11 Novembro 2023
As atrocidades voltaram a espalhar morte e dor na terra de Jesus e têm raízes profundas. E o desastre é alimentado também pela mistura tóxica de uma “política baseada no nacionalismo extremista explicado como ardor religioso, tanto em Israel como na Palestina”. O Padre David Neuhaus, jesuíta israelense e professor de Sagrada Escritura, ressalta isso na entrevista concedida à Agência Fides.
A entrevista é de Gianni Valente, publicada por Agência Fides, 09-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nascido na África do Sul, filho de pais judeus alemães que fugiram da Alemanha na década de 1930, o Padre David foi no passado também Vigário Patriarcal do Patriarcado Latino de Jerusalém para os católicos de expressão judaica e para os migrantes.
Padre David, O caminho trilhado pela nova tragédia da Terra Santa está espalhando morte e dor. Em tudo isso, a solução militar escolhida, a ideia de “erradicar” militarmente o Hamas, tem realmente alguma lógica? Ou existem outros fatores que orientam as escolhas?
O Papa Francisco disse desde o Angelus de 8 de outubro, no início desse ciclo de violência: “A guerra é uma derrota! Cada guerra é uma derrota! Rezemos pela paz em Israel e na Palestina”. Talvez seja um erro pensar que a opção militar seja ditada pela lógica. Parece uma reação emocional ao choque de 7 de outubro: 1.400 homens, mulheres e crianças mortos e 250 sequestrados. A perda de tantas vidas alimenta o desejo de vingança. O ataque explodiu alguns mitos fundamentais. Primeiro, a presunção de que o exército israelense seria invencível: como conseguiram centenas de milicianos romper a fronteira? Segundo, a suposição de que os judeus tenham encontrado uma pátria segura; como tal massacre pôde acontecer aqui? A dor intensa pela perda de entes queridos, a ansiedade e a frustração pelos sequestrados misturam-se com a raiva pelo fato do ataque realmente ter acontecido.
A opção militar alimentou a mentalidade que acompanha a guerra. Primeiro, combate-se até à vitória! O que significa vitória nesse caso? Erradicar o Hamas? Mas isso traduziu-se operacionalmente na destruição de Gaza, matando milhares de pessoas, ferindo dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças, destruindo a cidade e os seus arredores. O outro lado é visto como a encarnação do mal. O jornalista israelense Alon Goldstein escreveu: "Por mais terrível que seja, também é tão simples: em cada geração há aqueles que pretendem nos aniquilar porque somos judeus. Agora nos encontramos diante de criaturas desprezíveis, nazistas reencarnados, Amaleque... Israel não deve parar, nem piscar, nem duvidar e não deve escutar ninguém, exceto os olhos dos nossos filhos, netos e bisnetos... Devemos atingir o inimigo árabe com uma força que o deixará de joelhos, ferindo todas as famílias ...".
Claro, existem outros fatores também. Mais de 80% dos israelenses culpam Netanyahu pelas falhas flagrantes que permitiram o ataque de 7 de outubro. Sabendo que sua carreira acabou, ele tem pouco interesse em pôr um fim à guerra. A guerra também fornece cobertura para as manobras na Cisjordânia para promover a presença judaica e expulsar os palestinos da sua terra.
Diplomatas e políticos voltam agora a propor a fórmula dos "dois Estados" e tentam restaurar o crédito e o peso político ao Fatah e a Abu Mazen. Mas será que essa perspectiva ainda está aberta e é possível?
Deve ser lembrado que em 1947 as Nações Unidas decidiram dividir a Palestina em dois estados, um judeu e um palestino. A legitimidade do Estado de Israel baseia-se na instituição de um Estado palestino. No entanto, o Estado palestino nunca foi instituído. Hoje, 2 milhões de palestinos são cidadãos de segunda classe em Israel e mais de 5 milhões vivem nos territórios ocupados por Israel após a guerra de 1967. Mais de metade do povo palestino vive no exílio, fora da Palestina histórica. Existem dois povos, mas apenas um estado.
Na década de 1990, israelenses e palestinos pareciam ter chegado a um compromisso. A liderança palestina em exílio, majoritariamente o Fatah, regressou a uma Palestina que estava tomando forma na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. No entanto, Israel continuou a construir assentamentos, controlando a maior parte do território. A Autoridade Palestina estava confinada a áreas densamente povoadas. Em 2005, Israel retirou-se unilateralmente da Faixa de Gaza, uma área densamente sobrepovoada, da qual quase 70% são refugiados expulsos do Estado de Israel em 1948. A miséria de Gaza foi terreno fértil para o extremismo e o Hamas assumiu o controle da Faixa em 2007. Em 2007, Israel impôs um cerco a Gaza, transformando-a no que tem sido definida como "uma prisão a céu aberto". Guerras esporádicas eclodiram em 2008, 2012, 2014 e 2021.
O Hamas manifestou forte oposição à solução dos dois Estados, tal como os grupos extremistas judeus. No entanto, foi Netanyahu quem realmente acabou com a solução dos dois Estados, desde a década de 1990. No seu atual governo há aqueles que pedem a transferência dos palestinos para além das fronteiras, recusando-se a reconhecer que são um povo. Durante a última onda de hostilidades, um ministério israelense trabalhou num plano para transferir centenas de milhares de palestinos de Gaza para a Península do Sinai, governada pelo Egito.
Paralelamente a essa posição dura, a Autoridade Palestina, totalmente dependente da benevolência de Israel, afundou na corrupção e na má gestão. A sua ressurreição, depois de tantos anos de desmantelamento da solução dos dois Estados e a decadência da própria Autoridade Palestina, poderia agora ser uma mera ilusão.
Na nova tragédia, como avaliar as palavras e as obras das Igrejas locais e sobretudo as palavras do Papa Francisco?
Livre dos vínculos dos interesses políticos, a Igreja pode ser profética, lembrando a todos que todo ser humano, seja um militante do Hamas ou um colono sionista, é criado à imagem de Deus. A Igreja pode se dar ao luxo de ser "ingênua" e promover a convicção de que o amanhã pode ser diferente do hoje, de que os erros de ontem não devem afetar o amanhã. Numa carta dirigida aos fiéis de 24 de outubro de 2023, o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, escreveu: “Ter aqui, hoje, a coragem do amor e da paz significa não permitir que o ódio, a vingança, a raiva e a dor ocupem todo o espaço do nosso coração, da nossa palavra, do nosso pensamento (...) as nossas palavras devem ser criativas, vivificantes, devem dar perspectivas e abrir horizontes”.
Com as suas palavras, a Igreja pode abrir novos horizontes. Na Terra Santa, em Israel e na Palestina, nas suas instituições, nas suas escolas, nos seus hospitais, nos seus orfanatos e nas suas casas, a Igreja serve a todos, israelenses e palestinos.
Além disso, a Igreja tem levado adiante um discurso sensato sobre Israel e a Palestina desde a década de 1920, quando questionou a promoção do etnocentrismo judaico na Palestina. A Igreja deve manter esse importante papel. Isso inclui tanto denunciar o terrorismo do Hamas como as causas de fundo da instabilidade da região, como fez o Cardeal Pizzaballa na sua carta aos fiéis: "Só pondo fim a décadas de ocupação e às suas trágicas consequências, bem como dando uma perspectiva nacional clara e segura para o povo palestino, poderá ser iniciado um sério processo de paz. Se esse problema não for resolvido pela raiz, nunca haverá a estabilidade que todos esperamos. (...) Devemos isso às tantas vítimas destes últimos dias e àquelas dos anos passados. Não temos o direito de deixar essa tarefa para outros."
O editorial do Haaretz de 6 de novembro (fire Israel Far Right) fala de “extrema direita messiânica e kahanista” que agora desfruta de grande poder em Israel e no governo israelense, e olha para essa guerra como uma chance, uma oportunidade. Quão forte é esse fator no cenário de guerra e nas escolhas individuais do governo israelense?
As pulsões messiânicas têm aflito o sionismo desde a sua fundação. A oposição ultraortodoxa ao sionismo enfatizou isso desde o início. A mistura particularmente tóxica de nacionalismo etnocêntrico, religião e fundamentalismo bíblico veio à tona após a guerra de 1967. Ignorando o direito internacional e os direitos da população autóctone palestina, os colonos mudaram-se para as cidades bíblicas recentemente conquistadas, como Hebron e Nablus. Para eles, essas áreas eram mais preciosas do que Tel Aviv ou Haifa. Eles percebiam um mandato divino para colonizá-las. O seu discurso tornou-se mais racista e as suas ações mais violentas. A resistência palestina foi truncada por um exército que raramente reagiu à violência dos colonos, mesmo quando esta colocava em perigo o próprio exército.
A ocupação israelense de Jerusalém Oriental proporcionou a esses grupos messiânicos uma visibilidade particular, com a tentativa de impor uma presença judaica dentro do Haram al-Sharif, o terceiro local mais sagrado do Islã. Referindo-se a ele como o Monte do Templo, os grupos judaicos pediram não apenas para orar ali, mas também de limpá-lo da presença não-judaica. Os grupos começaram a planejar a construção de um Terceiro Templo, para estudar como sacrificar como no Antigo Testamento. Cada vez mais israelenses têm entrado no Haram para rezar sob forte proteção da polícia e diante dos estridentes protestos palestinos.
De acordo com esses grupos, os palestinos só poderiam permanecer na terra de Israel se reconhecessem a hegemonia judaica. No atual governo israelense, os líderes desses grupos desempenham agora o papel de ministros israelenses, controlando recursos chave. A política baseada no nacionalismo extremista explicado como ardor religioso, tanto em Israel como na Palestina, constitui a mais forte oposição a qualquer tipo de resolução do conflito.
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As políticas e as quimeras que semeiam a morte na terra de Jesus. Entrevista com David Neuhaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU