23 Fevereiro 2023
"Nem vencedores nem vencidos. É o compromisso necessário para começar a negociar”.
Edgar Morin do alto de seu século de vida sugere essa solução para a crise Rússia-Ucrânia. É uma solução que no momento parece mais utópica do que realista. Mas essa é a função dos grandes pensadores: misturar utopia e realismo.
Morin não abre mão da batalha intelectual e de seu papel como consciência crítica. Di guerra in guerra (De guerra em guerra; editora Raffaello Cortina, 2023) é uma destilação de reflexões sobre um interminável século XX vivido como testemunha. "Queria recordar não só os terríveis males físicos, mas também os males intelectuais causados pelas guerras, ou seja, mentiras, visões unilaterais, maniqueísmo, ódio por todo o povo inimigo, por sua cultura, sua língua, suas obras literárias e artísticas e quis ajudar a mim mesmo e aos leitores a desenvolver essa consciência, diante de uma guerra que corre o risco de nos levar ao pior, através de um processo de escalada e de radicalização".
A entrevista é de Cesare Martinetti, publicada por La Stampa, 17-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Senhor Morin, estamos entrando na Terceira Guerra Mundial ou já estamos nela?
Estamos numa guerra já globalizada, mas ainda militarmente localizada: estamos sendo arrastados para uma nova guerra mundial, mas ainda é possível escapar dela.
Putin é o agressor "evidente", como o senhor escreve. Após a anexação da Crimeia, a escalada era previsível. O Ocidente não entendeu ou não quis entender?
Após a queda da URSS e os primeiros anos de Putin, houve uma possibilidade de entendimento entre a Rússia e os EUA, entre a Rússia e a Europa. Putin também veio à Alemanha para fazer um discurso muito pró-europeu. Mas a vontade dos Estados Unidos de manter o monopólio da potência mundial, por um lado, e, por outro lado, as guerras de reconquista lideradas pela Rússia na Chechênia e na Geórgia trouxeram os Estados Unidos, aliás a pedido de países próximos da Rússia, a estender a OTAN até um cerco que os dirigentes perceberam como uma ameaça.
E o que aconteceu na Ucrânia?
A revolução pró-ocidental do Maidan despertou o separatismo do Donbass de língua russa e anexação da Crimeia pela Rússia. Desde 2014, prossegue uma guerra contínua e sangrenta entre o poder ucraniano, apoiado pelos Estados Unidos, e as províncias separatistas, alimentadas militarmente pela Rússia. Em 2014, eu tinha avisado sobre os riscos de que esse problema se generalizasse. De fato, em condições de crescente tensão, Putin decidiu pela invasão da Ucrânia com o objetivo de anexá-la.
Em seu ensaio, o senhor critica abertamente certos aspectos do poder ucraniano. Por quê?
A Ucrânia, durante a revolução soviética, quis se emancipar da Rússia, mas foi reconquistada e integrada à URSS. O movimento de independência de Bandera, refugiado na Alemanha, durante a invasão alemã colaborou com o nazismo e participou dos massacres dos judeus. Pelas autoridades ucranianas após o Maidan, Bandera é glorificado como um herói da independência, ocultando a sua dependência em relação ao nazismo sob a ocupação alemã. A radicalização da guerra levou as autoridades ucranianas a desenvolver um extremo nacionalismo antirrusso que chegou a proibir a literatura e a música, ou seja, o que a Rússia produziu de melhor contra os despotismos czarista e soviético, da Pushkin, Tolstoi, Chekhov e Solzhenitsyn e Grossmann.
Qual é a sua opinião sobre Zelensky?
Zelensky revelou-se um extraordinário líder guerreiro e conseguiu ajuda econômica e militar que, juntamente com o valor estratégico dos chefes militares ucranianos, salvaram a Ucrânia da anexação. Mas agora busca mais a vitória do que a libertação e temo que ele se recuse a negociar, enquanto o equilíbrio das forças atuais permitiria uma negociação, que infelizmente os ódios mútuos tornam difícil. Receio que exista apenas uma visão curta dos riscos que ele contribui trazer para o mundo, não vendo que apenas uma generalização do conflito seria um desastre em primeiro lugar para a Ucrânia.
E qual é a sua opinião sobre Putin?
Putin é ao mesmo tempo o herdeiro do pior aspecto do stalinismo, aquele policialesco, e, ressuscitando a Santa Rússia, do despotismo czarista. Ele virou progressivamente um déspota cínico e cruel, e esse seu aspecto está crescendo. Mas também é realista e sabe retroceder e reduzir suas ambições. Não é certo que uma eventual deposição de Putin levará ao poder democratas pacifistas. Existe também o risco de ser substituído pelo pior.
O senhor é um estudioso e um teórico da complexidade, e a situação ucraniana é objetivamente complexa. Qual é o cenário realista para a resolução de conflitos?
O Donbass russificado deveria ser reconhecido na sua especificidade: só uma Ucrânia federal o poderia integrar, não a Ucrânia atual. Qualquer que seja o resultado político para seu território, a indústria de Donbass poderia depender de uma parceria russo-ucraniana. Cidades portuárias como Mariupol, e outras também, poderiam se tornar portos livres como Tânger foi. A Crimeia, que durante a guerra foi povoada pelos tártaros por Stalin, recuperou parte de sua população original, mas é mais russificada do que ucranizada. Poderia ser desmilitarizada e permanecer russa. Em suma, limito-me a indicar as possibilidades de um compromisso, necessário em qualquer guerra em que não haja vencedores nem vencidos.
O senhor viveu a Segunda Guerra Mundial como um jovem combatente e membro da resistência. Considera correto comparar a Alemanha de então com a Rússia de hoje e Putin com Hitler?
É desproporcional hitlerizar ou stalinizar Putin. A ideologia de Hitler era fundada na superioridade da raça ariana sobre toda a humanidade. A ideologia de Putin é a da Grande Rússia.
Senhor Morin, o senhor é de origem judaica e viveu como agnóstico com a paixão pela verdade, cartesiano e spinoziano. Como está se aproximando dos 102 anos que completará em 8 de julho?
Quero continuar a ser quem sou, a fazer o que faço, tentando oferecer aos meus contemporâneos um pensamento que considere a complexidade do mundo e da história humana, e isso até ao meu último suspiro.
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“Uma paz sem vencedores nem vencidos com o Donbass compartilhado entre russos e ucranianos”. Entrevista com Edgar Morin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU