15 Agosto 2022
"As bacias de cultura do terrorismo são enormes e ninguém - infelizmente! - cuida disso. Apenas aumentam desordenadamente. O fato de que a justificativa de toda guerra tenha se tornado a luta contra o terrorismo me faz pensar na necessidade do inimigo perfeito e bem visível. Enquanto o magma, no qual prospera o mal, permanece invisível", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano e presidente da Associação “Jornalistas Amigos do Padre Dall’Oglio”, em artigo publicado por Settimana News, 13-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A eliminação de Ayman al-Zawahiri, sucessor de bin-Laden no comando da al-Qaeda, merece considerações no tumultuado desenvolvimento político do Oriente Médio: entre estas, não podem faltar aquelas sobre a possível traição, sobre a precisão do golpe, sobre as consequências e sobre o legado da figura.
A traição, nesses casos, é sempre possível. Al-Zawahiri havia se tronado incômodo, depositário de tantos segredos, agora em demasia. A quem poderia ser incômodo? A quem o eliminou ou a quem o hospedou para fazê-lo se instalar em um apartamento no coração de Cabul?
Todos sabem - e a própria franja confirmou - que se trata da facção Haqqani, extremista e designada como terrorista há anos, de grande peso político e militante no universo dos Talibã. A rede Haqqani, é liderada pelo atual ministro do interior afegão, Sirajjuddin Haqqani, braço armado da escola corânica deobandi Sirajjuddin e da famigerada Shura de Quetta, conselho fanático e influente no círculo que pertenceu ao mulá Omar.
O destino dos líderes extremistas parece destinado a encontrar sempre algum traidor. A busca do traidor - que raramente é encontrado -, porém, nos faz perder de vista a substância: existe um magma, um movimento obscuro muito diferente daquele aparentemente revolucionário ou terrorista, feito de cumplicidades, conivências, usos perversos das pessoas. No entanto, é daí, do magma, que emerge a traição. Provavelmente foi assim para bin-Laden, para al-Baghdadi - morto a centenas de quilômetros de onde fez perder seu rastro e além das linhas inimigas que o cercavam - agora para al-Zawahiri.
Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri. (Foto: Hamid Mir | Wikimedia Commons)
Por que al-Zawahiri não havia feito uma única declaração sobre o Afeganistão desde o retorno dos Talibãs? Por que o possível protetor Haqqani jamais havia mencionado sua presença no país? Que peso tinha al-Zawahiri no novo Afeganistão?
Nesses grupos a perversão da verdadeira religião é fora de discussão, mas ainda mais inquestionáveis são as relações turvas, cínicas e igualmente perversas com ambientes, regimes e serviços e contra serviços secretos, prontos para qualquer transversalidade. Entender o magma me parece mais importante do que identificar o suposto verdadeiro traidor.
O segundo elemento é a precisão. Matar um superprocurado parece ser um resultado em si. "Desencovamos você!": essencialmente disse o presidente Biden. Mas o efeito buscado, parece-me, é outro: matar um homem dentro de sua casa, no centro de Cabul, sem atingir - se for verdade - as outras pessoas no apartamento, sem nem mesmo causar grandes danos ao imóvel, sem, portanto, o menor dano colateral, é a verdadeira prova de eficiência e de força do presidente dos Estados Unidos.
A estratégia de Obama - combater o terrorismo remotamente - parece ter encontrado assim, com a operação ordenada por Biden, sua completude: a guerra ao terror de Obama, seria capaz de comandar - a partir de um computador - uma eliminação mesmo entre os beliches, sem quebrar uma xícara de café, enquanto a estratégia antiterrorista de Bush teria precisado da invasão do Iraque e de um longo período de tempo para encontrar Saddam sob um bueiro.
A peculiaridade afegã está no fato de que o grupo que estava cobrindo - ou controlando - al-Zawahiri imediatamente fechou toda a área e fez seus familiares desaparecerem no ar, imediatamente após a operação militar dos EUA.
O ministro do Interior, Sirajjuddin Haqqani, com todo o seu conhecido poder e influência, sabe que está agora na mira, porque se colocou por fora dos acordos que os Talibãs e os Estados Unidos de Trump tinham assinado antes do regresso dos estudantes corânicos a Cabul: estes excluíam qualquer relação de cobertura dos qaedistas. Cabul agora terá que responder por isso.
Quanto às consequências, a mais óbvia será a escolha de um substituto para al-Zawahiri na Al-Qaeda. Já há quem garanta que - para a própria Al-Qaeda - a substituição será um alívio. Na verdade, a liderança de al-Zawahiri só foi notada por sua dedicação à frente interna. Significativo é o fato de tal líder da Al-Qaeda tenha marcado a presença de sua organização - nos tempos em que o mundo está às voltas com a guerra na Ucrânia – detendo-se no dever das mulheres indianas de usar o ijhab: isso provavelmente é a confirmação que a Al-Qaeda não tem, há tempo, energia para falar aos corações dos combatentes de Alá.
O verdadeiro confronto com o Estado Islâmico se dá com sua vitalidade interna. A questão é bem conhecida: se luta contra o inimigo próximo ou distante? A Al-Qaeda teve a intenção de atingir no coração o inimigo distante - o Ocidente - dentro de sua casa, onde pulsava o coração do imperialismo, nos Estados Unidos e na Europa; o Estado Islâmico – o ISIS – por outro lado, visou combater o inimigo próximo, tomando posse da terra islâmica e delegando os atentados internacionais ao franchising terrorista enraizado na web.
É por isso que, para os combatentes da Al-Qaeda, faltar a um compromisso como o do conflito na Ucrânia, concentrando-se na questão do véu para as mulheres indianas, é uma enormidade impressionante.
A época de al-Zawahiri será, portanto, lembrada como a época da reorganização interna na incapacidade de se reinserir no coração do projeto violento? A luta contra o inimigo distante não avançou muito, enquanto a Al-Qaeda penetrou em novos territórios, africanos em particular, mas também asiáticos, e o fanchising também se tornou de casa entre eles: o grupo central existe e há os grupos dispersos em várias regiões do mundo que, para aderir, devem adotar um código político e, assim, tornar-se uma filial local do grupo que pertenceu a bin-Laden.
A liderança de al-Zawahiri marcou, portanto, a época da difusão, ou seja, a incapacidade de reorganização do movimento devastado pela captura de bin-Laden e pela leitura dos documentos que ele tinha em seu covil? Acontecerá agora a reestruturação de sua rede mais agressiva para levantar as sortes de um movimento em dificuldade?
Especialistas no assunto asseguram que o semiobscuro e frio mestre egípcio al-Zawahiri tenha continuado sendo professor de escola mesmo em sua última aparição em vídeo: naquele vídeo - realmente o último - ele chamou de imbecil um líder de sua galáxia, de inepto outro e assim por diante.
Querer ver do ponto de vista da propaganda interna, esta não é uma linha que possa aquecer os corações, principalmente daqueles que querem dedicar sua morte à ira de Deus contra seus inimigos, sejam sionistas ou cruzados.
No entanto, a consequência da eliminação de al-Zawahiri pode ser um sobressalto armado: se houver, não dependerá tanto da raiva religiosamente inspirada pela morte de um líder que alguns jihadistas saudaram com alívio, mas da intensidade da campanha que cada líder votado para a sucessão desencadeará pela conquista do topo.
Resta o fato que o horizonte da Al-Qaeda é bastante nebuloso. Tampouco se pode afirmar que os Talibãs ao hospedar al-Zawahiri - e Haqqani o cobrindo - realmente quisessem mostrar sua solidariedade - tanto quanto seu controle - sobre o homem que liderava os restos do horrível exército que foi montado por bin-Laden.
Finalmente, chego à consideração sobre a herança de al-Zawahiri, a mais difícil.
Parece-me um sinal dos tempos que o homem candidato à sucessão seja Saif al-Adel, um da velha guarda: seu nome diz pouco para a maioria; sua história o quer, por longos períodos, em prisão domiciliar no sancta sanctorum dos inimigos da al-Qaeda, no Irã. Estranho, mas até certo ponto. Terminar no Irã foi o destino que coube a muitos parentes de bin Laden. Onde mais poderiam ficar - em refúgio - os líderes da Al-Qaeda? O Sudão é instável, a Somália ainda mais. Que outro país está disposto a oferecer um domicílio forçado?
Aqui volta a teoria do magma, do inconfessável. Pode-se realmente oferecer um domicílio a essas pessoas, ainda que forçado? Pessoalmente eu o excluo. Considero que tanto a Al-Qaeda quanto o Irã querem formar uma frente comum contra seu inimigo ocidental: estão imersos, juntos, no magma.
A notoriedade da associação iraniana de al-Adel leva a avaliar sua candidatura como um sucesso improvável. No entanto, o resto da cadeia de comando - aquela histórica da Al-Qaeda - fala de figuras, em sua maioria, sem qualidade. A Al-Qaeda antigamente sabia como parecer tentadora: com a palavra bin-Laden nos lábios e com muito dinheiro no bolso.
E agora, o que acharão tentador na nova al-Qaeda os grupos subversivos que povoam o mundo da violência mais brutal? A sucessão de al-Zawahiri depende da resposta a essa pergunta. Disso depende também o futuro do citado confronto sobre as prioridades do terrorismo internacional: a luta contra o inimigo próximo ou a luta contra o inimigo distante.
As bacias de cultura do terrorismo são enormes e ninguém - infelizmente! - cuida disso. Apenas aumentam desordenadamente. O fato de que a justificativa de toda guerra tenha se tornado a luta contra o terrorismo me faz pensar na necessidade do inimigo perfeito e bem visível. Enquanto o magma, no qual prospera o mal, permanece invisível.
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A eliminação de Ayman al-Zawahiri. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU