08 Novembro 2023
"O tom firme e veemente do Papa recebeu uma resposta talvez inesperada, mas justamente por isso mais ainda significativa. Ele foi chamado telefonicamente pelo presidente iraniano, Ebrahim Raisi. Já na semana passada outro membro do governo iraniano, o ministro das Relações Exteriores, Hossein Hamid-Abdollahian, procurou seu homólogo na Santa Sé, o Arcebispo Gallagher", escreve Angelo Scelzo, vaticanista italiano, em artigo publicado por Il Mattino, 07-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ele é um Papa provado, não doente, pelo menos não além dos limites conhecidos. Para uma criança das mais de oito mil que se reuniram ontem na Sala Nervi, que lhe perguntou como se pode evitar a guerra, Francisco respondeu que a guerra já estourou, e não só na Ucrânia e no Médio Oriente, mas em todo o mundo.
O conflito mundial "em pedaços" de que ele falou várias vezes alargou o campo e, com o que acontece na Terra Santa, corre agora o risco de se espalhar e expandir sem controle. Os sinais de sofrimento pela “falta de paz”, o Papa já não consegue mais esconder. E, como vimos ontem, nem diante das crianças, o rosto marcado, a voz cansada e aquele comportamento de terno “catequista” que entre gestos – a troca do sinal da paz, a saudação com as mãos levantadas, a “batuta” aos coros a serem repetidos – replicava, na Sala enfeitada para a ocasião, os apelos ininterruptos de quase dois anos de Angelus dedicados primeiro à martirizada Ucrânia e agora ao mortífero conflito israelense-palestino. E diante do barulho que tornava indistinguíveis as muitas línguas representadas, Francisco certamente se divertiu em responder que “Estes são os ribombos com os quais queremos encher o mundo: não aqueles das bombas”.
As crianças foram muito mais do que um simples sorriso. Mas certamente o clima festivo, as músicas, as bandeiras na Sala não fizeram esquecer a realidade daquela outra infância morta e oprimida precisamente nos lugares do nascimento e da pregação de Jesus. Sempre estiveram no centro de todos os apelos do Papa pela paz. “Peço que parem em nome de Deus: cessem o fogo. Tentem-se todos os meios para evitar absolutamente um alargamento do conflito. Libertem-se imediatamente os reféns.
Entre eles há também muitas crianças, que regressem às suas famílias. Sim, acrescentou o papa no Angelus, vamos pensar nas crianças, em todas as crianças envolvidas nesta guerra, bem como na Ucrânia e nos outros conflitos: é assim que o seu futuro está sendo destruído.”
O tom firme e veemente do Papa recebeu uma resposta talvez inesperada, mas justamente por isso mais ainda significativa. Ele foi chamado por telefone pelo presidente iraniano, Ebrahim Raisi. Já na semana passada outro membro do governo iraniano, o ministro das Relações Exteriores, Hossein Hamid-Abdollahian, procurou seu homólogo na Santa Sé, o Arcebispo Gallagher.
Na conversa com o Papa, o presidente iraniano esclareceu o motivo de ambos os telefonemas: essencialmente a busca de contatos mais direto e assíduos com a Santa Sé. Raisi disse que “apreciou os apelos do Papa Francisco por um ‘cessar-fogo’ em Gaza. Ao dirigir-se diretamente ao Papa, o Irã reconhece de fato que o único interlocutor possível do mundo ocidental só pode ser o Vaticano, com o qual existem relações diplomáticas há mais de setenta anos. É uma estratégia agora clara e que explica totalmente a iniciativa da liderança iraniana.
Não há muitas informações sobre o conteúdo da entrevista, exceto, do lado iraniano, a condenação duríssima e óbvia pelos "crimes horríveis" de Israel. Como líder dos católicos no mundo, o Papa assegurou naturalmente que fará tudo que estiver ao seu alcance para evitar que mais mulheres e crianças se tornem vítimas em Gaza. Mas ambos as conversas devem ser vistas numa perspectiva mais ampla.
O retorno ao Médio Oriente do Secretário de Estado estadunidense Blinken relançou fortemente o papel de Abu Mazen, o presidente da Autoridade Palestina. Abu Mazen esteve no centro do que pode ser definido como a vasta série de telefonemas do Papa sobre a crise no Médio Oriente, com o presidente estadunidense Biden e o presidente turco Erdogan, bem como, naturalmente, Ebrahim Raisi.
Um novo papel para Abu Mazen também pode mudar o cenário diplomático, levando em conta as relações mais do que cordiais entre o presidente da Autoridade Palestina e o Papa. Oito anos atrás, em maio de 2015, Abu Mazen foi ao Vaticano para celebrar o acordo alcançado entre a Santa Sé e a Palestina sobre um protocolo de atividades da igreja local. Naturalmente falou-se sobre os desenvolvimentos das negociações então em curso com Israel. Mas ninguém esqueceu a clamorosa conversa que levou Francisco a defini-lo um “anjo da paz”. Abu Mazen terminou a sua visita ao Papa participando da beatificação de duas freiras palestinas
É natural que seja atribuído ao Vaticano um papel de mediação em todo conflito. Ainda está em curso, embora ofuscado pela crise no Médio Oriente, o intenso trabalho diplomático que mediante o enviado do Papa, o Cardeal Zuppi, a Santa Sé realizou após a invasão da Ucrânia. O cenário desta vez é completamente diferente e, pode-se dizer, vê realmente o Papa como protagonista mais direto. Também pode-se compreender por que se sente visivelmente mais o peso de uma crise que explodiu não apenas repentinamente, mas com uma crueza e violência absolutamente inimagináveis.
A perspectiva que agora se abre com a recuperação da centralidade da Autoridade Palestina não pode induzir automaticamente ao otimismo, mas, precisamente levando em conta um possível papel Vaticano, talvez se possa falar de mais uma pequena brecha. O terrível “jogo” dos vetos e dos ostracismos, tão radicais nessa área, ao mesmo tempo que trunca os diálogos diretos, abre necessariamente caminho a interlocuções mais extensas e muitas vezes imprevistas. Ao virar da esquina poderia até mesmo estar a paz de Francisco.
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Os tormentos de um Papa provado. Artigo de Angelo Scelzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU