01 Abril 2020
Do mito de Édipo, que investiga a misteriosa doença que oprime Tebas, àquela trazida para os EUA por Freud. Eis o que a representação simbólica da epidemia nos ensina.
Corrado Augias está trabalhando em um ensaio a ser publicado em breve pela Einaudi, intitulado Breviario per um confuso presente (Breviário para um presente confuso, em trad. livre). Um dos temas é a representação simbólica das pestes. Segue abaixo um trecho.
O texto é de Corrado Augias, jornalista, escritor italiano e ex-deputado do Parlamento Europeu, publicado por La Repubblica, 30-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que lugar terá o coronavírus do ano 2020 na longa história das pestilências? As consequências de uma peste são vastas, afetam todos os aspectos da vida e assim foram representadas. No entanto, deixemos de lado os textos mais antigos, as lendas orientais, o Apocalipse, a história de Homero na Ilíada, e vamos considerar o Édipo. O infeliz rei percorre a cidade de Tebas atingida por uma peste da qual ninguém sabe explicar as causas. Ele terá que resolver a ansiedade que oprime a cidade, ele que já resolveu o enigma da Esfinge. De quem é a culpa de um flagelo que está matando tantos inocentes? O adivinho revela que a peste veio porque está presente em Tebas o assassino do rei anterior, Laio. Com base nisso, Édipo inicia sua investigação, no final da qual descobre horrorizado que ele é o culpado, porque foi ele quem matou, sem saber, o rei Laio, seu pai, e deitou-se com Jocasta, ignorando que aquela mulher era sua mãe.
No emaranhado de tabus violados encerrados nesse mito, desempenha um papel proeminente a misteriosa doença exterminadora. A peste ataca de repente. Não estava lá e de repente aparece; poupa ou mata por motivos obscuros, é possível se curar ou morrer de acordo com critérios que a razão humana não compreende, portanto ditados pelo capricho, pela ira de um deus.
No entanto, mesmo da época clássica, alguém havia tentado uma explicação racional: o filósofo Tito Lucrécio Caro. Na parte final do sexto livro do poema Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), ele descreve a peste de Atenas atribuindo-a a causas naturais. Miasmas que circulam na atmosfera ou que se elevam da terra apodrecidos pelo excesso de água ou sol. Os conhecimentos científicos são aproximados, mas a intenção racional, no seu examinar a atmosfera e o solo, faz com que Lucrécio realize um salto mental de séculos, projetando-se para o Iluminismo.
A terrível peste do século XIV, mencionada por Boccaccio, manifestava-se com linfonodos inflamados e inchados nas áreas inguinal e axilar: "e a partir disso a qualidade da enfermidade acima mencionada começou a permutar-se em manchas negras ou lívidas [...] indício certeiro de uma futura morte". Boccaccio, no entanto, também ressalta as consequências sociais da peste: "Foi com tanto pavor que essa tribulação entrou no ânimo dos homens e das mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio abandonava o sobrinho e a irmã o irmão e, muitas vezes, a mulher seu marido e que, pior ainda e quase inacreditável, pais e mães abandonavam filhos como se deles não fossem".
Um destino que de repente se tornou frágil e incerto espalha um pânico capaz de apagar qualquer outro sentimento. Com um salto de cinco séculos, descobrimos que a peste do século XVII narrada por Manzoni em seu romance (Os Noivos, ndt) causa uma dissolução semelhante dos laços. Um episódio muito significativo aparece no capítulo XXXIV. Renzo, recém chegado à cidade, quer pedir ajuda a um transeunte para encontrar um endereço; o homem, no entanto, ao vê-lo se aproximar, reage da seguinte maneira: "Quando Renzo não estava mais tão longe, tirou o chapéu de forma respeitosa; e, segurando-o com a mão esquerda, colocou a outra mão cobrindo o chapéu e foi se aproximando do estranho. Mas o homem, arregalando os olhos, deu um passo para trás, levantou uma pesada bengala e apontando a ponta que era de ferro, segurou Renzo gritando: - sai! sai! sai!".
A conclusão do episódio é ainda mais esclarecedora; o suspeitoso burguês, retornando para sua casa, descreve o encontro da seguinte forma: "Quando chegou em casa, contou que o abordara um contaminado, com um ar humilde e manso, com uma cara de infame impostor, com o pote de unguento, ou o saquinho de pó (não estava bem certo qual dos dois) em sua mão, dentro do chapéu, para contaminá-lo, caso ele não tivesse atentado a mantê-lo afastado. Se desse um passo de mais – acrescentou - eu mesmo o atravessaria antes que tivesse tempo de me atingir, aquele patife".
A seu modo, os “untores/contaminadores” são o resultado da razão. Sem saber nada de microbiologia, era preciso pensar alguma causa lógica, mecânica e humana para a disseminação da pestilência. Manzoni, católico, atribui à providência divina um papel decisivo em seu romance. Mas o restante não é escondido: a credulidade histérica das massas, a persistência de práticas supersticiosas, a obstinada obtusidade popular no erro.
Na Milão atingida pela peste, o povo pede ao cardeal Borromeo uma procissão para implorar a graça celestial. O santo homem percebe os riscos, a princípio se opõe, mas é forçado a ceder. Em 11 de junho de 1630, uma grande procissão - autoridades, músicos, povo, as relíquias de São Carlos - atravessou a cidade. No dia seguinte, registrou-se um aumento acentuado no número de infecções e mortes. As consequências trágicas, no entanto, são atribuídas não aos contatos que a aglomeração favoreceu, mas à ação dos “untores/contaminadores”. Tão forte era a necessidade de se agarrar a uma hipótese que parecesse compreensível.
O escritor norte-americano Jack London, em seu curto romance visionário A Peste Escarlate, imagina que em 2013 uma epidemia que exterminou a humanidade quase inteiramente. Os poucos sobreviventes são reduzidos à condição selvagem dos primeiros homens. A educação para a civilização deve a duras penas ser recomeçada do zero.
O escritor português José Saramago (Prêmio Nobel 1998) em seu romance-ensaio A cegueira imaginou que uma epidemia misteriosa deixaria todos cegos. O dom da visão é subitamente substituído por um leitoso branco ofuscante. Os infelizes afetados pelo mal são fechados em uma espécie de asilo-leprosário, onde suas condições regridem para um estágio animalesco de violência selvagem. O escritor adverte: o comportamento racional, a civilização da convivência, é uma frágil camada superficial sob a qual se aninham os instintos selvagens primitivos do macaco humano.
Em 1947, o escritor francês Albert Camus publicou o romance A Peste. A cidade de Oran (Argélia) está infestada por uma epidemia causada por ratos. Um mal real que alude, no entanto, também à guerra e ao fascismo. Quando a epidemia finalmente é vencida, a cidade comemora. Entre outros, está presente o doutor Rieux, um médico valente que se engajou contra o mal. O bravo médico pensa que: "Aquela alegria sempre estava ameaçada: ele sabia aquilo que a multidão ignorava e que pode ser lido nos livros, ou seja, que o bacilo da peste nunca morre ou desaparece, que pode permanecer por dezenas de anos dormente nos móveis, nos lençóis, nos porões, nas malas, nos lenços e nos papeis. E talvez chegará um dia em que a peste convocará seus ratos e os enviará para morrer em alguma cidade que se mostre satisfeita consigo mesmo".
Mas talvez o significado metafórico mais alto atribuído à palavra peste seja aquele usado por Sigmund Freud. Em 1909, o pai da psicanálise fez uma viagem aos Estados Unidos acompanhado pelo Dr. Sandor Ferenczi, de Budapeste e Gustav Jung. A Igreja e os costumes burgueses desaprovavam as investigações sobre a sexualidade. A psicanálise parecia insidiar todo pudor, especialmente aquele de meninos e meninas. Uns e outras deviam ignorar certos impulsos ou conhecê-los por acenos. Freud andava na direção oposta, trazendo à luz até os aspectos mais indecentes.
Por isso, enquanto o navio atracava no píer de Manhattan, numa América ainda confiante em sua inocência, Freud, falando com seu colaborador, pronunciou as famosas palavras: "Eles não sabem que viemos trazer a peste".
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Porque a peste está dentro de nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU