22 Dezembro 2022
"É uma nova dimensão para a Igreja e para o catolicismo, com muitos riscos, tanto externos como internos. Mas o papa e o cardeal entenderam com razão que não há outras maneiras de tentar evitar a tempestade que está chegando e deter a que está em andamento", escreve Francesco Sisci, sinólogo italiano, professor da Universidade Renmin da China, em artigo publicado por Settimana News, 21-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Objetivamente, ao longo de sua história, mesmo a mais controversa, aquela dos Estados Pontifícios por exemplo, a Igreja teve uma elevada vocação política – para a paz, a justiça e a liberdade.
Esses valores, ideais, não devem ser pensados de forma abstrata, maniqueísta, absoluta. Assim, os ideais se pulverizam como a escuridão desaparece com o nascer do sol. Além disso, na prática, podem estar em contradição entre si. Devem ser encarnados de forma concreta e por homens muito imperfeitos, portanto devem ser aplicados como for possível.
O importante discurso do Cardeal Pietro Parolin vai no sentido de tentar encontrar esse difícil arranjo. Ele reúne as ideias que o Papa Francisco tentou semear nos últimos meses, observando a invasão da Ucrânia se alongar e se alargar. Assim, a terceira guerra mundial deixou de ser oculta e está explodindo.
O cardeal explica: “As lágrimas do Papa em oração aos pés da Imaculada Conceição na Piazza di Spagna em 8 de dezembro passado são um poderoso antídoto contra o risco de se habituar e, portanto, da indiferença. E aqui gostaria de reiterar o seu apelo para que se faça recurso a todos os instrumentos diplomáticos, mesmo os até agora não utilizados, para chegar a um cessar-fogo e a uma paz justa ... não podemos deixar de nos perguntar se estamos realmente fazendo de tudo, todo o possível, para pôr fim a essa tragédia! (grifo meu)”
Aqui há uma dimensão talvez não de todo “ortodoxamente” “católica”, ou seja, interna ao discurso da Igreja. Amplia-se para falar de uma questão que diz respeito a oito bilhões de humanos e não apenas a pouco mais de um bilhão de fiéis católicos, ou que se dizem católicos. Aliás, aqui os católicos são chamados a atuar como força motriz ou fermento, mas não são o único público da mensagem.
De fato, há algo que interessa a todos: como acabar com os horrores, independentemente de quem os comete, buscar arduamente um caminho de paz e justiça com todos, especialmente com aqueles que não querem ouvir falar de paz e justiça.
Com aqueles que já querem a paz, no fundo não há necessidade de se esforçar. O bezerro cevado se prepara para o filho pródigo, não para os filhos que ficaram em casa. Se os filhos de casa não entendem o gesto do pai e do irmão, realmente não entenderam muito desde o início.
Nisso se traça um caminho profundamente religioso de contato com tudo aquilo que sentimos como espiritual e que diz respeito a todos, àqueles que acreditam em Buda, Maomé, Jesus Cristo, a Trimurti Hindu, o Tao ou os espíritos das árvores e as montanhas.
A paz, a justiça e a liberdade são vitais para cada um, especialmente hoje, quando estão em perigo devido à guerra. Aqui, a Santa Sé, como instituição da maior religião unitária do mundo, tem um enorme ônus: tentar encontrar um caminho para a paz sempre e em toda parte de maneira prática, não gritando princípios abstratos do alto de uma coluna ou no fundo de uma gruta.
De fato, explica Parolin: “Precisamos enfrentar esta crise, esta guerra e as tantas guerras esquecidas, com novos instrumentos. Não podemos ler o presente e imaginar o futuro apenas com base em velhos esquemas, velhas alianças militares ou colonizações ideológicas e econômicas”.
É talvez o raciocínio mais profundo e verdadeiro que precisamos fazer: o que mais poderíamos fazer para acabar com esta tragédia. A resposta deve ser buscada na prática, no esforço de entender e dissolver as cruéis dinâmicas do poder porque é daí que se originam as guerras. Mas a paz e a sociedade humana também podem vir dessas dinâmicas de poder. Nascem nos esforços do diálogo, da diplomacia que deve se multiplicar justamente quando tudo parece inútil.
Precisamente na encíclica Fratelli tutti do Papa Francisco, citada por Parolin, afirma-se: "É preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental... A Carta das Nações Unidas, respeitada e aplicada com transparência e sinceridade, é um ponto de referência obrigatório de justiça e um veículo de paz.
Mas isto pressupõe não disfarçar intenções ilícitas nem colocar os interesses particulares de um país ou grupo acima do bem comum mundial. Se a norma é considerada um instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna quando não o é, desencadeiam-se forças incontroláveis que causam grande dano às sociedades, aos mais frágeis, à fraternidade, ao meio ambiente e aos bens culturais, com perdas irrecuperáveis para a comunidade global".
O Papa convoca a um esforço político, para encontrar o espírito de unidade da polis-mundo em que todos estamos engajados, mas no qual o papa e o secretário de Estado nos exortam antes de todos.
É um apelo a todos, mas especialmente aos cristãos, aos homens da tradição do Livro para que saiam de si mesmos e se coloquem em sintonia com as esperanças e necessidades de todos para encontrar um modo de estar juntos sem opressão e na paz.
Talvez seja apenas saindo de si que se traz tudo e todos de volta para si. A Igreja, inclusive por ser a maior religião unitária, reconhece esse dever e não pode fugir dele enquanto a sombra de uma guerra sem precedentes se estende sobre o mundo.
Para trabalhar para evitá-la, o cardeal menciona outra conferência em Helsinki que, em meio à Guerra Fria, pôs fim à corrida rumo à destruição nuclear recíproca.
Na época foram os soviéticos que pediam a participação da Santa Sé naquele evento, hoje podem ser os russos que pedem uma intervenção da Santa Sé? Pode ser a China?
Talvez ainda seria necessário algo mais estável e estruturado do que uma conferência que, embora importante, foi improvisada. Talvez a Santa Sé poderia acolher em Roma um fórum mais permanente e mais reservado para conversações que se tornam a cada dia mais difíceis.
É uma nova dimensão para a Igreja e para o catolicismo, com muitos riscos, tanto externos como internos. Mas o Papa e o cardeal entenderam com razão que não há outras maneiras de tentar evitar a tempestade que está chegando e deter a que está em andamento.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Santa Sé e a paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU