16 Fevereiro 2023
O campo de extermínio e a bomba nuclear não se contrapõem, mas estão juntos a nos lembrar que a humanidade vive desde então no clima de sua própria autodestruição e os modelos de pensamento lineares e opostos a que ainda estamos sujeitos nos tornam incapazes de avaliar os contextos de reação complexa em que cada ação humana se insere: o antigo axioma latino si vis pacem para bellum, longe de demonstrar sua inadmissibilidade no mundo global e nuclear de hoje, continua a nos fazer acreditar que as guerras só podem ser detidas vencendo-as.
O comentário é de Gabrio Vitali, publicado por Il Manifesto, 14-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O fato de Edgar Morin, autêntico e insubstituível mestre do pensamento deste longo século, levante hoje, aos 101 anos, sua voz num apelo alarmado contra a guerra e as suas devastações cada vez mais irrevogáveis, constitui a prova da força moral, lúcida e intacta, de um hábito intelectual sempre atento às derivas, talvez fatais, que marcam há tempo o destino da humanidade.
Em seu novo livro, Di guerra in guerra. Dal 1940 all’Ucraina invasa (De guerra em guerra. De 1940 à Ucrânia invadida, em tradução livre) editado pela Raffaello Cortina (prefácio Mauro Ceruti, pp.104, euro 12), em chave autobiográfica e autocrítica o grande pensador francês oferece ao mundo da cultura e da política sua própria meditação sobre a impressionante continuidade do conflito, cada vez de forma inédita e cada vez mais destrutiva, que serviu de trágico contraponto a toda a história de uma época que, hipocritamente, é lida como de paz, liberdade e democracia.
Desde a última Guerra Mundial (reconhecida), na qual participou na França e na Alemanha, como líder político-militar da Resistência, ao conflito que hoje assola e a Ucrânia e ameaça a estabilidade civil da Europa, o relato de Morin transporta o leitor por um longo percurso de horrores, destruições, crimes e sofrimentos que ainda parece constituir o símbolo imóvel da civilização contemporânea e, junto, o terrível preço de seu progresso e do sistema de ideias que o produz. O horror e a repulsa moral por Auschwitz e pelo contexto da infame opressão nazifascista que o gerou, ele nos diz, não podem apagar o análogo repúdio e o terror dos bombardeios anglo-americanos de populações civis desarmadas, com seu irrevogável e fatal clímax da bomba de Hiroshima.
O campo de extermínio e a bomba nuclear não se contrapõem, mas estão juntos a nos lembrar que a humanidade vive desde então no clima de sua própria autodestruição e os modelos de pensamento lineares e opostos a que ainda estamos sujeitos nos tornam incapazes de avaliar os contextos de reação complexa em que cada ação humana se insere: o antigo axioma latino si vis pacem para bellum, longe de demonstrar sua inadmissibilidade no mundo global e nuclear de hoje, continua a nos fazer acreditar que as guerras só podem ser detidas vencendo-as.
Pelo valor complementar desse raciocínio, Morin não exonera nenhuma das partes em jogo e nem se absolve. Pelo contrário, "com sua capacidade única de conceber o humano", se expõe diretamente e com plena honestidade ao leitor - escreve Mauro Ceruti no prefácio - em um “exercício de auto-observação que se torna assim o laboratório de um pensamento complexo, voltado para a busca em si mesmo, antes mesmo que nos outros, da origem recorrente do erro, da ilusão e da mentira".
Resulta a invocação de um caminho credível de esperança que só pode se originar de uma profunda mudança em nossa maneira de pensar. “Durante esse longo período de oitenta anos, pude constatar a pertinência do que chamei de ecologia da ação: cada ação entra em um jogo de interações e feedbacks que podem modificar o sentido da ação, quando não revertê-la e fazê-la recair na cabeça de seu autor”: por essas razões, até mesmo uma guerra de defesa, conduzida para inibir a extensão e a radicalização de uma oposta guerra de agressão, pode desencadear processos interativos descontrolados em nível global com consequências que não serão fáceis de dominar e evitar.
E é realmente surpreendente, reflete ainda Morin, que em um contexto tão exasperado e perigoso que só se levantem algumas poucas vozes na Europa a favor da paz e que estas ainda por cima sejam rotuladas de insensatez política, de pró-putinismo ou até mesmo de vontade ignominiosa e cúmplice de capitulação, quase como se não querer fazer a guerra não fosse a única política capaz de detê-la.
E depois de ter até traçado as linhas de uma negociação de paz possível e praticável, Edgar Morin conclui seu relato reiterando a necessidade imediata: “A urgência é grande: esta guerra está provocando uma crise considerável que agrava e agravará todas as outras enormes crises do século sofridas pela humanidade, como a crise ecológica, a crise da civilização, a crise do pensamento. Que por sua vez agravam e agravarão a crise e os males nascidos desta guerra. Quanto mais a guerra se agrava, mais a paz é difícil e mais é urgente. Vamos evitar uma guerra mundial. Seria pior do que as anteriores."
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Um percurso de horrores nunca interrompido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU