24 Janeiro 2023
"Estou muito perplexo com o boato - nem confirmado nem desmentido pela Casa Branca - de conversas secretas em andamento entre o enviado da Casa Branca para o Irã e o embaixador iraniano nas Nações Unidas. O motivo da preocupação não é tanto específico quanto generalizado, no entrelaçamento da geopolítica e do uso das religiões", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 20-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Olhando para cada pertença de fé, percebe-se em todos os lugares impulsos mais ou menos fortes em direção ao integralismo, uma tendência à qual a teocracia iraniana certamente pertence. Em muitos eventos decisivos e inquietantes no Oriente Médio, Ásia Central, subcontinente indiano, América do Norte e do Sul, Europa Oriental - particularmente no que alguns russos definem como mundo russo -, pode-se observar a efervescência de fundamentalismos religiosos que visam determinar as escolhas políticas: os resultados podem variar de acordo com a permeabilidade dos sistemas de governo, mas a tendência me parece evidente.
Uma interpretação muito eficaz é oferecida pelo professor Massimo Borghesi em seu livro Il dissidio cattolico, no qual escreveu: "O 11 de setembro é o evento que marca um divisor de águas entre o antes e o depois, representa a crise da era da globalização que se afirma após a queda do comunismo, inaugura o mundo maniqueísta em que o Ocidente luta contra o eixo do mal, e abre a era da geopolítica, fundada no contraste entre amigo e inimigo. […] No novo clima de confronto, o vínculo entre a religião e o Ocidente beligerante torna-se poderoso, coercitivo”. Teria então Bin Laden vencido, conquistado os corações dos filhos do novo milênio?
A análise de Borghesi limita-se ao desacordo católico, mas também pode ser considerada fundamentada para outras expressões religiosas. Em todos os outros lugares, as religiões assumem, justamente, bandeiras ideológicas. E quanto mais universais forem as pertenças de fé, maior se manifesta um impulso apocalíptico e destrutivo. Fácil pensar no Islã, mas não só.
No Ocidente, o desaparecimento do velho inimigo - o comunismo - teria gerado a necessidade de um novo inimigo, que se tornou o Islã anos atrás. Enquanto no Oriente, a crise da ordem mundial sofrida por muitos devido ao bipolarismo criou a esperança do assalto final à hegemonia ocidental. Aqui estão as "crenças" dos líderes que conhecemos: Putin, Erdogan, Bolsonaro, Trump, Narendra Modi. Diferente, mas não muito distante, é o discurso identitário, antirreligioso, levado adiante pelo outro grande player mundial: Xi com a China.
A onda religiosa fundamentalista está, de fato, revirando a fraternidade pregada por Francisco? A fraternidade não vive de identitarismo mas de pluralismo. Francisco é uma autoridade moral vista como desagradável por todos eles. Mas apreciada - em muitas casas religiosas mundiais - onde não se quer travar uma guerra com o resto do mundo.
Não é por acaso que, já em 1998, em seu comentário sobre a viagem do Papa João Paulo II a Cuba, o cardeal Jorge Mario Bergoglio escrevia sobre “o pluralismo como reflexo da imensidão de Deus”. No capítulo daquele texto lemos: “Somos todos filhos de Deus, criados por ele à sua imagem e semelhança. Portanto, cada um de nós guarda uma parte de sua grandeza; mas somente na reunificação das ricas diversidades do homem essa grandeza pode ser expressa”.
Escrevendo como cardeal da Santa Igreja Romana, Bergoglio já vislumbrava a reunificação como característica da Igreja – uma Igreja que já então sonhava ser inteiramente sinodal – e pensava no diálogo das religiões. Não surpreende que, como papa, ele tenha proposto ou reproposto a fraternidade universal. Claro: não foi o único nem mesmo o primeiro. Mas ele conseguiu fazê-lo em termos muito claros no Documento conjunto sobre fraternidade que ele assinou com o imã de al-Azhar.
Nele se lê: “A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem donde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o fato de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam”.
O fundamentalista, por outro lado, fora de sua "verdadeira fé" vê apenas falsas crenças e, portanto, uma falsa humanidade. O fundamentalista não reconhece o direito à diversidade: seu sonho é um mundo monocromático, o oposto do mundo segundo Francisco.
E, no entanto, o primeiro fundamentalismo do qual deveríamos falar muito mais, a meu ver, não pertence ao campo religioso. Mas ao econômico. Quem primeiro usou a expressão "fim da história" não foi um crente ou, em todo caso, não a cunhou pelo viés teológico ou filosófico, mas como um observador "distanciado" do mundo e de seu desenvolvimento econômico: a esse mundo – feito de economia de mercado – referia-se Francis Fukuyama.
Até mesmo a China comunista, há muito tempo, optou pela economia de mercado, aliás tendo excelente desempenho. Talvez hoje possamos dizer que Fukuyama não merecia as zombarias que recebeu, embora visse com satisfação pessoal a vitória planetária da economia de mercado transformar-se em um único sistema.
Portanto, um novo absolutismo se apresenta a todo o mundo: este - vemos - não produz fraternidade, não induz os "poderes fortes" a elaborar uma visão diferente que tempere os efeitos do mercado e as desigualdades cada vez mais enormes; no máximo, incita a reconhecer o problema em "outros que nós". Os políticos - especialmente os populistas - surfam a onda: ninguém quer ou pode mudar o sistema econômico-financeiro mundial, conhecendo sua força; prefere-se descarregar o mal-estar na necessidade de defender a superioridade ameaçada ou negada, mais que treinar ao diálogo para aprender um novo código de vida em comum. Há sempre o "nós antes dos outros" nos slogans populistas. E por isso recorre muitas vezes às religiões, teorizando e sustentando suas irredutíveis incompatibilidades.
Há anos o havia denunciado Umberto Eco: na polêmica sobre a globalização dos movimentos populistas não havia, a seu ver, nenhum desafio ao arranjo único da economia de mercado sem atenuantes: face aos evidentes mal-estares sociais “o povo é concebido como qualidade, uma entidade monolítica que expressa a vontade comum.
Como nenhuma quantidade de seres humanos pode possuir uma vontade comum, o líder pretende ser seu intérprete." Eco fala, portanto, de "populismo qualitativo", quando previa que "em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como voz do povo". Hoje entendemos isso melhor pensando nas tentativas de nacionalizar o catolicismo. Tentativas semelhantes também estão em andamento em outros lugares, é claro.
O sentimento religioso é usado para alimentar a inimizade e até o ódio: enquanto o "Deus justo" é puxado de um lado contra o outro.
Talvez o exemplo mais claro e trágico ainda o tenhamos diante de nossos olhos hoje em dia: aquele oferecido pelo Irã. Aconteceu que o representante de Khameney na cidade iraniana de Karaj, Mohammad-Mehdi Hossein Hamedani, encarregado do sermão de sexta-feira, tenha afirmado que a seca é causada pela recusa de tantas mulheres em usar o véu: aqui foi ultrapassado o chamado para viver de acordo com o critério "nós contra eles"; um sulco intransponível foi cavado entre aqueles que aderem totalmente e aqueles que não.
A peremptória afirmação de que a violação de um – aliás presumido – preceito religioso possa ter a ver com a seca coloca-se claramente no campo do absurdo! Mas o mais grave é - dessa forma - impedir que as mentes e os corações confiem na fraternidade humana universal: a única coisa certa com a qual os humanos podem contar.
Portanto, na escolha retórica ou propagandística, a meu ver, está a mensagem contida no enforcamento do ex-ministro Akbari, um reformista que chegou ao governo com Khatami. Fato obviamente gravíssimo, pois é intimidativo para toda a população, além de criminoso e hediondo do ponto de vista político. Ele diz: a convivência é impossível!
Se essa for a linha pela qual alguém pode se definir como um fiel islâmico, teríamos aqui a confirmação da total irracionalidade da fé. E talvez seja exatamente esse o resultado que alguns religiosos pretendem obter. De fato, a teocracia iraniana desafia o “pluralismo de Deus” de que falou Francisco: porque afirma explicitamente que possui a verdade de Deus e que esta deve ser aplicada literalmente.
Por outro lado, a pavorosa afirmação incute nos opositores a certeza de que aquela verdade religiosa é manifestamente falsa, porque contrária a todo bom senso, gerando sentimentos abertamente anticlericais e antirreligiosos.
A miragem de possuir a verdade – de fato - encontra-se com a fragilidade psicológica presente em todos nós, humanos, crentes e não crentes. A tentativa iraniana é decisiva para o destino do mundo: triunfando, confirmaria a todos os outros sujeitos, submetidos a fortes tensões identitárias - como a Rússia e a Turquia -, que, unindo as forças nefastas -, o sucesso pode ser alcançado: ter um inimigo, mostrando-se inflexível, pode funcionar. É por isso que as muitas vozes religiosas xiitas que - como Akbari - se opõem à deriva do regime devem ser continuamente citadas e lembradas como autenticamente pertencentes ao seu campo religioso. O problema não é o xiismo, mas seu uso.
Mas se a resposta ocidental fosse o "muro contra muro", armados uns contra os outros, voltaríamos à ilusão de "exportar a democracia com as baionetas". Mas, em vez disso, temos que nos convencer de que não há outro caminho senão aquele indicado por Francisco: perseverar na clareza para ajudar a contestação para fazer implodir a bolha identitária. Talvez este seja o único caminho da "verdadeira fé": o único que considero credível.
Aqui está a razão subjacente à profunda perplexidade sobre as prováveis conversações secretas entre o enviado da Casa Branca para o Irã e o embaixador iraniano nas Nações Unidas. Embora a política muitas vezes precise de sigilo, esta não é a clareza de que o povo iraniano precisa agora, a fim de obter do mundo o reconhecimento de seus direitos.
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Geopolítica e religiões. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU