Unidos. Ele era um jovem brilhante. Há fotos dele de terno e gravata nos campi estadunidenses. Alguns biógrafos mencionam uma decepção pessoal nos EUA. O que é certo é que regressou ao Egito com uma atitude mais radical, convencido da superioridade tecnológica, mas também da degradação moral do Ocidente.
Amin Maalouf, em seu maravilhoso ensaio O naufrágio das civilizações, conta sobre uma assembleia lotada que caiu na gargalhada quando Nasser contou ter rompido as negociações com os Irmãos Muçulmanos porque, para votar nele, aqueles pediram-lhe que impusesse o véu às mulheres. Naquela época, os campi universitários estavam nas mãos de jovens com calças boca de sino e ideias de viés marxista.
O slogan "nenhuma voz acima da voz da batalha", cunhado por Nasser quando mandou prender e executar Sayyid Qutb, tornou-se o dos terroristas islâmicos: também o Hamas e o Hezbollah dizem e pensam: “Nenhuma voz acima da voz da batalha”. Isso leva a mal-entendidos, porque é difícil negar que, como observa novamente Amin Maalouf, no Ocidente a voz desse islamismo radical seja mal compreendida por aqueles que – corretamente – veem nela os ecos do terceiro mundismo do seu inimigo Nasser.
Observamos o manifesto fracasso da promessa nasseriana, que mesmo assim havia convencido muitas pessoas: “O regime distribuir-vos-á os dividendos da descolonização”: em vez disso, aqueles dividendos não chegaram: os regimes colocaram-nos nos bolsos da restritíssima elite. Esse fracasso político de Nasser – que nunca embolsou uma única moeda – deu poder aos islamistas de Qutb e à sua certeza de que somente a lei religiosa, a sharia, poderia ter alcançado a tão esperada justiça social.
Foi esse fracasso que causou a rápida transformação dos jovens do campus que riam dos Irmãos Muçulmanos em universitários hegemonizados pelos Irmãos com a ideologia “Qutbista”. Aconteceu uma transformação repentina e impressionante, contemporânea ao khomeinismo: teocracia e confronto frontal com o Ocidente imoral, e em frente!
A superioridade tecnológica e a imoralidade ocidentais são explicadas por Qutb. Para entender as suas palavras, é preciso entrar no termo árabe Jahiliyya, ou seja, na ignorância da Mensagem de Deus que caracterizaria o mundo antes de Maomé. Eis a tese, fortíssima, de Qutb:
“Se olharmos para as fontes e fundamentos dos estilos de vida contemporâneos, fica claro que o mundo inteiro está imerso na Jahiliyya, e que todos os confortos materiais e invenções da tecnologia não reduzem essa ignorância. É uma Jahiliyya baseada na rebelião contra a soberania de Deus na Terra, uma Jahiliyya que transfere ao homem um dos maiores atributos de Deus, ou seja, a soberania: e torna alguns homens senhores de outros homens. Não é mais a forma simples e primitiva da antiga Jahiliyya, porque assumiu a forma da proclamação do direito de criar valores, estabelecer por lei as normas de comportamento coletivo e escolher qualquer modo de vida que pertença ao homem, sem levar em conta o que é prescrito por Deus”.
Esse é também o coração pulsante da virada teocrática Khomeinista contra a aberração ocidental. Khomeini, que traduziu Qutb, escreveu: “Acreditamos na obra de governo e acreditamos na exigência do Profeta de nomear um sucessor depois dele, como ele justamente fez”, mesmo que, de fato, o primeiro califa não tenha sido nomeado por ele. E continua: “A necessidade de um sucessor se atém à aplicação das leis porque nenhuma lei é respeitada se não houver quem cuide da sua execução. É por isso que o islã decidiu instituir um poder executivo para aplicar as leis de Deus. O Profeta – Deus o abençoe – foi o executor da lei. Ele puniu, cortou as mãos dos ladrões, açoitou, apedrejou e governou com justiça. Para tais atos é preciso de um sucessor". Esse sucessor, para Khomeini, é o próprio Khomeini.
A este ponto, parece-me que posso sustentar que mesmo no Islã usando a expressão cunhada pelo Padre Antonio Spadaro e por Marcello Figueroa no seu ensaio de anos atrás sobre a aliança entre fundamentalismo "evangélico" e extremismo católico – está à obra "o ecumenismo do ódio", na versão islâmica, xiita-sunita: não concordam sobre quem deve liderar o Islã global, mas certamente concordam quem devem atacar e de que forma.
Permito-me apresentar uma tese sobre a data do ataque do Hamas: todos notaram que era o 50º aniversário do ataque árabe surpresa contra Israel em 1973. Por quê? A mensagem é clara: “Somos nós, os teocratas, que hoje sabemos como colocar o inimigo em crise, enquanto as coroas árabes (os sauditas) querem firmar paz conosco”.
"Que nenhuma voz se eleve acima da voz da batalha". Mas agora a espera, o possível ganho tático, se deparam com a decisão mais importante: colocar todo o seu poder em jogo num risco ímpar? Ou arriscar-se a perder a sua teocrática “credibilidade”?
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Hamas e “o ecumenismo do ódio”. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU