08 Novembro 2023
A guerra na Faixa de Gaza se aproxima de seu primeiro mês e já é o conflito mais sangrento entre israelenses e palestinos desde 1948. Naquele mesmo ano, nasceu o historiador e escritor de origem palestino-libanesa Rashid Khalidi, que dedicou sua carreira a estudar o que descreve como o “projeto colonial” israelense. Com ele, buscamos analisar o que Israel está tentado alcançar com a sua ofensiva em Gaza, a reação dos governos frente à sociedade civil e a falta de vontade para alcançar uma “solução de dois Estados”.
A entrevista é de Lara Villalón, publicada por La Marea, 05-11-2023. A tradução é do Cepat.
O que considera que Israel está tentando alcançar com a sua ofensiva na Faixa de Gaza?
Penso que busca tornar parte de Gaza inabitável. Se não consegue expulsar a população porque os países árabes não querem acolher refugiados palestinos, irão encurralar os palestinos em uma área cada vez menor. Outro de seus objetivos, totalmente inalcançável, é destruir o Hamas. Ainda que destruam a estrutura militar do Hamas, trata-se também de um movimento político com ramos culturais, religiosos e sociais. Destruí-lo completamente seria um genocídio total. É inalcançável, mas é o que dizem que estão tentando fazer.
Considera que o governo israelense tem um plano a longo prazo?
Não estou certo de que entendam o que estão fazendo. É possível que ainda não o tenham decidido, inclusive a imprensa israelense especula sobre esta possibilidade. Qual é o nosso objetivo? Para onde vamos? O que buscamos alcançar? Não sei. Penso que sempre tiveram estimativas pouco realistas sobre o que podem conseguir em Gaza e contra os palestinos em geral. Israel acredita que pode exercer uma pressão ilimitada sobre os palestinos sem que exploda. O que ocorreu demonstra que não é uma análise correta.
Não é a primeira vez que uma milícia palestina utiliza reféns para exigir a libertação de palestinos presos, mas desta vez a resposta de Israel é um pouco diferente. Em outros episódios, trocaram um refém por dezenas de palestinos presos ou demoraram até cinco anos para negociar uma troca, mas, agora, recusam-se a negociar. Avalia que as circunstâncias são diferentes?
Sim, acredito que são diferentes. Israel travou todas as suas guerras em solo árabe, em 1956, 1967, 1973, 1982, sendo quase todas as vítimas civis árabes. O ataque de 7 de outubro foi diferente porque ocorreu em solo israelense e os civis israelenses foram o alvo. Os prisioneiros e os reféns representam algo completamente diferente. É diferente em termos numéricos, mas também psicologicamente porque ocorreu dentro das comunidades israelenses, em uma escala sem precedentes.
A guerra na Faixa de Gaza foi comparada a uma segunda Nakba, a expulsão dos palestinos de 1948. Concorda com este termo?
Muitos palestinos sentem que se trata de uma continuação da Nakba, porque o esforço em expulsar os palestinos da Palestina ou cercá-los em áreas cada vez menores está em curso desde 1948. Penso que é isso que Israel está tentando fazer em Gaza. Está forçando as pessoas a viverem em áreas cada vez menores. Pedem que as pessoas do norte se mudem para o sul. Que as pessoas saiam do território rumo ao Egito. Afinal, mover e deslocar os palestinos tem sido fundamental para a guerra demográfica que, há 75 anos, o sionismo, e mais tarde Israel, trava contra os palestinos.
Cerca de 150 palestinos foram assassinados na Cisjordânia, desde o último dia 7 de outubro. Em sua avaliação, este território é outra frente de guerra?
Faz parte de um plano, não são incidentes isolados. É uma tentativa organizada e dirigida de forma centralizada para limpar áreas habitadas por palestinos e substituí-las por colonos. É uma limpeza étnica, um projeto colonial. Na Cisjordânia, é um processo lento, em Gaza é muito mais rápido e cada vez mais violento, mas trata-se do mesmo projeto. Move-se a população originária tanto quanto possível e fica encurralada em uma área cada vez menor.
Ficou surpreso com o apoio de instituições europeias e estadunidenses a Israel?
Não foi surpreendente porque muitos destes países sempre apoiaram incondicionalmente Israel. O assassinato de israelenses se tornou a única história em grande parte dos meios de comunicação ocidentais. Não há dúvida de que esta matança foi cruel. Teve um grande impacto na opinião pública e nos políticos.
Dito isto, há um racismo subjacente neste evento porque muitas crianças israelenses, mulheres e idosos israelenses, civis desarmados, foram assassinados. Pelo que parece, estas mortes têm mais peso do que as mortes de palestinos. Um bebê israelense suscita mais simpatia e apoio político do que um bebê palestino. A forma como Israel propagou de modo muito inteligente o luto, a ira e a raiva fez muitas pessoas pensarem que “os israelenses são como nós, somos como eles”, é isto o que está em jogo.
Em vários destes países que demonstraram apoio incondicional a Israel, houve protestos em massa contra a sua ofensiva em Gaza. Avalia que existe uma desconexão entre a classe política e a sociedade civil?
O que contava era a reação da classe política e dos meios de comunicação. Não é a reação de setores crescentes da opinião pública. Tampouco no resto do mundo. O mundo não é a Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos. Em países com populações enormes como China, Índia, Bangladesh, Paquistão, a reação foi diferente. Houve comoção e sentimento de horror diante da morte de civis israelenses e ainda mais comoção diante da matança de milhares de palestinos. Reagiram de forma diferente dos meios de comunicação ocidentais.
E como observa a reação no Oriente Médio? Ocorreram grandes protestos pedindo aos seus governos que rompam as relações diplomáticas com Israel, enquanto buscam assumir uma posição firme, mas, ao mesmo tempo, cautelosa.
Demonstra como esses governos são pouco representativos, como representam pouco o seu povo. Do Marrocos aos países do Golfo, a reação demonstra que todos os supostos analistas que diziam que os árabes não se importam com a Palestina, não sabem do que estão falando, são uns ignorantes. Ninguém jamais deveria ouvi-los novamente. Qualquer pessoa que conheça algo de história sabe que durante um século houve preocupação entre os árabes pela Palestina, antes da Primeira Guerra Mundial.
Durante o mandato britânico, durante a guerra de 1948 e em cada período dos anos 1960, houve preocupação com a Palestina entre as populações árabes. Os intelectuais, as pessoas comuns e os governos não necessariamente representavam fielmente isto. E nos últimos anos, estes governos antidemocráticos melhoraram cada vez mais as suas relações com os Estados Unidos e Israel e ignoraram os sentimentos de seus povos.
Muitos países insistem na solução de dois Estados. Considera ser uma possibilidade realista na situação atual ou acredita que é preciso atuar para isso?
Uma solução de dois Estados significa desfazer o que o governo israelense, com o apoio estadunidense e europeu, fez nos últimos 56 anos. Refiro-me ao processo de assentamentos na Cisjordânia, que começou no ano de 1967 e já envolve mais de 750.000 colonos israelenses ilegais na Cisjordânia ocupada e na Jerusalém Oriental. Não é possível ter uma solução de dois Estados sem revertê-lo. Israel tomou mais de 60% da Cisjordânia. Quando se leem todas as propostas dos últimos anos, de Camp David a Oslo, nenhuma inclui uma soberania palestina completa. Referem-se a dois Estados ou a um Estado e outro menos Estado?
Acredita que ainda existem palestinos que acreditam nesta solução?
O movimento nacional palestino não está unificado. Não tem um objetivo estratégico claro. Os palestinos querem dois Estados? Se sim, como querem alcançá-lo? Precisam saber a esse respeito. Por outro lado, os Estados Unidos não estão realmente comprometidos com isto. Falam disso, mas financiam construções de assentamentos por meio de organizações de caridade. Tudo isto tem que mudar.
Para ter um Estado palestino soberano, Gaza e Cisjordânia teriam de estar ligadas, os assentamentos precisam ser removidos. Parece-me que as pessoas falam como se os palestinos fossem estúpidos. Dizem a eles que isso acontecerá algum dia. Queremos isso agora. Queremos um plano concreto, caso contrário, não pode funcionar. Que se trace um plano realista com datas: queremos o fim da ocupação em 2026, o fim dos assentamentos em 2028 e um Estado em 2029.
Caso ocorra um cessar-fogo, como avalia que se deveria proceder? Quem considera que deveria atuar como mediador no cenário atual?
Supondo que Israel coloque fim em sua operação militar e supondo que o Hamas assuma um cessar-fogo, restam muitas perguntas a responder. Uma delas é: quem controlará Gaza? Quem será responsável pela sua segurança? Será o Exército israelense? Que país árabe, europeu ou do sul global gostaria de enviar soldados nesta situação?
Afinal, trata-se de um problema político, não de segurança. A segurança depende da política. Será necessária uma visão política do assunto ou não haverá solução de segurança. Israel sempre fala de segurança, nega-se a falar de política, dos direitos dos palestinos, de sua soberania e igualdade. Só falam de seus direitos, de proteger o seu território. Enfim, a guerra é uma extensão da política por outros meios. Temos que nos perguntar qual é a questão política. Sem uma resposta, não saberemos como proceder.
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“Israel sempre fala de segurança, nega-se a falar de política, dos direitos dos palestinos”. Entrevista com Rashid Khalidi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU