22 Novembro 2022
"Estamos aficionados e dispostos a lutar por esse pertencimento, mas estamos, ao mesmo tempo, dispostos a lutar pela raiz que o funda, sabendo que o fundamento está na paz sem se nem mas? A 'comunhão nas diferenças' torna-se, portanto, uma tarefa imprescindível para o cristianismo de hoje e de amanhã", escreve Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, em artigo publicado por Settimana News, 19-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Está causando preocupação e indignação a notícia segundo a qual “em breve será formada uma companhia militar privada – segundo o canal Telegram Mash – que atuará sob a bandeira da Igreja Ortodoxa e apoiará as tropas regulares de Moscou na Ucrânia. Farão parte dela batalhões rebatizados como "Cruz de Santo André", elementos "abençoados" por expoentes religiosos e destinados a participar da mobilização terrestre (Andrea Marinelli e Guido Olimpio – Corriere della Sera).
A notícia teria que ser verificada e não tenho meios para fazer isso. Também pode ser uma das muitas fake news que acompanham os conflitos e, se fosse, ficaríamos muito felizes com isso. Em todo o caso, para além da indignação, decididamente legítima, podemos aproveitar a ocasião para tentar compreender o sentido dessa ou de operações semelhantes.
Entre outras coisas, a referência ao Patriarca Kirill, em algumas versões da informação, talvez deveria ser no mínimo relativizada, já que não é possível registrar adesões explícitas e públicas do patriarcado de Moscou à iniciativa, embora seja difícil argumentar que algo possa acontecer no âmbito russo-ortodoxo sem que o patriarca esteja ao menos ciente disso. Um ponto de vista seriamente católico sobre essa contingência levaria a se questionar o sentido da própria pertença como crente.
Aqueles que pretendem iniciar uma iniciativa como a indicada acima, penso que seriam chamados a responder a uma lógica segundo a qual é preciso primeiro ser russos e ortodoxos e depois cristão. E aqui está o cerne da questão: o antes e o depois. No plano ontológico não deveria haver dúvida: somos primeiro todos crentes no único Senhor Jesus Cristo; depois, e muito depois, ortodoxos, católicos ou evangélicos.
No plano cronológico: recebemos esta fé que nos salva num contexto histórico particular, como aquele do catolicismo, da ortodoxia ou do protestantismo. No momento em que o plano cronológico ofusca e exclui aquele ontológico, ficamos presos em um horizonte decididamente conflituoso e inautêntico.
Podemos nós, como católicos, esquecer que somos primeiro cristãos? Podemos ser primeiro ortodoxos e depois cristãos? Primeiro russos e depois crentes? Mas também, e ao mesmo tempo, primeiro ucranianos e depois cristãos? Aqui está o cerne do problema! Com aqueles que me leem, eu poderia eventualmente compartilhar a ideia de que é uma minha tentação querer ser mais ocidental do que cristão. A minha "modernidade" pode ultrapassar a minha fé? E aqui as coisas se complicam: temos tanta certeza de que o destino do Ocidente – e do cristianismo – sejam tão homogêneos e especulares?
A compreensão do fenômeno vai além: o primeiro cronológico não é irrelevante, no sentido de que nossa aproximação e nossa pertença à fé cristã passou e passa pelo nosso ser católico-romanos, ortodoxos ou evangélicos, ou seja, ocidentais-mediterrâneos, orientais ou centro-europeus.
Estamos aficionados e dispostos a lutar por esse pertencimento, mas estamos, ao mesmo tempo, dispostos a lutar pela raiz que o funda, sabendo que o fundamento está na paz sem se nem mas? A "comunhão nas diferenças" torna-se, portanto, uma tarefa imprescindível para o cristianismo de hoje e de amanhã.
Nesta perspectiva, as modalidades históricas e contingentes pelas quais se expressa a fé em Jesus Cristo devem ser pensadas como veículos ou, nas palavras de Tomás, caminhos pelos quais a palavra da salvação nos alcançou.
No momento em que o caminho se identifica com a meta, afundamo-nos na ideologia e entramos em campo, mesmo de forma beligerante, não para defender e proclamar a mensagem de salvação, mas simples e banalmente para afirmar a nossa pertença. Teses facilmente dedutíveis de uma leitura crítica também da história da Igreja Católica, com suas violências perpetradas contra aqueles que não compartilhavam a mesma pertença.
Antes de ser católicos devemos procurar ser cristãos: assim o anuncia o Papa Francisco quando afirma que o cristianismo não é uma doutrina nem uma moral, mas a adesão a uma pessoa que questiona a todos, através das experiências historicamente dadas nas Igrejas: católicas, ortodoxas e evangélicas.
Amamos a nossa comunidade à qual pertencemos, mas ao mesmo tempo somos gratos a ela apenas e porque ela enxertou nas modalidades que lhe são próprias, incluindo o rosário e as devoções, o Evangelho em nossa existência histórica.
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Primeiro cristãos, depois católicos. Artigo de Giuseppe Lorizio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU