02 Janeiro 2023
Em 3 de novembro de 2022, a bandeira da Federação Russa foi baixada da prefeitura da cidade de Kherson. Uma semana depois, as tropas russas começariam a se retirar para o outro lado do Dnipro e os ucranianos chegariam, reconquistando a cidade.
O artigo é de Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, publicado por Il Fatto Quotidiano, 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Essa bandeira baixada em antecipação talvez um dia seja lembrada como um ponto de virada histórico, marcando uma mudança de época para a Rússia. Moscou, já se pode dizer, perdeu esta guerra. Poderá desencadear tremendos contragolpes. Poderá se barricar em alguns espaços ucranianos. Mas o objetivo da "operação militar especial", lançada por Putin em 24 de fevereiro de 2022, falhou. A longa fila de caminhões filmados enquanto se dirigiam ameaçadoramente para Kiev se dissolveu. A capital ucraniana não foi conquistada. O presidente Zelensky não foi capturado. A Ucrânia não caiu. Kharkiv e Odessa não foram tomadas. Pelo contrário, as tropas ucranianas passaram para a ofensiva e conseguiram libertar territórios que os russos haviam conquistado com muito esforço.
Um primeiro dado devastador para o status da Rússia de Putin é que (com exceções representadas por batalhões russos individuais, por milícias chechenas, por mercenários do grupo Wagner) os soldados ucranianos no terreno provam ser superiores aos russos como força de combate. Pode-se dizer que o exército ucraniano sem o fluxo contínuo de armas, financiamento e ajuda de todos os tipos ocidentais, sem o treinamento fornecido por instrutores ocidentais, sem o apoio sistemático da inteligência ocidental e sem uma série de sofisticados equipamentos disponibilizados pelo Ocidente (para não mencionar as sanções que afetam o tecido econômico russo) nada poderia alcançar. Isso é verdade. Mas em tal caso as conclusões são ainda mais claras: significa que a Rússia diante da OTAN – deixando de lado o recurso apocalíptico às armas nucleares – se encontra em uma posição de inferioridade.
Mapa Império Russo | Foto: Wikimedia Commons
Se olharmos para a guerra em curso, não parando apenas nas notícias, esse parece ser o balanço geopolítico mais amplo. A história conhece essas cesuras. Durante dois séculos, entre os séculos XVIII e XIX, o Império Russo integrou firmemente o “concerto das potências” europeias, expandindo-se continuamente. Então, no início do século XX, o Império Russo entrou em colisão com o Japão no Extremo Oriente. Moscou está convencida da vitória e, em vez disso, enfrenta uma derrota. Perdeu em 1904 a batalha de Port Arthur. Perdeu em 1905 na batalha naval de Tsushima. Uma canção arrasadora, “Nas colinas da Manchuria", ainda hoje testemunha a perplexidade por uma derrota inesperada. É o começo do fim do que a Rússia em termos de poder havia representado desde o advento de Pedro, o Grande. Quinze anos de turbulência se seguiriam. A revolução de 1905, a Primeira Guerra Mundial com o desempenho decepcionante dos exércitos czaristas, a revolução bolchevique de outubro de 1917, a guerra civil entre "vermelhos" e "brancos".
A partir daí, inicia-se lentamente o caminho da reconstrução rumo ao status de grande potência culminando com a tomada de Berlim em 1945 e com a fabricação da arma atômica: Moscou se torna uma superpotência nuclear. (E, quanto à bomba H, ainda é.) Essa aura de grande potência sobreviveu à queda da URSS e marcou a era pós-soviética, apesar do eclipse da temporada de Yeltsin. De fato, o pacto social da era Putin consistia exatamente nisto: em troca da centralização autocrática, o líder garantia à sociedade a recuperação do status e da influência russa no mundo.
Mapa União Soviética | Foto: Wikimedia Commons
No entanto, é precisamente esse "prestígio" que resulta seriamente abalado pela guerra em curso. Além disso, o conflito trouxe à tona uma espécie de esfacelamento do tecido da sociedade pós-soviética russa. Um fenômeno de desagregação que envolve os poderes fortes, mas também partes da sociedade civil. Os serviços secretos que se equivocam sobre todas as previsões sobre o clima social na Ucrânia e sobre as defesas do governo de Kiev e que nos territórios ocupados são incapazes de salvar os funcionários pró-russos de atentados mortais.
Desafiando os herdeiros da temida Kgb, a mão ucraniana consegue atingir nas proximidades de Moscou a filha do ideólogo ultranacionalista russo Dugin. Moscou sofre a devastadora audácia de Kiev. Pontes derrubadas. Oleodutos sabotados. Drones ucranianos avançando por centenas e centenas de quilômetros em território russo, chegando até Engels, a base dos bombardeiros nucleares.
A lista não terminou. A pobreza tática dos comandantes militares. E a barbárie daqueles soldados que se entregam a crimes e violências. E a miséria humana daqueles batalhões que na primeira fase se lançavam ao saque, açambarcando eletrodomésticos e televisões para mandar para casa. São fenômenos que vão além do perímetro dos eventos militares no campo e tocam a substância profunda do estado russo hoje.
Desse tipo de derrota, faz parte o evidente descontentamento que as gerações mais jovens, especialmente as urbanas, sentem em relação à guerra na Ucrânia e à perspectiva de um chamado às armas. A fuga em massa para a Geórgia, Azerbaijão, Cazaquistão, Finlândia e Turquia de centenas de milhares de pessoas, assim que a mobilização parcial foi anunciada no outono russo, atesta o distanciamento de uma parte significativa da classe média do estado.
O Papa Francisco se mostrou profético quando, no dia seguinte à invasão da Ucrânia, correu à embaixada russa na Santa Sé para exortar Putin a não seguir o caminho da catástrofe.
Com esta guerra termina a fase pós-soviética da Rússia. O futuro ainda está para ser escrito. A única coisa que não tem serventia é a sede de vingança presente em certos círculos bálticos e poloneses – e compreensivelmente em grande parte da população ucraniana – porque a paz autêntica não pode ser construída sobre essas bases. E em perspectiva, como lembram Kissinger e Merkel, a Rússia pós-bélica deveria estar ancorada na Europa.
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O ocaso da Rússia pós-soviética com a guerra na Ucrânia: o Papa Francisco foi profético. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU