Francisco no Bahrein: por uma reconciliação dos islamismos. Artigo de Riccardo Cristiano

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08 Novembro 2022

"Eu – e não estou sozinho - acho que al Tayyeb não fez esse discurso extraordinário por reverência ao seu amigo Francisco com quem assinou o Documento conjunto sobre a fraternidade em 2019. No entanto, acredito que a relação pessoal o tenha tocado profundamente por ter encontrado um interlocutor que, apresentando-lhe um rosto não docente, não propenso a humilhações ou lembranças coloniais, lhe permitiu tirar de si mesmo - ou do alto - o melhor para o bem de todos".

O artigo é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado por Settimana News, 07-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Papa Francisco voltou de sua viagem ao Bahrein: um arquipélago de ilhas no Golfo Pérsico - próximo à costa saudita -, esse antigo emirado árabe, agora uma monarquia, depende de tudo e para tudo da Arábia Saudita, da qual é fiel aliado.

Então, a primeira pergunta que precisa ser feita é muito simples: essa viagem teria sido possível se a coroa saudita não quisesse? A resposta é obviamente não.

Outra pergunta: talvez isso confirme que Riad está mudando, ou seja, que o reino saudita está se distanciando do puritanismo retrógrado e fundamentalista da seita wahhabita com a qual se aliou para conquistar o poder? E novamente: para onde?

Várias hipóteses podem ser feitas: talvez esteja ocorrendo um maquiavélico reformismo vindo de cima, ou o reino esteja evoluindo para um dirigismo verticalista com aparências um pouco mais abertas, ou seja, um modelo capitalista de tipo “chinês” está se afirmando na Arábia, por explicar melhor. Difícil de dizer. Mas há pelo menos uma novidade.

Para ter uma ideia menos aproximada - como costuma acontecer comigo desde que a Covid me impediu de voltar a Beirute -, liguei para meus amigos mais próximos, especialistas em Oriente, começando pelo professor Antoine Courban da Saint Joseph University. Suas opiniões me ajudaram.

O que Francisco permitiu

O ponto mais evidente - detectado durante a visita de Francisco àquelas paragens - é identificar-se no que disse e sobretudo no que teve possibilidade dizer no contexto a que recém me referi o Presidente do Conselho de Sábios do Islã, grande Imã da mais prestigiosa universidade islâmica sunita, Ahmad Tayyeb, em meio da tormenta que opõe às três grandes correntes islâmicas.

São conhecidas: a corrente liderada pelos sauditas, guardiões dos lugares sagrados de Meca e Medina, aquela liderada pelos teocratas khomeinistas que tomaram posse do Irã e das milícias que controlam o xiismo nos países árabes e a corrente do islamismo político liderada pela Irmandade Muçulmana, hoje sob a liderança turca de Erdogan.

Os sauditas parecem hoje ansiosos por manter o seu papel de "guardiões dos lugares sagrados do Islão", membros da família real estreitamente ligados ao seu país e aos seus interesses econômicos e financeiros, que, ao mesmo tempo, pretendem falar em nome do todo o Islã.

No extremo oposto está Erdogan, que constitui o desafio interno ao mundo islâmico sunita: ele interpreta a Irmandade Muçulmana como projeto neocalifal na raiz do panturquismo que de Istambul alcança - segundo sua geografia - as fronteiras da China em uma visão imperial que se assemelha muito ao russkil mir moscovita: panturca a primeira, pan-eslava a segunda, mas unida no olhar eurasiano lançado sobre o mundo inteiro.

No terceiro polo está o khomeinismo xiita com um projeto, ainda imperial, mas obviamente desenhado de maneira muito diferente, como uma reedição do império persa: desde o Mediterrâneo, unindo o coração do Islã sob sua teocracia, de Teerã a Beirute, passando por Bagdá e Damasco.

Neste contexto de embate existencial - desde o "fim dos tempos" - é impressionante onde o fórum de diálogo entre Oriente e Ocidente tenha podido encontrar a sua sede: isto é, no país mais complexo e variegado social e culturalmente da Península Arábica - o Bahrein, onde existem, desde tempos imemoriais, várias igrejas e sinagogas ao lado das mesquitas. Em seu tempo, o cristianismo era florescente lá também.

Em um Bahrein composto e multicultural, o Papa Francisco ofereceu sua visão fraterna, inteiramente em sintonia com a história antiga, a natureza e a dimensão social do lugar. Respondeu à opulência autoritária imposta pela história mais recente com uma sintonia imediata com a tradição local: chegou ao palácio real com sua 500 branca, sem ornamentos, sem sinais de poder triunfalista, deliberadamente despotencializado de todo esplendor colonial. Chegando e colocando-se desta forma - evidentemente bem preparado - criou as premissas para um fato excepcional.

Ahmad al Tayyeb: um discurso memorável

Logo após a chegada de Francisco, o Imã Ahmad al Tayyeb pôde assim proferir um discurso sem precedentes entre os islamismos uns contra os outros literalmente armados, mesmo diante de seus “inimigos inadmissíveis” da Irmandade Muçulmana. Al Tayyeb disse palavras que - para colocar um termo de comparação - podem ter o peso daquelas proferidas pelo Concílio Vaticano II no contexto católico ocidental moderno.

Releio aqui as suas conclusões, que me surpreendem:

“Louvo o título deste importante fórum de diálogo entre Oriente e Ocidente e o seu significado para a coexistência humana. No entanto, reconheço as condições difíceis que o nosso mundo moderno enfrenta e as ameaças à existência humana e à estabilidade das nações. Devido ao meu reconhecimento e apreço, como ser humano, pela gravidade dessas crises complexas, peço em primeiro lugar aos estudiosos e pensadores religiosos que se empenhem mais na educação dos jovens sobre esses fatos indiscutíveis da afinidade religiosa. 

Eles deveriam ser adaptados em programas acadêmicos modernos para ensinar e convencer os jovens de que, aos olhos da filosofia religiosa, há espaço na vida para pessoas de diferentes credos, raças, cores e línguas, e que a diversidade cultural enriquece a civilização e estabelece a paz que está faltando.

Convido também meus irmãos, estudiosos muçulmanos de todo o mundo, de todas as doutrinas, seitas e escolas de pensamento, a manter um diálogo islâmico, um diálogo sobre a unidade, a coesão e a reaproximação, um diálogo pela fraternidade islâmica, desprovido de divisões, discórdias e, sobretudo, de lutas sectárias.

É preciso concentre-se nos pontos em comum e pontos de encontro, com uma compreensão das diferenças. Vamos expulsar juntos todo discurso de ódio, provocação e excomunhão e deixar de lado o conflito antigo e moderno em todas as suas formas e com todos os seus desdobramentos negativos. Com um coração amoroso por todos, dirijo este apelo especial aos nossos irmãos muçulmanos xiitas.

Reitero que os outros estudiosos de al Azhar e do Conselho Muçulmano dos Anciãos e eu estamos prontos para realizar um encontro semelhante com coração aberto e mãos estendidas, para que possamos sentar juntos em uma única mesa redonda para deixar de lado nossas diferenças e fortalecer a nossa unidade islâmica sobre posições notoriamente pragmáticas e a serviço dos objetivos do Islã e da sua lei, que proíbe os muçulmanos de ceder aos apelos à divisão e à fragmentação.

Devemos nos proteger contra cair na armadilha de comprometer a estabilidade das pátrias e explorar a religião para alimentar o fogo dos sentimentos nacionalistas e ideológicos […]. Nesta importante ocasião para acolher o diálogo entre Oriente e Ocidente em prol da convivência humana, associo-me a todos aqueles que buscam a paz e o bem. Apelo também ao fim da guerra russo-ucraniana, para poupar a vida dos inocentes que não estão envolvidos nesta tragédia violenta. Peço para içar a bandeira da paz, não da vitória, e sentar-se à mesa do diálogo e da negociação”.

Francisco e al Tayyeb: exercícios de fraternidade

Eu – e não estou sozinho - acho que al Tayyeb não fez esse discurso extraordinário por reverência ao seu amigo Francisco com quem assinou o Documento conjunto sobre a fraternidade em 2019. No entanto, acredito que a relação pessoal o tenha tocado profundamente por ter encontrado um interlocutor que, apresentando-lhe um rosto não docente, não propenso a humilhações ou lembranças coloniais, lhe permitiu tirar de si mesmo - ou do alto - o melhor para o bem de todos.

Mas com que xiismo, realisticamente, o Imã al-Tayyeb pode propor-se ao diálogo? O grupo culturalmente mais relevante em nível mundial e realmente capaz de dar um impulso é a escola de Najaf, que é a casa mãe da ortodoxia xiita liderada pelo aiatolá al-Sistani, aquele que nunca baixou a cabeça diante da heresia teocrática de Khomeini.

Um encontro privado entre al-Tayyeb e al-Sistani - almejado e talvez propiciado por Francisco - já havia sido previsto. Depois foi atualizado. Será feito em breve? Será apenas um encontro privado ou muito mais? A voz de al-Tayyeb não disse.

Ele disse - e isso é muito! - que o Islã precisa se pacificar, precisa de janelas para olhar o mundo e voltar a se relacionar com o mundo, através de um olhar crente: sim, porque al-Tayyeb estava lá - como Francisco - unicamente como líder religioso, ou melhor, espiritual, não intimamente ligado à política. Pelo menos assim eu considero. Francisco abriu a porta. Al-Tayyeb entrou para olhar para frente, juntos.

Uma nova visão do Ocidente no Oriente

Basta isso para dizer que, de alguma forma, o espírito do Concílio desembarcou nas margens do Golfo? Vamos ler outra frase do Imã: "Talvez seja correto dizer que o Ocidente precisa da sabedoria do Oriente, das suas religiões e dos valores morais sobre os quais seu povo foi criado, bem como de sua visão equilibrada do homem, do universo e do nosso Criador. Precisa da espiritualidade do Oriente e de sua profunda meditação sobre a realidade, para não ser mais cegado pela colocação do efêmero antes do eterno. É verdade que "nem tudo que reluz é ouro", como diz o velho ditado. O Ocidente precisa dos mercados orientais e de sua força de trabalho para suas fábricas na África, Ásia e outros lugares. Precisa também das matérias-primas encontradas que se encontram nas profundezas desses dois continentes, sem as quais o Ocidente não pode produzir nada. Não é justo nem correto recompensar a benevolência com pobreza, ignorância e doenças.

O mesmo pode ser dito para o Oriente, que deve adotar a tecnologia ocidental e usá-la para seu desenvolvimento tecnológico e econômico, além de importar produtos industriais, médicos, de defesa e outros dos mercados ocidentais.

Os orientais precisam de uma nova visão do Ocidente, cheia de equidade e caridade. Também precisam de uma compreensão tolerante dos modos civis do Ocidente e dos costumes ocidentais, interpretando-os através da lente das circunstâncias particulares, dos desenvolvimentos e das respostas que o Ocidente pagou caro por muitos séculos".

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