11 Outubro 2023
"A disseminação de teorias da conspiração estadunidenses, de crenças na superioridade racial, de extremismo antigovernamental e outras manifestações de ódio e intolerância tornou-se um problema tão grande que alguns dos aliados mais próximos dos Estados Unidos - a Austrália, o Canadá e o Reino Unido - designaram grupos e cidadãos estadunidenses como terroristas estrangeiros", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 07-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No dia 19 de setembro deste ano, a publicação de maior prestígio sobre política internacional dos EUA, Foreign Affairs, dedicou o seu aprofundamento ao seguinte tema: “O ódio estadunidense torna-se global”.
O texto, escrito por Bruce Hossman e Jacob Ware, começa assim: “Na sua luta de décadas contra o terrorismo, os Estados Unidos têm criticado regularmente países como o Irã, o Paquistão e a Arábia Saudita por ter exportado ideologias extremistas e violências. Ironicamente, hoje os Estados Unidos são acusados de fazer o mesmo. A disseminação de teorias da conspiração estadunidenses, de crenças na superioridade racial, de extremismo antigovernamental e outras manifestações de ódio e intolerância tornou-se um problema tão grande que alguns dos aliados mais próximos dos Estados Unidos - a Austrália, o Canadá e o Reino Unido - designaram grupos e cidadãos estadunidenses como terroristas estrangeiros”.
Os autores não se debruçam imediatamente nos grupos estadunidenses a que estamos nos referindo, mas informam-nos que, apesar da desatenção da maioria, em outubro de 2022, foi realizado um atentado contra um ponto de encontro gay em Bratislava: causou duas mortes e foi reivindicado pelo autor em inglês, antes da sua concretização, com base em ideias racistas, antissemitas e homofóbicas.
O autor acrescentou que se sentiu inspirado pela ação do terrorismo supremacista branco realizada, no mesmo ano, em um supermercado da comunidade negra de Buffalo, Nova York. Essa ação tornou-se central na história do ódio supremacista estadunidense e a encontramos repetidamente em todas as histórias semelhantes de terrorismo nos EUA.
Trata-se de uma impressionante cadeia de eventos, que parte da teoria da "grande substituição" à qual outro gigante da informação estadunidense, a Public National Radio (PNR), uma rede de centenas de rádios, dedicou um estudo – provavelmente o mais qualificado e confiável do mundo – junto com a mais conhecida, para nós, BBC. O texto referido foi publicado em 2022, logo após o massacre de Buffalo, que as autoridades estadunidenses definiram como motivado por racismo. Quem o cometeu escreveu um texto de 180 páginas, todas ligadas à teoria da conspiração da “grande substituição”, obviamente étnica.
Essa teoria afirma que indivíduos não brancos se infiltraram, graças a legislações complacentes, nos Estados Unidos e noutros países ocidentais para substituir os eleitores brancos e, assim, implementar uma agenda política. Efetivamente, Paton Gendron, o jovem de dezoito anos acusado do massacre de Buffalo – 10 mortos e 3 feridos – argumentou que o declínio na taxa de reprodução da população branca é equivalente a um genocídio.
De acordo com uma reconstrução precisa da Liga Antidifamação, a teoria da “grande substituição” foi elaborada no início do século XX, mas foi o intelectual francês Renaud Camus quem a relançou com força no contexto atual, com o livro “A Grande Substituição”, justamente, de 2011.
Para a Liga Antidifamação no cerne dessa teoria da conspiração está o antissemitismo, acreditando em muitos estudos que judeus e liberais estariam na origem do projeto de substituição étnica. O Southern Poverty Law Center identifica o slogan cunhado por David Lane, fundador do grupo supremacista The Order: “Devemos garantir a existência do nosso povo e o futuro dos nossos filhos brancos”.
Interessante notar, como destaca o estudo da National Public Radio, confirmando o afirmado pela Liga Antidifamação, que durante a manifestação organizada na Universidade da Virgínia, em Charlottesville, em 2017, os participantes gritavam o slogan “Os judeus não nos substituirão”. Naquela ocasião, Donald Trump afirmou que havia “boas pessoas em ambos os lados da barricada”.
Estamos falando de franjas extremas e fanáticas, desprovidas de peso? O juiz de Nova York Jerrold Nadler não pensa assim, dado que falou de uma “crise urgente no nosso país”, citando estatísticas alarmantes: nove pessoas mortas numa igreja da Carolina do Sul em 2015, 11 numa sinagoga da Pensilvânia em 2018, 50 em um ataque a uma mesquita na Nova Zelândia em 2019.
A questão é que esses grupos estão prontos a utilizar todos os meios para acelerar a crise social, para produzir uma autêntica ruptura, convictos de que devem conseguir isso antes que seja tarde demais. Para o Foreign Affairs trata-se de “fomentar a violência cataclísmica e assim conquistar o poder”.
James Mason foi o primeiro a falar sobre o tema em sua newsletter Siege e a essa visão em 2015 se juntou Dylan Roof, o responsável pelo citado massacre de Charleston, na Carolina do Sul. O mesmo certamente pode ser dito de John Earnest, responsável pelo atentado à sinagoga de Poway, Califórnia, em abril de 2019, que escreveu: “se essa revolução não acontecer imediatamente, não teremos os números para vencê-la amanhã”.
É impossível não prosseguir com a história atual, inquietante, do movimento Boogaloo, protagonista dos eventos de 6 de janeiro de 2021: aquele ataque ao Congresso estadunidense para impedir a ratificação da vitória de Joe Biden que, vista de um ponto de vista aceleracionista, parece uma evidente tentativa de golpe.
Presente ou, para alguns, infiltrado, também no campo oposto extremo de Black Lives Matter – Boogaloo merece ser estudado em profundidade. Uma das melhores tentativas nesse sentido foi feita pelo portal Geopolitica que, além disso, escreveu: “Com mais de 20 anos de ‘renascimento’ do terrorismo de matriz jihadista, não faltaram exemplos em que se inspirar para o desenvolvimento de um movimento abertamente hostil às instituições e extremista. Em mais de uma década de existência, o movimento Boogaloo adquiriu rapidamente alguns traços típicos das organizações terroristas em termos de técnicas de comunicação e afiliação dentro do mundo digital. Outro elemento comum e ligado ao aspecto anterior é a forte descentralização e a dificuldade em identificar um núcleo propriamente dito de comando do movimento. Os membros, de fato, através de uma espécie de organização autônoma e estruturada por meio de redes digitais, criam verdadeiras células “locais” em condições de operar fora de qualquer esquema de comando verticalizado.
Esses grupos locais apresentam-se como um caleidoscópio de posições diferentes e muitas vezes afins aos outros grupos com os quais a célula deve coexistir: um exemplo é o caso dos Wolverine Watchmen, o grupo que planejou o sequestro da governadora do Michigan, Gretchen Whitmer. O grupo havia estruturado um vínculo de filiação com o movimento Boogaloo local, com uma rede de campos de treinamento e verdadeiros polígonos de explosivos, elemento que remete claramente ao que vem sendo feito há décadas pela Al Qaeda e, posteriormente, pelo Daesh.
A última característica digna de nota nessa análise talvez seja a mais simbólica de todas: os membros do movimento que foram objeto de procedimentos de “aplicação da lei” ou de (reais ou alegadas) brutalidade por parte das forças de segurança foram definidos como “mártires” na história do movimento. Uma característica que certamente não pode passar despercebida quando comparada com o que afirmou a galáxia jihadista a respeito dos seus caídos, definidos justamente como mártires”.
Assim – depois dos acontecimentos no Capitólio terem claramente inspirado os golpistas pró-Bolsonaro no Brasil – o especialista estadunidense em terrorismo, Matthew Levitt, tornou-se uma referência para muitos, tendo afirmado: “Tornamo-nos exportadores de extremismo de direita, prejudicando a nossa melhor arma que garantia a nossa posição internacional: o nosso exemplo".
A teoria da “Grande substituição” também foi citada com autoridade por muitos em Itália: não pode deixar ser vinculada a um mal-estar que se originou nos EUA, mas que agora se espalha por todo o Ocidente.
A religião em tudo isso não pode ser marginal. É impressionante, e não pouco, reler o que o padre Antonio Spadaro e Marcelo Figueroa escreveram na La Civiltà Cattolica já em 2017 no ensaio Fundamentalismo evangélico e integralismo católico, unidos no que não por acaso foi universalmente definido como ecumenismo do ódio: “O Pastor Rousas John Rushdoony (1916-2001) é o pai do chamado reconstrucionismo cristão (ou teologia dominionista), que grande impacto teve na visão teopolítica do fundamentalismo cristão. É a doutrina que alimenta organizações e redes políticos como o Council for National Policy e o pensamento de seus expoentes como Steve Bannon, atual estrategista-chefe da Casa Branca e defensor de uma geopolítica apocalíptica. A primeira coisa que devemos fazer é dar voz às nossas Igrejas, dizem alguns.
O verdadeiro significado desse tipo de expressões é que se espera a possibilidade de influir nas esferas política, parlamentar, jurídica e educacional, para submeter as normas públicas à moral religiosa. A doutrina de Rushdoony, de fato, promove a necessidade teocrática de submeter o Estado à Bíblia, com uma lógica não diferente daquela que inspira o fundamentalismo islâmico. Em última análise, a narrativa do terror que alimenta o imaginário dos jihadistas e dos novos cruzados alimenta-se de fontes não muito distantes entre si. Não se deve esquecer que a teopolítica propagandeada pelo Isis baseia-se no mesmo culto de um apocalipse a ser acelerado o quanto antes possível. E por isso não é coincidência que George W. Bush tenha sido reconhecido como um grande cruzado justamente por Osama bin Laden".
As conexões com o que foi exposto acima são evidentes. Hoje podemos perceber melhor o perigo, talvez lamentando não o ter compreendido totalmente a tempo. Não é por acaso que pouco depois, os mesmos autores, acrescentavam: “A perspectiva mais perigosa desse estranho ecumenismo pode ser atribuída à sua visão xenófoba e islamofóbica, que invoca muros e deportações purificadoras. A palavra ecumenismo traduz-se assim num paradoxo, em ecumenismo do ódio. A intolerância é uma marca celestial de purismo, o reducionismo é metodologia exegética e o ultraliteralismo é a sua chave hermenêutica".
O perigo enfrentado pelos Estados Unidos é evidente, mas a questão surge agora também na Europa e entender o quanto isso possa afetar o futuro das nossas democracias é o verdadeiro ponto em questão.
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Extremismo estadunidense. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU