Israel-Palestina. A atmosfera é de absoluta desesperança. Entrevista especial com Luciana Garcia de Oliveira

O conflito entre Israel e a Palestina “precisa ser compreendido no plural, pois não há um conflito e, sim, conflitos”, diz a pesquisadora

Foto: Unsplash

Por: João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin | 01 Novembro 2023

“Os confrontos das últimas semanas na Faixa de Gaza traduzem uma atmosfera de absoluta desesperança entre parte expressiva da população israelense, frequentemente confundida com o seu governo de extrema-direita nacionalista, representada por Benjamin Netanyahu, e, principalmente, entre a população palestina, cada vez mais isolada, oprimida e refugiada”, diz Luciana Garcia de Oliveira ao comentar o conflito em curso que, segundo ela, é altamente complexo.

Apesar de os povos serem apresentados como rivais, comenta, “as sociedades palestina e israelense são plurais e heterogêneas” e o conflito é assimétrico. “Se no lado palestino existe um governo fundamentalista que, conforme exposto, se recusa a reconhecer o Estado de Israel e que se fortaleceu ao longo da história, por outro lado, desde os fracassos de Oslo, mediado pelos Estados Unidos, persiste, no lado israelense, um governo de extrema-direita que também se recusa sistematicamente a reconhecer o Estado palestino, ao promover o acirramento da ocupação militar e territorial, através da construção acelerada de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, que geram graves violações aos direitos humanos da população palestina nesses espaços”, contextualiza.

Na avaliação dela, entre as tentativas de intermediação pela paz, a participação do Qatar pode ser fundamental. “Este país mantém relações com o Hamas e, ao mesmo tempo, com o governo de Israel e Estados Unidos. O Qatar, inclusive, nos últimos dias, vem tentando negociar com o Hamas a libertação de alguns reféns israelenses mantidos na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro. Contudo, há uma preocupação crescente de que a situação da guerra extrapole o âmbito de Israel e de Gaza e avance para uma guerra regional, envolvendo outros atores como o Hezbollah, no sul do Líbano e o Irã”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Luciana Garcia de Oliveira reflete sobre as saídas para o conflito. Uma delas, menciona, “seria o estabelecimento de um Estado palestino em fronteiras seguras e reconhecidas pelo Direito Internacional. Para tanto, é fundamental uma enorme vontade política para desmantelar os assentamentos construídos nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, além de um gradual desbloqueio da Faixa de Gaza”.

Luciana Garcia de Oliveira. (Foto: Arquivo pessoal)

Luciana Garcia de Oliveira é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP). É uma das responsáveis pela tradução de Escritos judaicos, de Hannah Arendt. É também pesquisadora associada do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo (CEJ-USP).

Confira a entrevista.

IHU – Como a senhora classifica os confrontos das últimas semanas na Faixa de Gaza?

Luciana Garcia de Oliveira – Os confrontos das últimas semanas na Faixa de Gaza traduzem uma atmosfera de absoluta desesperança entre parte expressiva da população israelense, frequentemente confundida com o seu governo de extrema-direita nacionalista, representada por Benjamin Netanyahu, e, principalmente, entre a população palestina, cada vez mais isolada, oprimida e refugiada.

Desde o início do conflito Israel-Palestina (1948), o território palestino vem diminuindo drasticamente de tamanho. Em 2010, a Autoridade Palestina realizou um requerimento na Organização das Nações Unidas (ONU) para a proclamação do Estado da Palestina nas fronteiras anteriores à guerra de 1967. Na ocasião, o Brasil foi o primeiro país na América Latina a reconhecer o Estado da Palestina. E isso gerou uma reação em cadeia na América Latina. Depois do reconhecimento brasileiro, Argentina, Bolívia, Equador e Uruguai reconheceram o Estado da Palestina nas fronteiras de 1967.

Mapa da Agência Brasil mostra o avanço de Israel sobre os territórios da Palestina.

A pressão internacional, contudo, não surtiu efeito e, desde então, o número de assentamentos nos territórios da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental vem aumentando vertiginosamente, impedindo a viabilidade de um Estado palestino. Por conta da falta de espaço geográfico, a Palestina foi, inclusive, excluída do Google Maps. Junto a isso, a população palestina de Gaza vive sob um bloqueio brutal desde meados de 2006. O bloqueio imposto pelo governo de Israel, além de gerar uma crise econômica e humanitária sem precedente, ajudou a fortalecer o grupo Hamas na região. Este grupo oprime sistematicamente a população palestina de Gaza e, ao mesmo tempo, ameaça o Estado de Israel com violência. Esses confrontos também enfraquecem muitas organizações mistas, de encontros e diálogos, entre israelenses e palestinos, existentes nos territórios da Cisjordânia e em Israel.

IHU – Tanto a ofensiva de Israel quanto o próprio ataque do Hamas podem ser classificados como terrorismo? Por quê?

Luciana Garcia de Oliveira – No dia 7 de outubro, o Hamas perpetrou um ataque terrorista contra a população civil israelense indefesa. A maior parte das vítimas desses ataques foram os jovens, que estavam em uma rave, mulheres, crianças e idosos. Foram poucos soldados mortos. O Hamas comete atentados terroristas desde a década de 1990. Contudo, no período da segunda Intifada, conhecida com Intifada Al-Aqsa (2000-2003), os ataques suicidas do Hamas chamaram a atenção da imprensa internacional, pois atingiram milhares de civis israelenses. Além disso, o Hamas nunca reconheceu o Estado de Israel e, por isso, parte do mundo ocidental não o reconhece como governo ou ator estatal.

No caso de Israel, a situação é distinta. Israel é um Estado reconhecido por praticamente todos os países do mundo. Por isso, não podemos classificá-lo como um “Estado terrorista”, mas um Estado que, atualmente, está praticando terrorismo, na forma de punição coletiva, contra a população civil de Gaza sob o pretexto de “extinguir o Hamas”. A maior parte das vítimas palestinas, até o momento, são crianças, mulheres e idosos, pessoas sem qualquer conexão com o grupo Hamas.

IHU – O que é fundamental para que compreendamos o conflito entre Israel e a Palestina?

Luciana Garcia de Oliveira – O conflito Israel-Palestina é altamente complexo porque as sociedades palestina e israelense são plurais e heterogêneas. A maior parte dos ativistas/militantes não consegue compreender isso, porque, naturalmente, apoia um dos lados do conflito. Contudo, apesar da complexidade, é um conflito assimétrico. Por um lado, existe o Estado de Israel, um Estado reconhecido internacionalmente, referência na área de defesa e de tecnologia de segurança; e, no outro, a população palestina empobrecida, por conta do avanço da ocupação territorial e militar. Uma parte da população palestina vive em territórios segregados, na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Israel. Outra parte vive nos campos de refugiados nos países árabes vizinhos e na diáspora.

Israel possui uma sociedade multicultural e polarizada. Uma parte dela, formada por uma elite e por ultraortodoxos, que apoia o atual governo; e outra parte, de oposição, mais à esquerda, defensora da causa palestina, da solução de dois Estados para dois povos e da coexistência pacífica.

No lado palestino, há uma parcela da população que apoia o Fatah, partido da Autoridade Nacional Palestina, há os que apoiam o Hamas e, ainda, os que não apoiam nenhum desses dois grupos. Geralmente os apoiadores do Fatah repudiam as ações e os discursos do Hamas e preferem negociações políticas em lugar da luta armada. Os simpatizantes do Hamas, por outro lado, não reconhecem o Estado de Israel, costumam se referir a Israel como “entidade sionista”, proclamam uma Palestina do “rio Jordão ao mar Mediterrâneo” e preferem o uso da força em vez de negociações e diálogo com o “inimigo”. O Hamas e o Fatah são, até o momento presente, grupos rivais.

Por tudo isso, o conflito precisa ser compreendido no plural, pois não há um conflito e, sim, conflitos.

IHU – Como chegamos até esse ponto dos conflitos em Gaza? Que fatores levam a esta explosão de violência começada com o ataque à festa rave?

Luciana Garcia de Oliveira – O ataque do dia 7 de outubro não foi inesperado. Contudo a sua dimensão foi surpreendente. Até então, os mísseis do Hamas não tinham capacidade de longo alcance e a maior parte eram interceptados pelo sistema israelense de segurança. Entretanto, durante os confrontos de 2021, em plena pandemia de Covid-19, alguns mísseis do Hamas conseguiram atingir cidades como Tel Aviv e Jerusalém. O que denota um fortalecimento gradual no aparato do Hamas, ocasionado, provavelmente, por um aumento dos recursos enviados pelo Irã ao grupo.

Além do aumento progressivo da ocupação territorial, a intensificação dos ataques contra Israel se deve, principalmente, às incursões na mesquita de Al-Aqsa, e as agressões aos fiéis, pelo exército de Israel em 2021. A mesquita de Al-Aqsa é um local sagrado para o mundo muçulmano e não somente para os muçulmanos palestinos. É neste local que o profeta Maomé teria viajado de Meca para rezar.

Por outra parte, os ataques de 7 de outubro de 2023 não devem ser justificados, sob nenhuma hipótese.

IHU – Qual a origem do grupo Hamas? Como ele ganha força no contexto palestino?

Luciana Garcia de Oliveira – O HamasMovimento de Resistência Islâmica surgiu no fim da década de 1980, em meio à violência da primeira Intifada. Ganhou notoriedade, mais tarde, no período da segunda Intifada, nos anos 2000, com os ataques com os “homens-bomba”. A popularidade do Hamas, neste período, se deve sobretudo aos fracassos dos Acordos de Paz de Oslo (1993) assinados pelo então presidente da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, e o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin. O assassinato de Rabin, seguido pelo aumento vertiginoso da construção de assentamentos nos territórios palestinos e pelo fortalecimento da extrema-direita israelense, propiciou o aumento da popularidade do Hamas e de seus ataques em Israel. A sociedade palestina passou a se sentir mais cética em relação à viabilidade de acordos/negociações com um governo israelense cada vez mais extremista e intransigente.

Contudo, é importante ressaltar que o Hamas nunca apoiou a atuação de Arafat durante Acordos de Paz de Oslo, pois considerava os termos do acordo muito humilhantes para a causa palestina. O Hamas nunca aceitou a ideia de um Estado palestino delimitado nas fronteiras de 1967. Para o grupo, a Palestina compreende do “rio Jordão ao mar Mediterrâneo”. Além disso, o termo do acordo de “prevenir a violência” sob o lema “terra por paz” foi interpretado pelo Hamas como uma rendição palestina.

IHU – Como foi, ao longo da história, a relação do Hamas com a Autoridade Palestina e como está a relação neste momento?

Luciana Garcia de Oliveira – Assim que o Hamas venceu as eleições do Conselho Legislativo palestino em 2006, foi deflagrada uma guerra civil entre os militantes do Hamas e do Fatah, deixando dezenas de palestinos mortos. Alguns políticos do Fatah, que exerciam seus mandatos na Faixa de Gaza, foram expulsos pelo Hamas. A situação entre os dois grupos políticos é bastante conflituosa até hoje.

O controle político na Faixa de Gaza pelo Hamas acirrou a polarização entre a população palestina na Faixa de Gaza e Cisjordânia. Entretanto, as diferenças ideológicas entre os dois grupos políticos já haviam sido sinalizadas durante as assinaturas dos Acordos de Paz de Oslo, em 1993, conforme exposto.

IHU – Como era o cenário das diferenças e dos conflitos entre Israel e a Palestina ainda antes do surgimento do grupo Hamas?

Luciana Garcia de Oliveira – Após a partilha da Palestina em um Estado árabe e judeu, em 1947, irrompeu-se a guerra de Independência e a Nakba (catástrofe) palestina em 1948. Nesta ocasião, estava em ascensão no mundo árabe o movimento político-cultural pan-arabista, cujo porta-voz, o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, era um fervoroso defensor da causa árabe-palestina. A Nakba, traduzida pelos massacres, pela destruição e pelo deslocamento de cerca de 800.000 palestinos, não era considerada uma perda palestina apenas, mas uma perda árabe. Na guerra de 1967, conhecida como a guerra dos Seis Dias, os palestinos contavam com os aliados pan-arabistas, como o Egito e a Síria.

O movimento nacionalista árabe, contudo, entrou em decadência após a derrota avassaladora na guerra de 1967. Mais adiante, a morte de Nasser, em 1971, fez desaparecer o pan-arabismo e, em seu lugar, entram em cena alguns grupos de Islã político, motivados sobretudo pela Revolução no Irã em 1979. Daí em diante surgem alguns grupos como o Hezbollah, no Líbano em 1982, e o Hamas na Palestina em 1987.

As guerras no Líbano (1975-1990), o “Setembro Negro” na Jordânia (1970-1971) e os acordos de paz entre Egito e Israel (1973) comprometeram o mundo árabe, de modo que os palestinos já não poderiam mais contar com seus antigos aliados. Embora o Hamas seja apoiado pelo eixo Irã, Síria, Hezbollah, as sanções impostas ao Irã pelos Estados Unidos e por alguns países da União Europeia e a longa guerra civil da Síria (2011-2019) enfraqueceram o eixo de apoio militar ao Hamas. De um modo geral, os palestinos estão mais sozinhos quando comparados ao período de vigência do pan-arabismo.

Pior ainda, durante a guerra civil da Síria, o Hamas aliou-se ao movimento de oposição ao regime de Bashar Al Assad, e parte de sua cúpula instalou-se no Qatar, país inimigo e responsável por financiar grupos terroristas contra o governo da Síria durante o conflito.

IHU – Como o poder de potências globais do Ocidente incidiu sobre a formação e a configuração do Hamas?

Luciana Garcia de Oliveira – Assim que Hamas venceu as eleições em 2006, a primeira providência tomada pelas potências globais do Ocidente, os Estados Unidos e a União Europeia, foi a imposição de um boicote econômico ao novo governo da Faixa de Gaza. A medida foi pensada para enfraquecer o Hamas e, consequentemente, fortalecer a Autoridade Palestina, que continuava, eventualmente, a receber recursos/doações internacionais. Contudo, diferentemente do que era esperado, o boicote ocidental fortaleceu o Hamas, propiciou que o grupo se tornasse mais próximo e, portanto, mais popular entre a população palestina, sobretudo entre os mais carentes.

No início houve uma grave crise de abastecimento que foi amenizada, posteriormente, com a construção de túneis, na fronteira com o Egito, que servem para a importação e o transporte de praticamente tudo, desde alimentos até armas. Muitos túneis projetados na fronteira com Israel passaram a servir para fins militares do grupo.

IHU – Quais foram as forças que mais insuflaram o Hamas e como elas agiam?

Luciana Garcia de Oliveira – O Hamas surgiu a partir do avanço e do acirramento da ocupação territorial e militar nos territórios palestinos ocupados por Israel. Isso, por si só, já o diferencia de outros grupos terroristas como a Al Qaeda e o DAESH, de atuação transnacional. O Hamas tem um propósito religioso, de proclamar uma “Palestina Islâmica” do “rio Jordão ao Mar Mediterrâneo”, conforme seu estatuto de 1988 e suas ações armadas são direcionadas ao “inimigo israelense” ou, como eles referem, à “entidade sionista”. Apesar de parte expressiva da população palestina ser secular, o Hamas ganhou popularidade ao longo da história, com a gradual brutalização da ocupação israelense e diante dos constantes fracassos nas tentativas de negociação de paz conduzidas pelo seu rival Fatah.

Ainda, é importante frisar que, logo no início da fundação do grupo, muitos palestinos sentiam empatia pelos líderes do Hamas, pois a maioria deles vivia sob as mesmas dificuldades da maioria do povo palestino da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e dos campos de refugiados nos países árabes vizinhos. De acordo com o livro do professor de Estudos do Oriente Médio da Universidade Northwestern, do Qatar, Khaled Hroub, intitulado Hamas: um guia para iniciantes (2008), o xeique Ahmed Yassin, fundador e líder espiritual do Hamas, viveu e posteriormente foi assassinado no mesmo campo de refugiados onde sua família se estabeleceu desde a Nakba, em 1948 – diferentemente de muitos líderes do Fatah, que vivem em casas luxuosas, em Ramallah e Jerusalém, muito distantes da população empobrecida pelos prejuízos da ocupação.

IHU – Quando o Hamas venceu as eleições do Conselho Legislativo palestino, houve uma plataforma de políticas sociais e de libertação nacional. No que consistia essa plataforma? Em que medida ainda hoje ela está presente no Hamas?

Luciana Garcia de Oliveira – Logo que o Hamas venceu as eleições do Conselho Legislativo Palestino, ele passou a exercer uma plataforma religiosa e, ao mesmo tempo, nacionalista. Os palestinos que se filiaram ao Hamas têm a disposição de agir para “libertar a Palestina”, resistir à ocupação e, ao mesmo tempo, servir e difundir o Islã. Dentro das esferas do Hamas, a luta pela libertação da Palestina ocorre de maneira intrínseca ao chamado islâmico. Por isso, costumam usar as mesquitas para se reunirem na crença de que quanto mais devoto, mais propenso estará ao autossacrifício no campo de batalha. A ideologia do Hamas acredita que o Islã fortalece o ímpeto de libertação e de justiça.

Além disso, o Hamas exerce um trabalho social fundamental na Faixa de Gaza. O projeto de assistência social do Hamas oferece educação, saúde e serviços de assistência básicos, por intermédio de uma abrangente rede de caridade, como as mesquitas, os sindicatos e as escolas. A assistência diária aos palestinos mais pobres tem sido muito afetada pelo bloqueio ocidental, pois as grandes potências do Ocidente acreditam que toda ajuda humanitária em Gaza é destinada tão somente para os fins militares do Hamas.

IHU – Qual a atual situação do governo palestino? Ele tem chances de negociar a paz com Israel?

Luciana Garcia de Oliveira – Como mencionei no início, a situação dos palestinos é de completa desesperança. Após os ataques de 7 de outubro de 2023, o governo israelense vem exercendo duras punições coletivas na Faixa de Gaza, sob o pretexto de aniquilar o Hamas. E pior, apoiado pelos Estados Unidos que anunciou, nos últimas dias, uma enorme quantia de ajuda militar a Israel.

Se no lado palestino existe um governo fundamentalista que, conforme exposto, se recusa a reconhecer o Estado de Israel e que se fortaleceu ao longo da história, por outro lado, desde os fracassos de Oslo, mediados pelos Estados Unidos, persiste, no lado israelense, um governo de extrema-direita que também se recusa sistematicamente a reconhecer o Estado palestino, ao promover o acirramento da ocupação militar e territorial, através da construção acelerada de assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, que geram graves violações aos direitos humanos da população palestina nesses espaços.

Para uma futura mediação de negociação de paz, uma alternativa que me parece viável, neste momento, é o Qatar. Este país mantém relações com o Hamas e, ao mesmo tempo, com o governo de Israel e Estados Unidos. O Qatar nos últimos dias vem tentando negociar com o Hamas a libertação de alguns reféns israelenses mantidos na Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro. Contudo, há uma preocupação crescente de que a situação da guerra extrapole o âmbito de Israel e de Gaza e avance para uma guerra regional, envolvendo outros atores como o Hezbollah, no sul do Líbano, e o Irã.

IHU – Que saídas podemos ver para a atual guerra em Gaza?

Luciana Garcia de Oliveira – Uma saída ideal seria o estabelecimento de um Estado palestino em fronteiras seguras e reconhecidas pelo Direito Internacional. Para tanto, é fundamental uma enorme vontade política para desmantelar os assentamentos construídos nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, além de um gradual desbloqueio da Faixa de Gaza.

É claro que, após todo horror que estamos assistindo, os processos para uma negociação definitiva não serão fáceis e dependerão de uma série de requisitos. Será necessário, antes de tudo, uma negociação para a libertação dos reféns israelenses e para um cessar-fogo imediato, feita preferencialmente pelo Qatar e não mais pelos Estados Unidos. Após, as negociações/os diálogos idealmente deverão acontecer sob os termos de reconhecimento mútuo.

Apesar de muitos ativistas e intelectuais palestinos, judeus e israelenses apoiarem a ideia de um Estado único binacional, após uma tragédia humanitária dessa magnitude, será muito difícil que palestinos e israelenses possam conviver e coexistirem em um mesmo território. Acredito que a separação, ou seja, a implementação de um Estado palestino, ao lado de Israel, seja a opção mais realista diante de um cenário trágico e devastador. A solução para o fim da violência passa pela solução de dois Estados para dois povos.

IHU – Que semelhanças e diferenças podemos ver entre o atual conflito em Gaza e a guerra na Ucrânia?

Luciana Garcia de Oliveira – Não me considero uma especialista na guerra entre Rússia e Ucrânia. Entretanto, diria que uma semelhança marcante com o conflito Israel-Palestina é a contestação do direito da Ucrânia à soberania independente da Rússia. Essa é a razão que mais aproxima aos anseios palestinos ao longo dos 76 anos de ocupação.

A autodeterminação palestina, conforme observado ao longo da entrevista, era um dos planos dos Acordos de Paz de Oslo, em 1993. Nessa ocasião, Israel havia se comprometido a retirar gradualmente o exército israelense dos territórios ocupados, a fim de garantir a autodeterminação palestina na Cisjordânia e em Gaza. Isso, de fato, nunca aconteceu. Ao contrário, a ocupação territorial e militar tornou-se infinitamente pior com o passar do tempo.

Refugiados

Contudo, em relação ao tratamento aos refugiados palestinos, assentados na maioria dos casos, em países árabes vizinhos, como o Líbano, a Jordânia, a Síria e o Egito em 1948, 1976 e em diante, é absolutamente distinto ao tratamento dispensado aos refugiados ucranianos nos países da Europa.

Apesar de a maioria dos refugiados palestinos estar assentada em países árabes, sem precisar sacrificar sua língua, cultura e religião, esses refugiados, de um modo geral, são tratados como cidadãos de segunda classe. No Líbano, a maioria dos palestinos vive em campos de refugiados precários e superpovoados, com problemas graves na prestação de serviços de saúde, educação e saneamento básico. Ainda, muitos palestinos dizem sofrer xenofobia e discriminação constantemente por parte de cidadãos libaneses.

A Jordânia, país que mais acolhe palestinos na região, entrou em confronto direito com os refugiados palestinos, no período de setembro de 1970 a julho de 1971, em um evento batizado de “Setembro Negro”, quando o exército da Jordânia entrou em combate contra as células da Organização para a Libertação da Palestina, visando expulsá-las do país. Por conta da mácula do “Setembro Negro”, milhares de refugiados palestinos deixaram a Jordânia, e os que ainda vivem no país afirmam sofrer xenofobia.

É uma situação inversa ao acolhimento dos refugiados ucranianos na Europa. Desde que começou a crise de refugiados da guerra na Ucrânia, um grande movimento de solidariedade em torno do acolhimento aos refugiados ucranianos, sobretudo em países de fronteira, como a Polônia e a Hungria, está acontecendo. Ironicamente, ambos os países são governados pela extrema-direita ultranacionalista que, durante a crise de refugiados da Síria (2015-2016), se recusou veemente a acolher refugiados sírios em seus territórios.

IHU – O Papa Francisco tem dito que vivemos uma terceira guerra mundial aos pedaços. Como a senhora interpreta essa afirmação? Quais os desafios de hoje para a construção da paz global e como avalia o papel da diplomacia da Santa Sé nesta construção?

Luciana Garcia de Oliveira – Talvez o Papa Francisco tenha se referido às grandes guerras e aos conflitos armados por razões de disputas por territórios, que envolvem grandes potências militares, terrorismo, armas altamente letais e que, consequentemente, produzem milhares de refugiados ao redor do mundo.

Além da expansão da guerra da Ucrânia pela Europa e pela Ásia, citada anteriormente, a disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, situada no Azerbaijão, habitada por armênios, resultou recentemente na morte de cerca de 170 armênios étnicos, que viviam no enclave desde que a região fazia parte da União Soviética. Por conta dos ataques perpetrados pelo exército azeri, milhares de armênios foram obrigados a deixar a região rumo à Armênia neste ano. O conflito entre Azerbaijão e os armênios nos faz lembrar o conflito entre Israel e os palestinos.

Paz

A paz global depende de compromissos mútuos por parte líderes das grandes potências e, do mesmo modo, por parte de líderes religiosos, sobretudo no que tange ao combate ao fundamentalismo, às perseguições religiosas e ao racismo como consequência de guerras, de conflitos armados e do acirramento de ditaduras no tempo presente. É preciso esclarecer que o fundamentalismo religioso não afeta tão somente grupos muçulmanos; afeta grupos cristãos e judeus. Por isso, é urgente que a Santa Sé se posicione arduamente contrária a discursos e medidas políticas que visam o fechamento de fronteiras em tempos de crises humanitárias.

Infelizmente, alguns Estados europeus são governados por partidos de extrema-direita nacionalistas que se reafirmam em sua cristandade ao defenderem uma agenda anti-imigratória. É o caso da Hungria, da Polônia, da República Tcheca, da Eslováquia e da Itália. Alguns desses países são rotas de entrada de refugiados pela fronteira terrestre e pelo mar Mediterrâneo, porém, nos últimos tempos, vêm se negando a acolher e até a resgatar refugiados no mar, sob o pretexto de que a entrada massiva de não cristãos afetaria a identidade cristã europeia. Nesses casos, especificamente, cabe a Santa Sé enfatizar o compromisso cristão no acolhimento e na proteção aos seres humanos refugiados de quaisquer etnias e religiões, contra a ameaça iminente em sua terra natal.

Especificamente no caso do conflito Israel-Palestina, que é o assunto desta entrevista, a Santa Sé tem o poder de estimular o diálogo inter-religioso entre as três grandes religiões monoteístas, de modo a cumprir com o espírito da cidade sagrada de Jerusalém, enquanto centro do cristianismo, do judaísmo e do islamismo. O diálogo inter-religioso em períodos de conflitos intensos tem o poder de evitar e de derrubar estereótipos.

76 anos de conflitos entre israelenses e palestinos fez surgir muitos estereótipos relacionados à imagem dos atores envolvidos: do palestino, do árabe, do muçulmano, do judeu e do israelense. A aproximação de povos, com o auxílio de líderes religiosos carismáticos como o Papa Francisco, tem o poder de dissipar estereótipos e humanizar as partes afetadas por décadas de racismo e violência.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Luciana Garcia de Oliveira – Por último, eu gostaria de acrescentar que as informações in loco sobre a guerra entre Israel e o Hamas são muito importantes. Entretanto, é preciso evitar as análises maniqueístas sobre os últimos acontecimentos.

Conforme exposto nesta entrevista, o conflito Israel-Palestina envolve duas sociedades altamente complexas, diversas e polarizadas. Não podemos deixar de mencionar que antes do ataque do dia 7 de outubro havia manifestações massivas contra a reforma do Poder Judiciário e contra o governo de Netanyahu nas ruas de grandes cidades israelenses. Por isso, a associar a sociedade israelense, como um todo, ao extremismo de Netanyahu é tão equivocado quanto associar a imagem do povo palestino ao fundamentalismo do Hamas e da Jihad Islâmica. Tais associações podem ocasionar discursos e crimes de ódio.

Algumas sinagogas na Europa foram vandalizadas nos últimos dias. E, no dia 18 de outubro, uma família de refugiados do Afeganistão foi agredida no bairro do Bom Retiro, na cidade de São Paulo, por conta da desinformação sobre a guerra. Todo o cuidado é pouco.

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