A transição energética e os recursos do Sul Global. Limites e desafios. Entrevista especial com Astrid Becker

“A transição energética não deve se limitar ao fechamento progressivo das centrais de carbono e ao desenvolvimento de energias limpas. Pelo contrário, deve ser uma mudança de paradigma de todo o sistema em direção à mais sustentabilidade, justiça social e de gênero”, diz diretora do projeto de sustentabilidade regional da Fundação Friedrich Ebert

Foto: José Cruz | Agência Brasil

28 Junho 2023

“O Sul Global vai utilizar seus recursos naturais e minerais somente para a exportação ou para realizar a justiça energética?” Esta, segundo Astrid Becker, é uma das perguntas centrais que os países do Sul precisam responder diante da transição energética em curso como decorrência das mudanças climáticas. A substituição de energias fósseis por energias renováveis, explica, demandará a exploração de recursos minerais e o uso de grandes áreas de terra para a instalação de parques eólicos e solares, o que tende a acirrar os conflitos territoriais se os países do Sul mantiverem a postura agroexportadora e impossibilitar a justiça energética.

Na videoconferência intitulada “A transição energética e os recursos do Sul Global. Limites e desafios”, Astrid discorre sobre a pobreza energética na América do Sul. Na zona rural de países como o Peru, exemplifica, “80% das famílias não têm acesso à energia. Ao mesmo tempo, para os mais pobres, a energia custa mais porque eles não têm o privilégio de ter uma linha direta de gás até suas casas. Eles compram galões de gás que custam muito mais do que o gás distribuído diretamente pelas redes até as casas”.

A conferência de Astrid Becker integra o ciclo de estudos “Transição Energética e o Colapso Global. Limites e possibilidades”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

A próxima viodeconferência será ministrada por Stefania Gomes Relva, doutora em Engenharia de Energia e Automação Elétricas pela Universidade de São Paulo – USP, nesta quinta-feira, 29-06-2023. O tema é a transição energética no Brasil e o contexto global.

O evento será transmitido na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no canal do IHU no YouTube.

A seguir, publicamos a conferência de Astrid Becker no formato de entrevista.

 

Astrid Becker (Foto: Reprodução | YouTube)

Astrid Becker é diretora do projeto de sustentabilidade regional da Fundação Friedrich Ebert – FFE, na Cidade do México. A FFE foi fundada em 1925, na Alemanha, para dar continuidade ao legado político de Friedrich Ebert, o primeiro presidente alemão eleito democraticamente. Na América Latina e no Caribe, a Fundação atua para fortalecer as estruturas democráticas por meio da articulação de diferentes grupos sociais e políticos, para impulsionar políticas que promovam justiça social e contribuam para a construção de propostas de desenvolvimento sociopolítico.

Confira a entrevista.

IHU – Como tem refletido sobre a transição energética neste momento?

Astrid Becker – Para combater a mudança climática, é necessário mudar o sistema energético radicado nos combustíveis fósseis para um sistema de baixas emissões ou sem emissões de carbono, baseado em fontes renováveis. É importante destacar que o processo de transição energética não é algo novo na história. Podemos observar vários saltos de produtividade por processos de transição energética com a invenção do fogo, da máquina a vapor, da internet, por exemplo. Ou seja, novas tecnologias têm provocado um alto crescimento de produtividade.

Hoje, observamos o desenvolvimento de novas energias e isso nos dá a impressão de que, comparadas a outros processos, elas são mais ou menos um substituto de energias fósseis para manter o status quo. Mas a transição energética não deve ser limitada ao fechamento progressivo das centrais de carbono e ao desenvolvimento de energias limpas. Pelo contrário, deve ser uma mudança de paradigma de todo o sistema em direção à mais sustentabilidade, justiça social e de gênero. Grandes contribuições de descarbonização incluem a eletrificação do consumo para tornar outros setores mais limpos, como o transporte e a digitalização das redes, que melhoram a eficiência energética.

IHU – Quais são as projeções em torno da transição energética para os próximos anos?

Astrid Becker – A maioria das fontes energéticas [utilizadas nos últimos anos] é fóssil, especialmente carvão e gás. Até 2050 espera-se uma mudança radical para uma matriz energética mundial na qual quase 70% da energia seja energia solar e 18%, energia eólica, de modo que o petróleo se mantenha em aproximadamente 3%. É uma mudança muito ambiciosa, que necessita de uma reversão e da introdução de novas tecnologias.

IHU – Fala-se atualmente da necessidade de realizar uma transição energética com justiça social. Qual é a situação energética da América Latina e quais as expectativas quanto a essa dupla mudança?

Astrid Becker – Em 2022, os dados da matriz energética na América Latina e no Caribe indicam que mesmo na região, onde há muito mais uso de energias renováveis, como a hidroenergia, a maior parte da matriz energética é baseada em energia fóssil: 30% de petróleo, 31% de gás natural e 5% de carvão. A maior quantidade de energia é consumida no transporte, depois na indústria, no uso residencial e na agricultura. Por isso, o transporte é um grande tema na transição energética na América Latina.

Os dados mostram que o acesso à energia é mais baixo entre aqueles que vivem mais distante dos centros urbanos, nas zonas rurais. Na capital do Peru [Lima], por exemplo, quase todos têm acesso à energia, mas nas zonas mais pobres e mais longes, a situação muda e 80% das famílias não têm acesso à energia. Ao mesmo tempo, para os mais pobres, a energia custa mais porque eles não têm o privilégio de ter uma linha direta de gás até suas casas. Eles compram galões de gás que custam muito mais do que o gás distribuído diretamente pelas redes até as casas. Na América Latina, em muitas regiões, especialmente nas rurais, existe um problema de pobreza energética.

Acordo de Paris

Para cumprir as metas do Acordo de Paris, a energia renovável deve crescer ao menos seis vezes mais. É um grande desafio. A eficiência e as energias renováveis são os principais pilares da transição energética. Isso implica impulsioná-las em todos os setores e, dentro deles, a descarbonização do setor elétrico é crucial.

Segundo os prognósticos, o consumo de energias fósseis – particularmente o petróleo – vai diminuir de aproximadamente 30 para 5%. Como sabemos, as maiores reservas de petróleo estão no Oriente Médio, mas também nos EUA e na América Latina, especificamente no Brasil, no México, na Amazônia e em países como Peru, Equador e Colômbia. A diminuição do uso de petróleo vai significar uma diminuição significativa das emissões de gases de efeito estufa, mas, ao mesmo tempo, para os países exportadores, especialmente na América Latina, isso pode gerar outros impactos. Um deles são as implicações para o Estado porque o emprego relacionado ao setor também vai diminuir e, nesses países, há uma necessidade de busca de alternativas à mineração e aos empregos.

Busquei exemplos de como os países estão procurando alternativas para enfrentar a baixa de demanda do petróleo, mas quase não encontrei. Esse será um processo interessante de ser observado. No caso do carvão, a baixa demanda tem gerado alguns desenvolvimentos, por exemplo, nos governos do Chile e da Colômbia, na elaboração de novos planos energéticos, mas tudo isso ainda está no início.

As energias renováveis serão as maiores fontes de energia no futuro. Existem várias tecnologias, com diferentes fins, e as mais discutidas são as energias solar, eólica e hídrica, que em sua maioria servem para a produção de eletricidade. Outras formas estão em discussão, como a geotérmica e o biogás, que podem ser utilizadas para a produção de eletricidade e calor. O hidrogênio verde está entrando muito forte na discussão da transição energética porque pode ser utilizado para a produção de eletricidade, calor e frio, para a mobilidade, e outros usos, como produção de fertilizantes e insumos para a indústria petroquímica.

Transição energética, “energia limpa” e mineração. Um paradigma insustentável:

IHU – Outra discussão diz respeito ao uso de minerais para a realização da transição energética. Qual o impacto disso para a América Latina?

Astrid Becker – A estimativa é que será necessário o uso de minerais para a transição energética em nível mundial. Com o aumento de plantas de energias renováveis no Sul Global, especialmente de plantas solares, de energia eólica e do uso de baterias de lítio, calcula-se que a demanda de cobre crescerá de 3 a 4 vezes. Sobre a demanda de lítio, espera-se um crescimento de 190 vezes, de platina, 15 vezes, de níquel, 30 vezes.

Terra

Além dos minerais, outro fator relevante em tudo isso é a terra que será buscada para a produção de energias renováveis. Pensemos, por exemplo, nas grandes áreas que serão necessárias para a implementação de parques eólicos e solares e também para a hidroenergia. É óbvio que o terreno poderá ser um fator crucial, mas também limitante na implementação das energias renováveis. Aqui me refiro também à produção de biomassa. No Brasil, utiliza-se muito bioetanol para a mobilidade automotriz, e essa energia também necessita de grandes áreas de produção agrícola, sendo um dos fatores que deve ser considerado nesta análise.

Água

Outro fator muito relevante é a água porque a água será necessária para a produção da biomassa e para o hidrogênio verde. A produção de energia verde e energia solar necessitará de zonas com grande variação solar, como as do norte da África ou da América Latina, como no norte do México ou nos desertos do Chile e do Peru. Exemplos para a construção de grandes parques existem no México e na Patagônia, no Chile.

Para a construção de parques eólicos também é necessário madeira balsa, que vem especialmente do Equador. Até agora, este não é um fator muito analisado, mas já se sabe que a maioria dessa madeira se encontra na Amazônia equatoriana e sua extração gera efeitos negativos, como o desmatamento ilegal. Esse insumo precisa ser levado em conta nas pesquisas sobre alternativas energéticas porque essa madeira está cada vez mais difícil de ser encontrada.

IHU – Em que regiões estão os minerais necessários para a produção de novas tecnologias energéticas?

Astrid Becker – Espera-se que a demanda de cobre aumente de 3 a 4 vezes. As maiores reservas estão no Chile, Peru e México. Depois, em países como Austrália, Rússia e EUA. A China também tem reservas altas, assim como a África (na República do Congo e na Zâmbia) e a Ásia (na Indonésia). Se comparamos com as regiões onde se produz a maior quantidade de cobre no mundo, percebemos que no Chile, que tem os maiores recursos, é onde ocorre a produção mais alta, mas também no Peru e, surpreendentemente, depois, na China e no Congo. A China tem menos recursos, mas detém muitas reservas minerais em outros países. No caso do Peru, por exemplo, as terras com minerais estão quase todas diretamente exportadas à China, onde se faz o processamento dos minerais.

Ou seja, em muitos países não existem cadeias de valores, cadeias de processamento de produtos. Somado a isso, observamos um dos problemas fundamentais relativos à mineração: a destruição do meio ambiente nos países exportadores. Muitos grupos sociais, especialmente muitas comunidades, se opõem à construção de novas minas que serão relevantes por expandirem a crescente demanda por vários minerais e, com isso, crescerá o número de conflitos sociais em torno da mineração.

Lítio

O mesmo problema ocorrerá com o lítio. Como sabem, o lítio é um elemento crucial para a produção das baterias, especialmente as dos carros elétricos. Como, em quase todos os países, a modalidade elétrica é vista como um pilar muito relevante para a transição energética por causa das baixas emissões, a demanda por lítio está crescendo incrivelmente. O chamado triângulo do lítio na América Latina corresponde à Argentina, à Bolívia e ao Chile, que tem 85% das reservas de lítio do planeta. Mas é preciso considerar que, para extrair o lítio, é necessário o emprego de muitos produtos químicos e água, que nesta zona não é tão frequente. Além disso, há fortes pressões das comunidades campesinas na região contra as minas, porque o uso de água e dos produtos químicos destruirá a base de sobrevivência desses povos. Há muitas disputas sociais em torno do lítio nessa região. Entre os produtores, a Austrália está em primeiro lugar, mas há outros países que estão processando o lítio, entre os quais encontra-se o Brasil. O processamento do lítio não necessariamente se realiza nos países de origem, mas em outros.

Outro fator importante para a produção de novas energias são os chamados minerais raros, que são um grupo de metais, como o nome diz, que não se encontra em todo lugar, mas em algumas zonas mais específicas. Um deles é o nióbio, que está presente no Brasil, na África, na Ásia e na Austrália. Essas terras também são de alta relevância para a transformação energética, mas, igualmente, há o perigo de se exportar mineral cru desses países, deixando para eles os conflitos sociais e os passivos ambientais da extração.

IHU – Quais as potencialidades e os limites do hidrogênio verde na transição energética?

Astrid Becker – Atualmente, o hidrogênio verde é visto como o novo boom e, para muitos, parece ser a solução de todos os problemas. O hidrogênio verde é um vetor energético que pode ser utilizado para muitas coisas diferentes: para a produção de energia, como combustível, na indústria, para mobilidade, para guardar energia, ou seja, tem múltiplos usos e, assim, espera-se que vá resolver muitos dos nossos problemas. É importante destacar que, até o momento, existem somente projetos-pilotos acerca do hidrogênio verde. Não existem plantas que realmente possam criar todo o hidrogênio que será necessário para o futuro.

Para a produção de um quilo de hidrogênio verde são necessários 12 litros de água. O hidrogênio, como sabemos, não tem cor; é um gás sem cor, mas, no debate atual, fala-se de vários tipos de hidrogênio. O hidrogênio verde é produzido à base de uma eletrólise com eletricidade de energias renováveis, como é a hídrica e, por isso, é uma energia limpa. Há também o hidrogênio que vem da energia nuclear e o hidrogênio azul, que é criado à base de gás natural e carvão. Mas o fato é que, para a produção de hidrogênio verde, sempre vai ser utilizada uma quantidade de hidrogênio azul, o que significa que também o chamado hidrogênio verde tem um componente fóssil.

Há projetos de hidrogênio verde no norte da África, na América Latina, especialmente no Chile e no Uruguai. Isso mostra que a produção de hidrogênio verde depende da exportação. As estratégias de diferentes países, como Chile e Uruguai, mostram claramente que o hidrogênio verde será exportado para a Europa, a China e o norte das Américas, ou seja, não será produzido para uso local.

Existem planos nacionais com o objetivo de exportar hidrogênio verde, mas o desenvolvimento dessa energia também tem um grande potencial de conflitos sociais não somente no Sul Global, mas também na Espanha, onde há grupos de agricultores e comunidades que se opõem à construção de plantas de hidrogênio verde. Eles têm medo de que as plantas utilizem toda a água disponível na região, o que necessitam para sua sobrevivência.

CO2, de problema a recurso:

A questão que surge neste debate é a seguinte: o Sul Global utilizará seus recursos naturais e minerais somente para a exportação ou para realizar a justiça energética? O Sul Global continuará investindo no comércio e na exportação tradicionais? Ou seja, estes países continuarão sendo provedores de matéria-prima ou utilizarão seus recursos para a realização da justiça energética? Como temos visto, a perspectiva energética abre um grande potencial para os países do Sul.

A introdução dessas novas tecnologias pode equilibrar as perdas do setor fóssil, mas mantém-se o grande risco de continuar com a divisão tradicional da economia global, em que os países do Sul seguem como provedores de matéria-prima, enquanto as cadeias de valor e emprego qualificado e o investimento ficam restritos aos países do Norte. Isso significa que há um risco de continuar com injustiça energética, com conflitos sociais, com empregos menos qualificados e falta de energia nos países do Sul Global.

IHU – Quais as possibilidades e os desafios da transição energética com justiça social diante deste quadro?

Astrid Becker – Há potenciais, mas também desafios. A pergunta é: diante da alta demanda por minerais e outros insumos para tecnologias, os países do Sul pensam em buscar novas estratégias de negociação com empresas de mineração, que incluem cadeias de valor e tecnologias mais limpas? Esse é um fator relevante, e eu proporia uma cooperação entre os países para conseguir melhores condições de exploração de recursos em seus territórios. No triângulo do lítio, até agora, há negociações majoritariamente em nível nacional, mas creio que os países ganhariam se negociassem em conjunto. Outra possibilidade é criar fundos de desenvolvimento com os recursos da mineração, a exemplo da Noruega, que tem um fundo de petróleo destinado às políticas sociais. Dessa maneira, toda a população pode ser beneficiada com os recursos oriundos da exploração mineral.

É muito importante que no Sul Global haja mais pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, utilizando os recursos que estão nos países. Outro fator relevante são os acordos internacionais, ou seja, incluir a transição energética em tratados de comércio e convênios internacionais e aproveitar novos instrumentos, como o Acordo de Escazú. Isso pode ser interessante para novos contratos e tratados internacionais. Para finalizar, é importante recuperar a ideia da energia como uma ferramenta para satisfazer as demandas humanas em um contexto de recursos finitos.

 

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