A invasão russa à Ucrânia e a crise civilizatória: seis fatores de uma sacudida energética, ambiental e alimentar

Conversa entre Vladimir Putin e Joe Biden (Fonte: Wikimedia Commons)

11 Março 2022

 

“Alinhar-se aos grandes senhores da guerra não é a única alternativa. Muito pelo contrário, não parece haver outra opção a não ser afastar-se dela e de suas lógicas, buscar a convergência dos não alinhados, abrir todo um caminho orientado à vida”, escreve Emiliano Terán Mantovani, sociólogo, membro do Observatório de Ecologia Política da Venezuela.

 

“Não existem receitas para enfrentar um cenário tão complicado como o que nos coube viver. Há muito mais perguntas do que respostas. Contudo, a expansão dessa guerra nos levaria ao abismo”, avalia.

 

O artigo é publicado por OPLAS, 09-03-2022. A tradução é do Cepat

 

Eis o artigo.

 

A brutal e condenável invasão do Governo de Vladimir Putin à Ucrânia está estremecendo o já muito turbulento sistema global. Além dos impactos humanitários - por exemplo, em 3 de março o número de deslocados já havia ultrapassado um milhão -, o conflito tem caráter internacional e, dependendo de sua evolução, pode de fato nos inserir em um novo cenário de conflagração de riscos extremos, de beco sem saída. Circula inclusive o fantasma das armas nucleares, agora em um contexto de desarranjo geopolítico do século XXI. Tempo verdadeiramente perigoso para qualquer escalada bélica.

 

 

Para além do presente combate em território ucraniano, convém recordar que este conflito é também filho da crise civilizatória que vivemos, e que por sua vez vai contribuindo para definir sua próxima evolução. Quem nos lê, independentemente de onde esteja, está sendo e será seriamente impactado, de uma forma ou de outra, por esse novo cenário global. A invasão de Putin também tem efeitos no problema das mudanças climáticas, na segurança alimentar, na crise energética e nas possibilidades e formas da transição energética, no custo da vida e na muito delicada crise ambiental.

 

Neste artigo, destacamos brevemente seis aspectos determinantes no rumo energético, ambiental/climático e alimentar, que marcam as dinâmicas políticas e os futuros acontecimentos globais. Vejamos.

 

1. Crise energética como pano de fundo do conflito: ponto de inflexão europeu e o gás como campo de disputa

 

O conflito na Ucrânia ocorre em meio a uma crise energética global, já de longa data, e contribui para intensificá-la. Pode tal crise energética ser também um fator que contribuiu para desencadear esta invasão? No mínimo, o fator energia também serve como pano de fundo do conflito. Por um lado, a Europa se aproxima de um limite perigoso de insegurança energética, por outro, no campo do gás também vem sendo travada uma batalha na qual, além da Rússia, participam os Estados Unidos.

 

A invasão russa à Ucrânia gerou um ponto de inflexão no rumo energético europeu, de acordo inclusive com funcionários de alto escalão da União Europeia (UE) (incluindo Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia). A dependência da união pode ser classificada como angustiante: a Europa depende de cerca de 40% do gás natural russo. Anuncia-se a urgência de mudanças no rumo energético regional.

 

Em janeiro deste 2022, pela primeira vez, os Estados Unidos exportaram mais gás para a Europa do que a Rússia forneceu ao continente por meio de gasodutos [1]. Produtores estadunidenses buscam ampliar seu posicionamento como fornecedores na Europa. Paradoxalmente, o conflito que seus aliados geopolíticos vivem de perto é assumido como uma boa oportunidade de negócios para esse setor econômico norte-americano. No entanto, este gás é muito mais caro (devido a maiores processamentos e transporte). Na verdade, o gás russo é o mais barato que a Europa pode conseguir. Para o velho continente o problema não é só o acesso a esse recurso, mas também seu preço que, se for muito alto, tem sério impactos inflacionários e se torna proibitivo. A chave ressaltada por porta-vozes oficiais europeus é: diversificação de fontes energéticas e de fornecedores.

 

 

Por outro lado, pode a Rússia interromper os envios de gás para a Europa no curto prazo? Parece uma opção muito difícil, caso seja considerada a dupla dependência que existe nesta relação, sendo que a receita obtida pela Rússia pela venda de hidrocarbonetos é de importante valor. O fato de que as sanções internacionais à Rússia não tenham atingido o gás e nem o petróleo evidencia esta mútua dependência.

 

Pode a Rússia se voltar para outros mercados? A China poderia ser um destino para maiores envios russos, sendo que três semanas antes da invasão à Ucrânia os dois países assinaram novos acordos em torno do gás e petróleo enviados ao país asiático [2]. Em Pequim, na oportunidade, Putin e Xi Jinping apresentaram uma declaração conjunta estreitando a aliança das duas potências e criticaram os Estados Unidos e seus aliados. Mas é preciso acrescentar que o apoio chinês é estratégico, não incondicional, e o conflito em torno da Ucrânia pode embolar algumas coisas.

 

Em todo caso, removeu-se significativamente o sistema de alianças energéticas, certamente com impactos em todo o mundo. Não se esqueça: a atual crise energética é, na verdade, o sinal da inviabilidade do padrão energético atual baseado em hidrocarbonetos e crescimento sustentado. Tudo está chegando ao seu limite. O volátil cenário global não garante nenhuma projeção linear, mas, sim, muito incerteza.

 

2. ‘Novo Pacto Verde’: é possível acelerar a transição energética europeia?

 

O novo ponto de inflexão no rumo energético europeu está conjecturando a possibilidade concreta de um novo impulso à transição energética, em que as energias renováveis aparecem com força, em meio à crise ambiental e climática global. Porta-vozes da União Europeia como Von der Leyen ou o primeiro-ministro britânico Boris Johnson ressaltaram a necessidade de acelerar o investimento e implementação em massa de projetos e tecnologias ‘limpas’ para reduzir a dependência da Rússia e alcançar a ‘independência energética’ o mais rápido possível.

 

O Governo alemão estaria buscando acelerar uma mudança rumo a um sistema elétrico 100% renovável até 2035 [3]. Logicamente, isso pode despertar certo entusiasmo para avançar rumo a chamada descarbonização das economias. Mas, na verdade, existem várias limitações.

 

Em primeiro lugar, não existe uma, mas diversas visões em jogo a respeito das transições energéticas no continente, em que outras propõem que o necessário também seria explorar combustíveis fósseis próprios (como os do Mar do Norte), assim como buscar outros fornecedores aliados com esses recursos. Não são necessariamente visões excludentes a outras fontes de energia, mas em alguns casos prevalecem pragmatismos que pouco levam em conta o fator ambiental e climático.

 

Por outro lado, na narrativa oficial da União Europeia, a energia nuclear é considerada uma energia limpa, algo muito polêmico à luz do enorme perigo dos desastres nucleares, dos quais tivemos evidências no passado (de Chernobyl a Fukushima). O posicionamento da política de um Novo Acordo Verde para a Europa e a atual crise desencadeada pela invasão à Ucrânia fez com que setores pró-nuclear introduzam a ideia de reestimular esse tipo de energia.

 

Após o avanço na eliminação gradual de reatores nucleares na Alemanha, agora foi reaberto o debate sobre o tema neste país, quando os ministros da economia dos 16 estados alemães foram chamados a reavaliar as possibilidades de operação da energia nuclear. “Todas as opções estão sobre a mesa”, disse Andreas Pinkwart, ministro de Assuntos Econômicos e Energéticos da Renânia do Norte-Vestefália, o estado mais populoso do país [4].



Com o carvão ocorre algo parecido, ainda que este apareça mais como uma opção de curto prazo diante da emergência, dada sua muito má reputação em relação ao tema das mudanças climáticas e por não ser considerado uma energia limpa. Em plena invasão à Ucrânia, seu preço disparou em níveis históricos.

 

 

Em segundo lugar, uma transição energética verde seria lenta e paulatina, muito difícil de ser alcançada a curto prazo. Além disso, as energias renováveis não podem oferecer a alta rentabilidade econômica e energética que o petróleo ofereceu por várias décadas ao desenvolvimento capitalista, razão pela qual representa um desafio que pode ser articulado em massa com as lógicas diabólicas de aceleração do crescimento que o sistema exige para sobreviver.

 

Em terceiro lugar, embora pouco se diga, o que o Novo Pacto Verde propõe de fato é a transição para um capitalismo verde, que de forma alguma faz um questionamento profundo ao modelo de consumo, produção e crescimento sem fim, em um planeta que simplesmente não suporta mais as pressões extrativas e de degradação de seus ecossistemas [5].

 

Em nossa avaliação, é a própria crise sistêmica que vai tornando cada vez mais insustentáveis os níveis de intensidade no consumo de materiais, água e energia, razão pela qual parece bastante provável que a Europa e o resto do mundo também terão que trabalhar duro para diminuir ou racionar esses níveis de consumo energético. Portanto, o problema de fundo não é só a fonte de energia que seja utilizada.

 

O que talvez se possa dizer é que uma transição para energias renováveis e provavelmente mais descentralizadas poderia reduzir consideravelmente as tensões geopolíticas exacerbadas pelo petróleo e o desejo de tê-lo a todo custo, ao mesmo tempo em que poderia fortalecer formas de soberania energética mais locais.

 

3. Crise econômica global e insegurança alimentar: potencial cenário de protestos populares

 

A invasão à Ucrânia e a potencial escalada de confronto internacional têm múltiplos impactos econômicos, como danos ainda maiores à já irregular cadeia de fornecimentos e, portanto, aos níveis de produção de diversos setores industriais (automobilístico, celulares, entre outros), prejudicando a almejada recuperação econômica. O impacto que gostaríamos de destacar neste artigo é o relacionado à inflação, um problema que vem se intensificando, a nível mundial, com a crise da pandemia.

 

 

O vertiginoso aumento dos preços da energia como resultado da invasão à Ucrânia – por exemplo, o petróleo chega aos quase 120 dólares o barril (o mais alto desde 2012) e o gás natural holandês TTF atingiu um recorde histórico – é uma das principais causas de um novo e recente impulso inflacionário geral. Se o conflito piorar, a situação se agravará ainda mais.

 

Esse processo afeta os esforços de governos e investidores para a recuperação econômica global, o que evidentemente inclui a União Europeia. Isso também afeta os seus planos e financiamentos para uma transição energética "verde".

 

Por outro lado, há também um impacto no preço dos alimentos, algo adicionalmente agravado pela guerra na Ucrânia e as sanções sobre a Rússia, levando em conta que a Rússia e a Ucrânia exportam quase 30% do trigo que se consome mundialmente, 20% do milho e 80% do óleo de girassol. Segundo a FAO, os preços gerais dos alimentos já ultrapassaram os níveis de 2011.

 

Certamente, vale a pena ressaltar o que ocorreu naquele ano: protestos populares em países do norte da África e Oriente Médio, em grande medida de setores empobrecidos, afetados pelo aumento do preço dos alimentos, que foi um importante gatilho para que as pessoas fossem às ruas na relembrada Primavera Árabe, da qual vários mandatários saíram derrubados.

 

Das exportações ucranianas de trigo e milho, 40% são dirigidas justamente para o Oriente Médio e a África [6]. O que pode acontecer com este abastecimento e até onde os preços podem subir, caso piore a situação da guerra na Ucrânia? Trata-se de outra complexa dimensão do conflito nesse cenário internacional.

 

4. Política climática para outro dia?

 

Praticamente, enquanto a invasão russa à Ucrânia começava a se desenrolar, era finalizado e publicado o Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), no qual se fez um novo alerta ressaltando que caso não sejam tomadas medidas urgentes para enfrentar o aquecimento global, a crise climática irá aumentar, e que as janelas de oportunidade estão se fechando rapidamente [7].

 

 

Mais uma vez, o curso dos acontecimentos históricos contemporâneos nos bofeteia revelando o paradoxo de um sistema global moderno que nos prometeu por anos progresso e bem-estar e, no fundo, presta tributo à morte. Em meio a um agravamento da crise climática, surge esta nova guerra. Recursos, forças e energias estão sendo direcionados em massa a essa lógica de aniquilação, como se já não fosse o suficiente.

 

O preocupante é que esse cenário e seus múltiplos impactos pressionam para que as políticas climáticas sejam relegadas a um segundo plano. A Alemanha anuncia um extraordinário aumento de seu orçamento militar (2% do PIB). Mario Draghi indica que política semelhante deve ser conduzida pela Itália, e o mesmo anunciam porta-vozes governamentais da Romênia, Polônia, Irlanda, entre outros. O mesmo anúncio da China, e reportagens destacam que Biden pretende pedir ao Congresso um valor recorde para gasto militar em 2023 [8].

 

Como já mencionamos acima, volta-se a falar em carvão, e os pragmatismos da segurança energética e militar se apegam aos combustíveis fósseis. As pretensões estadunidenses de enviar mais gás à Europa e conquistar mercados que antes eram russos se realizaria à custa da expansão do fracking naquele país, o que aumenta as emissões de metano, que tem 80 vezes mais poder de aquecimento atmosférico do que o CO2. A isto deve-se acrescentar que para alcançar tais objetivos seria necessário manter subsídios aos combustíveis fósseis.

 

Tudo isso colocaria ainda mais em contradição os discursos políticos ligados à transição verde, o Green New Deal, e a credibilidade das lideranças políticas em sua célebre luta global contra as mudanças climáticas. Na medida em que os efeitos da crise climática se intensificarem, a contradição será ainda mais intensa, o que implicará na demanda política e social de medidas urgentes contra o problema. Setores da sociedade também se verão no meio dessas tensões entre o ambiental, a segurança interna e as exigências de acesso à energia.

 

5. Na América Latina, o sistema de alianças energéticas também pode sofrer mudanças?

 

Os impactos globais e multidimensionais acarretados pela invasão russa à Ucrânia também afetarão a América Latina de uma forma ou de outra, ainda que diferentemente. Nossa região já era a mais afetada entre as regiões “em desenvolvimento” do mundo pela pandemia, segundo a ONU [9]. Agora, as pressões inflacionárias terão efeitos nocivos nas economias desses países, sobretudo nos setores mais pobres da sociedade. Este último tem sido um fator associado à maior incidência de protestos populares.

 

O aumento dos preços das matérias-primas muito provavelmente irá beneficiar os produtores de petróleo e gás [10], bem como de grãos, e prejudicar os importadores de energia.

 

Em relação a este último, o conflito na Ucrânia e as potenciais mudanças em curso no sistema de alianças energéticas mundiais também abriu um complexo e contraditório processo no marco da geopolítica da energia, que pode impactar a América Latina. Na política exterior de Washington, diante desta nova guerra, busca-se identificar fornecedores de hidrocarbonetos alternativos que possam cobrir as cotas que seriam perdidas devido ao boicote a este setor russo. Tais pretensões ficaram evidentes pelos porta-vozes republicanos e democratas [11].

 

 

Nesse objetivo, a América Latina, por suas reservas e proximidade com os Estados Unidos, também possui um papel, especialmente a Venezuela, apontada como possível substituto. Observe que enquanto as importações de petróleo deste país sul-americano e histórico fornecedor confiável caíram para o mínimo, com as sanções de 2019, as importações da Rússia dobraram ou mais a partir do mesmo ano [12].

 

A invasão russa à Ucrânia abriu passagem a movimentações dos Estados Unidos para tentar deslocar a Rússia do terreno que conquistou na América Latina. Leve-se em consideração que também existem nuances entre os aliados latino-americanos da Rússia, que por exemplo se abstiveram diante da resolução da Organização das Nações Unidas para condenar a invasão, ou propuseram apelos a uma solução diplomática.

 

O caso específico e recente da Venezuela está mostrando tendências às negociações. No último dia 5 de março, teria ocorrido a primeira reunião de alto nível, em anos, entre porta-vozes do governo estadunidense e o de Maduro, com a finalidade de recuperar as exportações de petróleo para os Estados Unidos, possivelmente em troca da retirada de sanções e facilitação da participação de capitais estrangeiros na recuperação da indústria petroleira nacional [13]. No dia anterior, 4 de março, Maduro havia anunciado que estava pronto para vender petróleo aos Estados Unidos e que “os temas econômicos não devem ser politizados” [14].

 

Esses recentes acontecimentos não necessariamente traçam um rumo previsível, mas, sim, contraditório. O que fica evidente, além das possibilidades de recomposição de alianças energéticas, é que o conflito russo-ucraniano nos mostra um contexto global de aceleração de luta por recursos, áreas de influências e neocolônias, que se torna altamente competitivo. Não esqueçamos também que boa parte dos minerais exigidos para a transição verde no Norte Global (lítio, cobre, níquel, etc.) estão na América Latina, então, continuaremos presenciando significativas mudanças na geopolítica do extrativismo na região.

 

6. O fantasma de Chernobyl

 

A tomada da central de energia nuclear e a zona de exclusão de Chernobyl pelas tropas russas, assim como da instalação de Zaporizhzhia (a maior da Europa), e o incêndio ocorrido em suas instalações no contexto do conflito, fez com que sejam disparados os alarmes globalmente, e que se reviva o fantasma de Chernobyl-1986, lembrando um dos piores desastres ambientais da história contemporânea e talvez da humanidade.

 

Na Ucrânia, existem 15 reatores nucleares em operação localizados em regiões próximas a cidades e localidades povoadas, que geram metade da eletricidade consumida no país. Além de ser claramente um alvo de controle militar, as próprias operações das instalações nucleares são vulneráveis às dinâmicas do conflito.

 

No final de fevereiro, o ambientalista e ativista antinuclear russo, Oleg Bodrov, destacou que a equipe de substituição da central de Chernobyl não estava conseguindo chegar ao local para substituir seus colegas, e que isto gerava uma perigosa interrupção em suas operações [15]. É preciso lembrar que nesta central ainda existe material radioativo para administrar. No caso de Zaporizhzhia, as autoridades ucranianas apontaram que um projétil havia atingido um edifício nas proximidades de um reator da central, o que provocou o incêndio, que finalmente foi controlado [16].

 

É verdade que, diferente dos tempos do desastre de Chernobyl, as atuais centrais possuem tecnologias, materiais e protocolos de segurança melhores, o que torna mais difícil a ocorrência de uma catástrofe [17]. Mas estamos falando de energia nuclear que hoje está em regiões de guerra. Não é o suficiente falar apenas em ataques militares diretos às instalações - algo que seria verdadeiramente distorcido -, conforme destacou Serhii Plokhy, professor de história da Ucrânia, na Universidade Harvard, o desastre de Fukushima de 2011 evidenciou que, para um derretimento dos reatores, a única coisa necessária foi um corte de eletricidade [18].

 

Tudo isso expressa muito bem os traços desse paradigma civilizatório moderno: chegamos a níveis extremos brincando com fogo. Os apelos políticos à sindérese coexistem com as dinâmicas da perturbada geopolítica da crise civilizatória. Assim, com a energia nuclear temos outra encruzilhada existencial.

 

Contra a guerra e a cultura de morte, por uma mudança civilizatória

 

A invasão de Putin à Ucrânia deve ser condenada internacionalmente, e grandes esforços diplomáticos e movimentos de oposição cidadã são necessários para buscar deter imediatamente a guerra e qualquer escalada bélica e armamentista na região e no mundo. A expansão desse conflito pode nos levar a uma ruína planetária sem precedentes.

 

 

Mas, lamentavelmente, parar essa guerra não será suficiente. Existem mudanças muito mais profundas a serem feitas. Como já dissemos, a guerra é também um sintoma de um sistema em decadência, e de um modelo civilizatório no qual a vida na Terra ficou relegada a um segundo plano diante dos objetivos de acumulação capitalista e poder geopolítico. Em nome do desenvolvimento, da civilização, do progresso, da Segurança Nacional, derramou-se muito sangue, devastou-se muitos ecossistemas, até o ponto de nos levar a essa situação planetária limite. Nesse sentido, Putin, Biden, a União Europeia, Xi Jinping, enfim, encarnam variantes do mesmo projeto civilizatório.

 

Alinhar-se aos grandes senhores da guerra não é a única alternativa. Muito pelo contrário, não parece haver outra opção a não ser afastar-se dela e de suas lógicas, buscar a convergência dos não alinhados, abrir todo um caminho orientado à vida. O contexto de decomposição, confusão e extravio político exige uma ativa participação social e cidadã, populações mobilizadas demandando o básico e fundamental direito a existir. As mudanças de fundo dificilmente virão de cima.

 

Hoje, assim como os protestos antiguerra na Rússia e a resistência popular na Ucrânia são cruciais, do mesmo modo são os movimentos pela justiça climática, os antinucleares, os ecofeminismos e as resistências de povos indígenas e camponeses, para mencionar algumas referências. Em essência, o que esses povos em movimento compartilham direta ou indiretamente é justamente sua luta pela vida.



Em todo o mundo são geradas alternativas sistêmicas, redes de economia solidária urbana e rural, grupos que promovem a transição energética justa e ecológica, alternativas agroecológicas e em prol da soberania alimentar, círculos de mobilidade sustentável, entre outros. Todos estes lutam para emergir como uma opção de mudança global.

 

Esta mudança não poderá ser apenas tecnológica, devemos mudar radicalmente nossos estilos de vida. A transformação deverá, portanto, ser também cultural, uma forma diferente de ser e estar na Terra que coloque a vida no centro, que se baseie em uma ética com a alteridade, uma ética ambiental. Não existem receitas para enfrentar um cenário tão complicado como o que nos coube viver. Há muito mais perguntas do que respostas. Contudo, a expansão dessa guerra nos levaria ao abismo.

 

Notas

 

[1] Vultures Are Circling the Ukraine Crisis.https://newrepublic.com/article/165487/russia-war-ukraine-us-oil-gas-profits; U.S. LNG capacity to jump 20% as Europe shifts away from Russia. https://asia.nikkei.com/Business/Energy/U.S.-LNG-capacity-to-jump-20-as-Europe-shifts-away-from-Russia#:~:text=In%20January%2C%20the%20U.S.%20exported,in%20Europe%20originates%20from%20Russia.

[2] Russia Signs Oil and Gas Deals With China as Relations With the West Sour. https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-02-04/russia-s-gazprom-signs-new-gas-supply-contract-with-china

[3] Germany aims to get 100% of energy from renewable sources by 2035. https://www.reuters.com/business/sustainable-business/germany-aims-get-100-energy-renewable-sources-by-2035-2022-02-28/

[4] Ukraine crisis forces Germany to change course on energy. https://www.dw.com/en/ukraine-crisis-forces-germany-to-change-course-on-energy/a-60968585

[5] Pandemia, recesión y crisis ambiental hacia una nueva reestructuración capitalista verde. https://www.ecopoliticavenezuela.org/2021/02/09/pandemia-recesion-y-crisis-ambiental-hacia-una-nueva-reestructuracion-capitalista-verde/

[6] Five ways the Ukraine war could push up prices. https://www.bbc.com/news/business-60509453

[7] Climate Change 2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability. https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-ii/

[8] Inflation hits the Pentagon: Biden requests defense budget increase. https://www.foxbusiness.com/economy/inflation-hits-pentagon-biden-defense

[9] América Latina es la región en desarrollo más afectada del mundo por la pandemia. https://news.un.org/es/story/2021/03/1489112

[10] Latin America: Energy Boost. https://www.gfmag.com/magazine/march-2022/latin-america-energy-boost

[11] U.S. Officials Travel to Venezuela, a Russia Ally, as the West Isolates Putin. https://www.nytimes.com/2022/03/05/world/americas/venezuela-russia-usa.html

[12] U.S. imports from Russia of crude oil and petroleum products. https://www.eia.gov/dnav/pet/hist/LeafHandler.ashx?n=PET&s=MTTIM_NUS-NRS_1&f=M

[13] U.S. Officials Travel to Venezuela, a Russia Ally, as the West Isolates Putin. https://www.nytimes.com/2022/03/05/world/americas/venezuela-russia-usa.html; U.S., Venezuela discuss easing sanctions, make little progress: sources. https://www.reuters.com/world/americas/us-venezuela-discuss-easing-sanctions-make-little-progress-sources-2022-03-06/

[14] Maduro aseguró que está listo para venderle petróleo y gas a Estados Unidos. https://www.elnacional.com/economia/maduro-aseguro-que-esta-listo-para-venderle-petroleo-y-gas-a-estados-unidos/

[15] No «corridor» to ensure shift change at Chernobyl NPP. https://www.ukrinform.net/rubric-ato/3422276-no-corridor-to-ensure-shift-change-at-chernobyl-npp.html

[16] Update 11 – IAEA Director General Statement on Situation in Ukraine. https://www.iaea.org/newscenter/pressreleases/update-11-iaea-director-general-statement-on-situation-in-ukraine

[17] Ukraine nuclear power plant attack: scientists assess the risks. https://www.nature.com/articles/d41586-022-00660-z

[18] ‘15 new Chernobyls’: A survivor’s fears about Putin’s war. https://www.washingtonpost.com/opinions/2022/03/02/ukraine-war-nuclear-chernobyl-zaporizhia-reactor/ 

 

Leia mais