Quando Rússia e Irã invocam a Deus para justificar suas abominações

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

16 Janeiro 2023

"Recordamos que o culto idólatra do 'espírito de sacrifício' é, não por acaso, invocado por Hitler em Mein Kampf para definir o traço mais essencial do povo ariano. A guerra contra a democracia e contra as mulheres desencadeada pela autocracia de Putin e pela teocracia iraniana aparece hoje como a última terrível guerra de religião", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 13-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Um traço comum liga a violência da agressão russa contra a Ucrânia com a que atinge o protesto de mulheres e do povo iraniano contra o regime dos aiatolás. Em ambos os casos, é evocada a imagem de Deus para justificar as abominações mais hediondas.

O patriarca da Igreja Ortodoxa Kirill e o regime teocrático de Teerã abençoam as armas que semeiam a morte em nome de Deus. É sempre impressionante ver Putin na Igreja segurando com uma mão a vela invocando seu Senhor, enquanto com a outra ordena o massacre do povo ucraniano, enviando milhares de jovens russos para o front.

A relação entre poder e religião é um traço que unifica profundamente a Rússia de Putin com o regime de Khamenei. O seu pressuposto é o oposto daquele que alimenta o espírito laico da democracia que prevê, pelo contrário, a clara distinção entre vida religiosa e vida política. O resultado é uma mistura mortal: a autocracia de Putin é tão religiosa quanto a teocracia de Khamenei é política.

Ser enforcados pelo Estado por inimizade para com Deus é uma escória atroz da Idade Média, mas não é muito diferente quando a guerra é justificada como remédio necessário para impedir a degeneração moral de um livre país democrático culpado de ter se deixado corromper pela maldade imoral do Ocidente. Mas carregar a bandeira de Deus na vida política é sempre fonte de desastre.

A Europa também deveria levar isso em consideração.

Um sentimento autenticamente religioso nunca desfralda o nome de Deus como álibi para justificar a ação política. Ainda mais quando essa ação está manchada pelo horror da guerra e da morte. No entanto, toda forma de absolutismo é, na realidade, à sua maneira, também religiosa. O culto idolátrico da personalidade do líder totalitário nos regimes ideologicamente antirreligiosos – se pense, por exemplo, na Alemanha de Hitler ou na China de Mao – substitui para todos os efeitos aquele de Deus.

Só a democracia é um sistema político que deveria excluir por princípio a idolatria ao mesmo tempo em que, mantendo separadas a vida religiosa da vida política, proíbe qualquer um de invocar Deus para participar do conflito político. De fato, ninguém numa democracia pode pretender falar em nome de Deus

Razão pela qual não deveria haver declarações de voto do púlpito de uma Igreja.

Ao contrário, nos regimes russo e iraniano, o olhar de Deus ilumina a figura do líder que massacra impiedosamente seus inimigos. Desta forma, invoca-se uma garantia última sobre o Bem da própria ação política. Uma garantia inquestionável, dogmática, inabalável, capaz de justificar até o horror. Mas, neste caso, é o homem que fabrica Deus para seu próprio uso e consumo.

Esta é a essência de toda idolatria: não é Deus quem cria o homem, mas o homem que cria o seu próprio Deus reduzido a ídolo. Não é por acaso que, entre os massacres mais graves ocorridos na história da humanidade, muitos tenham sido cometidos em nome de uma versão apenas idólatra de Deus. É o fundamento de todas as guerras religiosas. O próprio texto bíblico nos adverte sobre os riscos de uma versão fanaticamente idólatra da religião. Por isso, tanto no chamado Antigo Testamento como nos Evangelhos, a acusação dos profetas e de Jesus nunca é dirigida eletivamente aos ateus, mas aos idólatras.

De fato, a crítica da dimensão idólatra da religião constitui um dos centros fundamentais da narrativa bíblica. Na idolatria o homem se entrega à irracionalidade de um absoluto que não expressa amor, mas apenas poder. O ídolo não é o Deus da criação, mas um instrumento religioso nas mãos do homem para fortalecer seu poder. O culto idólatra de Deus é vertical e esquece o amor horizontal pelo homem. É por isso que o Deus dos aiatolás odeia as mulheres e o Deus de Kirill odeia a democracia. De fato, as mulheres e a democracia têm em comum a rejeição radical da religião idólatra.

As mulheres por nos lembrarem que nada vale mais do que a dimensão insacrificável e singular da vida humana. A democracia por ser um lembrete de que nada vale mais do que a liberdade de expressão. Os regimes autocráticos são regimes idólatras porque confiscam essa liberdade por considerá-la inimiga da Verdade e entregam a vida dos nossos filhos ao sacrifício imposto como necessário pela vontade de um Deus obscuro.

Recordamos que o culto idólatra do "espírito de sacrifício" é, não por acaso, invocado por Hitler em Mein Kampf para definir o traço mais essencial do povo ariano. A guerra contra a democracia e contra as mulheres desencadeada pela autocracia de Putin e pela teocracia iraniana aparece hoje como a última terrível guerra de religião.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Quando Rússia e Irã invocam a Deus para justificar suas abominações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU