08 Novembro 2023
"Israel deveria também abrir uma passagem na sua fronteira com Gaza, a fim de prestar socorro pelo menos às crianças e às mulheres e oferecer cuidados médicos aos doentes e feridos. Essa seria uma iniciativa tão cara e generosa quanto inesperada e vencedora", escreve Luigi Ferrajoli, jurista italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 07-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O jurista italiano de renome internacional, reitera que "a distinção entre crime e ato de guerra é uma convenção estipulada pela nossa civilização jurídica. Mas é uma convenção indispensável para pôr um limite à guerra e preservar a necessária assimetria entre a incivilidade do crime e a civilidade do direito. Bem diferente teria sido a eficácia de uma luta ao terrorismo se tivesse sido reconhecido e processado como um fenômeno essencialmente criminoso"
Segundo ele, "em política, o que é racional quase nunca é real e o que é real quase nunca é racional. É claro que Israel derrotará os terroristas que estão em Gaza, à custa de mais milhares de mortes inocentes. Mas não vencerá a guerra, agora endêmica e permanente".
Com a guerra contra o Hamas, Israel não destruirá o consenso e a capacidade de atração do terrorismo, que, pelo contrário, serão reforçados pelos horrores do massacre em curso em Gaza. É necessário imediatamente um cessar-fogo - não a "trégua" - e o fim dos ataques aéreos, para que à catástrofe humanitária se oponha o respeito pela vida de cada ser humano.
Depois de um mês, a resposta da guerra aos crimes do Hamas em 7 de outubro não está apenas provocando milhares de mortes inocentes, dezenas de milhares de feridos, as pobres casas de Gaza arrasadas, as bombas sobre os hospitais, as escolas e as ambulâncias, a fome e a sede de um milhão de deslocados sem teto nem tutelas. Com um aparente paradoxo, também agravou enormemente a ameaça à segurança futura de Israel. Os seus efeitos políticos são todos desastrosos: a cada vez mais improvável libertação de reféns, o crescimento vergonhoso do antissemitismo no mundo, o perigo de um alargamento do conflito, o fortalecimento do Hamas tanto dentro do povo palestino como dentro do mundo islâmico. O único efeito que não será alcançado será a destruição proclamada por Netanyahu do terrorismo jiadista e criminoso do Hamas.
Todos os líderes militares do Hamas encontrados no território de Gaza poderão até ser mortos, mas não o serão os seus líderes políticos que vivem em segurança no Qatar, no Irã ou noutros países islâmicos. Muito menos serão destruídos o consenso e a capacidade de atração do terrorismo que, pelo contrário, serão potencializados pelos horrores da guerra: do massacre de inocentes mortos, em grande parte crianças, pelo crescimento do ódio e do desejo de vingança, que não poderão deixar de criar novas gerações de terroristas.
Esse é o resultado da resposta autodestrutiva, obtusa e simétrica da guerra e dos bombardeios contra populações civis pela atroz agressão de 7 de outubro. O que não foi um ato de guerra, sendo a guerra apenas entre Estados e exércitos regulares, mas um crime horrendo ao qual era preciso responder com o direito, ou seja, com uma intervenção direcionada a atingir apenas os culpados. Em vez disso, a resposta da guerra foi exatamente o que os terroristas queriam: a anulação da assimetria elementar entre guerra e violência criminosa, porque é como “guerra santa”, direcionada a destruir Israel, que eles concebem, legitimam e querem que sejam reconhecidos e temidos seus massacres.
Obviamente, a distinção entre crime e ato de guerra é uma convenção estipulada pela nossa civilização jurídica. Mas é uma convenção indispensável para pôr um limite à guerra e preservar a necessária assimetria entre a incivilidade do crime e a civilidade do direito. Bem diferente teria sido a eficácia de uma luta ao terrorismo se tivesse sido reconhecido e processado como um fenômeno essencialmente criminoso:
Biden, num momento de sinceridade, alertou o governo israelense: não cometa o mesmo erro que nós, quando chamamos de ato de guerra o crime de 11 de setembro e respondemos a ele com duas guerras que produziram centenas de milhares de mortos inocentes, o nascimento do ISIS, os atentados terroristas em meio mundo e o crescimento do ódio contra o Ocidente.
O despertar da razão ainda seria possível. Seria necessário um cessar-fogo - e não uma simples trégua - e, acima de tudo, dos bombardeios do céu. Para não provocar uma catástrofe humanitária, mas também para contrapor aos terroristas o respeito pela vida e pela dignidade de pessoa de cada ser humano, Israel deveria também abrir uma passagem na sua fronteira com Gaza, a fim de prestar socorro pelo menos às crianças e às mulheres e oferecer cuidados médicos aos doentes e feridos. Essa seria uma iniciativa tão cara e generosa quanto inesperada e vencedora, que além de salvar milhares de vidas humanas restabeleceria a assimetria entre um Estado que se afirma democrático e a brutalidade fanática do terrorismo. Seria o melhor antídoto para o veneno do antissemitismo.
Enfraqueceria radicalmente o terrorismo jihadista, especialmente diante do povo palestino.
Facilitaria uma negociação e a libertação dos reféns. Poria fim, pelo menos do lado israelense, à lógica da vingança e do inimigo a aniquilar, cuja superação é o pressuposto para qualquer solução política.
É claro que, em política, o que é racional quase nunca é real e o que é real quase nunca é racional. É claro que Israel derrotará os terroristas que estão em Gaza, à custa de mais milhares de mortes inocentes. Mas não vencerá a guerra, agora endêmica e permanente, como escreveu Tommaso Di Francesco no domingo, 29 de outubro. Para sobreviver, terá de acentuar a política violenta de opressão contra os palestinos, o que por sua vez fortalecerá o Hamas ou outros grupos terroristas, obrigará a população israelense a viver num estado de crescente insegurança e medo e produzirá inevitavelmente novas tragédias, numa espiral sem fim.
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Por um despertar da razão diante dos escombros do conflito. Artigo de Luigi Ferrajoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU