15 Agosto 2022
"O choque final - os senhores de todas as escolas apocalípticas estão convencidos disso - se aproxima e a tarefa é aproximar cada vez mais o fim. Portanto, não tentam resolver os conflitos, mas agravá-los, para aproximar a Hora, o momento do fim do mundo e da vitória final certa contra o Anticristo: que obviamente é em primeiro lugar o Ocidente. É por isso que, a meu ver, o gesto de um jovem de vinte e quatro anos que nada sabe sobre 1989, de Cabul etc., quer nos dizer que o Apocalipse está perto: o choque se agrava e cada adepto ter a tarefa de agravá-lo", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e presidente da Associação “Jornalistas Amigos do Padre Dall’Oglio”, em artigo publicado por Settimana News, 14-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
É fácil concordar que o aspecto mais importante do atentado contra a vida de Salman Rushdie seja seu fracasso e que ele - o símbolo universal da luta pela liberdade de pensamento e palavra - está vivo. É fácil concordar com os votos de que ele não perca a visão de um olho e se recupere da melhor forma possível: no momento sua situação ainda está instável.
Salman Rushdie agora não vive mais apenas para si mesmo, mas vive para todo o mundo livre, que quer permanecer ou se tornar.
Chamou-me a atenção - lendo as muitas reações ao atentado - saber que Rushdie havia concedido uma entrevista a Christophe Ono-dit-Biot, que foi publicada no Le Point, na qual ele disse que "hoje as palavras se tornaram bombas". Das pedras do tempo de Jesus estamos às bombas contemporâneas. Fala-se disso há séculos, sem que a humanidade tenha encontrado a capacidade de usar essas palavras da melhor maneira possível: para entender, para se entender. Este ainda continua sendo o ponto mais plenamente contemporâneo, para todos nós.
Salman Rushdie representa para nós o homem que usa a palavra, porque sente o direito de fazê-lo livremente em nome da humanidade. Isso não é um fato relevante para nós também? Ele evidentemente entendeu algo - em nossos anos - que nós também ainda temos alguma dificuldade em compreender e aceitar?
Esse mestre universal da liberdade sentiu que era seu dever nos alertar. Há novas e angustiantes ameaças à liberdade de pensamento e de expressão no mundo contemporâneo. Sua afirmação parece dedutiva, visto que, na entrevista que mencionei, ele acrescentou: "Depois do Google, a histeria se espalhou eletronicamente".
A palavra decisiva me parece histeria. Então eu penso neste atentado. A fatwa do aiatolá Khomeini, remonta – com toda evidência – a um ano em que o executor do atentado ainda não tinha nascido. No universo deste jovem de vinte e quatro anos, portanto, o dever religioso de matar Rushdie - ditado por Khomeini, que está morto e enterrado há anos – como apareceu?
É preciso ter muito cuidado ao usar - agora - a palavra xiita: Khomeini não é xiismo, longe disso! Também precisamos ter uma ideia clara da revolução iraniana para entender o que seu ideólogo, Ali Shariati, quis dizer quando falou do xiismo vermelho versus xiismo preto.
O xiismo é a religião do sangue dos mártires, das vítimas, dos excluídos, dizia Shariati: não de quem quer fazer dos outros mártires. Ele ofereceu a melhor prova disso em sua história sobre o pai de todos os mártires xiitas, o imã Hussein, ponto de referência cultural e religiosa para o xiismo desde suas origens, muitos séculos atrás.
Ali Shariati dizia aos jovens revolucionários iranianos, que o ouviam embevecidos: os inimigos do verdadeiro Islã haviam se apossado do Islã e Hussein partiu também para Meca para desafiá-los. Ele era o verdadeiro herdeiro de Maomé, não podia ficar em casa enquanto o Islã estava sendo desviado. Mas ele partiu apenas com sua vida: para a vida, não para a morte, nem a sua própria, nem a de seus inimigos. A tarefa que ele sentia era dar testemunho. E de fato saiu desarmado, sem homens armados com ele. Ele não se rendeu aos usurpadores, ele foi dar testemunho do verdadeiro Islã.
O que ficou nas redes sociais de hoje de uma figura como Shariati, autêntica chama que fez arder o Irã e seus seguidos de 24 anos na época? E o que resta do golpe negro de Khomeini se hoje um jovem de 24 anos tentar matar Salman Rushdie, bandeira global da liberdade de pensar, falar e escrever?
O que está bombando nas redes sociais de hoje, quem as alimenta? Por que quase todo mundo não ficou sabendo que a fatwa contra Rushdie foi reiterada pelo aiatolá Ali Khamenei em 2005 e novamente em 2017 e 2019, via Twitter? Quem pode nos dizer mais sobre por que Khomeini emitiu sua fatwa contra o autor do famoso livro Versículos Satânicos, título inexplicavelmente traduzido para a nossa língua como "Versos satânicos"?
Khomeini a assinou em 14 de fevereiro de 1989. Uma data aleatória? Não! Basta justamente usar o Google: em 15 de fevereiro de 1989, o Exército Vermelho teria completado sua retirada do Afeganistão. Tinha que ser o dia do triunfo dos mujahideen afegãos, da confissão muçulmana oposta - sunita – na época armada pelos estadunidenses. Aquele dia marcaria seu triunfo global. O fundamentalismo islâmico teria caído em suas mãos.
Mas aquele dia se tornou o dia de seu pior inimigo: com uma simples fatwa – uma sentença religiosa que não requer exércitos, lutas armadas de anos, vitórias militares - Khomeini se apossou da vitória sobre seus adversários, porque a subversão global tinha que estar em suas mãos, não nas deles.
O desafio da insurgência global havia iniciado e devia ter sede no Irã, não no Afeganistão, entre os mujahideen. A leitura apresentada é documentada por Gilles Kepel em muitos de seus ensaios: é conhecida, mas na maioria das vezes negligenciada.
O desafio global do aiatolá Khomeini foi renovado pelo aiatolá Khamanei, no silêncio já distraído da maioria, confirmando em Rushdie o símbolo da liberdade sacrílega – a ser morta – porque o apocalíptico não pode tolerar as palavras que explicam uma história que evolui, só é capaz de eternizar os conflitos.
Seu modelo é a horda. É uma horda apocalíptica aquela que deve se espalhar desde então até hoje. Khomeini, assim como Khamenei e o líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, pertencem ao pensamento apocalíptico. O tempo em sua visão não comporta desenvolvimentos, mudanças, progressos, mas sim rupturas, choques eternos que as palavras não podem modificar.
O choque final - os senhores de todas as escolas apocalípticas estão convencidos disso - se aproxima e a tarefa é aproximar cada vez mais o fim. Portanto, não tentam resolver os conflitos, mas agravá-los, para aproximar a Hora, o momento do fim do mundo e da vitória final certa contra o Anticristo: que obviamente é em primeiro lugar o Ocidente.
É por isso que, a meu ver, o gesto de um jovem de vinte e quatro anos que nada sabe sobre 1989, de Cabul etc., quer nos dizer que o Apocalipse está perto: o choque se agrava e cada adepto ter a tarefa de agravá-lo.
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Salman Rushdie e aproximação do Apocalipse. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU