Por: André | 16 Novembro 2013
Lendo algumas intervenções relacionadas ao centenário do nascimento de Albert Camus, aparecem concordâncias com o atual debate argentino, o maior que se deu do ponto de vista ético-político. É aquele que comumente identificamos com o debate sobre os dois demônios. A palavra “demônio” extrapola a frase e qualquer partido que se tomar, já não nasce com a marca de um pensamento, mas de um exorcismo. O problema surgiu, pois, carente de palavras adequadas.
Fonte: http://bit.ly/1bs6zRZ |
A reportagem é de Horacio González e publicada no jornal argentino Página/12, 10-11-2013. A tradução é de André Langer.
Mas, vejamos o caso de Camus: sua intervenção direta na questão argelina – não argentina – no final dos anos 1950. Estava particularmente destinada a não justificar “um terror com outro terror”, em não se apoiar no “crime do contrário para justificar o próprio crime”. Em sua juventude argelina, Camus havia passado fugazmente pelo Partido Comunista de Argel – na época pró-muçulmano –, mas nunca abandonou suas próprias buscas literárias: André Gide, Henri de Montherland, Chateaubriand. Mas a viagem a Paris e sua atividade no jornal da Resistência, o Combat, o farão ver as coisas de outra maneira. “Somos os que ao mesmo tempo se negam a exercer e a experimentar o terror”. Estas fórmulas já estavam naquele célebre jornal da Resistência, a memorável página onde também campeia o espírito do grande poeta surrealista René Char, que havia fixado o ponto cardeal da vida “entre a obsessão da colheita e a indiferença da história”.
Por que estar na Resistência então, tanto o escritor semiclandestino, como o poeta capitão de maqui? Simplesmente, porque não era possível estar em outro lado. Mas, é possível tal ascetismo em relação à história e certo grau de impassibilidade em relação à crítica intelectual? Camus não somente não vê nisso nenhum problema, como extrai dali sua moral de combate. Desde muito jovem havia falado do “equilíbrio solar mediterrâneo”, noção que encerrava harmonia e tragédia ao mesmo tempo, um espaço de sensualidade que representava uma entrega hedônica e inocente, à margem dos cálculos e sinuosidades da razão dialética. Poder-se-ia converter este dado moral em uma estratégia política? Na Argélia, Camus apóia um partido moderado, o de um dirigente já esquecido, Ferhat Abbas, com a esperança de fugir da alternativa oferecida pela majoritária Frente de Libertação Nacional, apoiada pela União Soviética, pela esquerda francesa, por Sartre e por Fanon. Era possível forjar uma nação argelina com um equilíbrio entre franceses-argelinos, árabes, bereberes? Não se tratava exatamente de um Estado associado à França, mas de uma nação – diríamos hoje – multicultural ou plurinacional. Talvez tivesse sido a realização da definição conservadora, mas sutil de Renan, uma nação que se refaz todos os dias com independência de razões etnográficas, linguísticas ou religiosas.
Quem se lembra do filme A Batalha de Argel, com sua eficaz contundência – mostra a violência dos membros da frente da libertação, mas toma claramente partido por estes – poderá experimentar o sentimento de que há um fragor e uma virulência histórica que não pode ser cancelada pelas desesperadas advertências dos moralistas. A história é trágica porque não é possível voltar às páginas acontecidas, mas trágicos como Camus, influídos por Kafka, Dostoievski e também por Faulkner, poderiam acreditar que o trágico não é o real, mas unicamente a essência da vida moral. Gillo Pontecorvo, diretor daquele filme, foi acusado pelo Cahiers du Cinema e por Serge Daney, um excessivo e excelso crítico de cinema, exatamente por empregar enquadramentos falsos e, portanto, imorais. Sem dúvida, é a característica de uma crítica que teria compartilhado com Camus.
O autor de O Estrangeiro – desde já sua obra prima, assim como o é o famoso comentário de Sartre sobre ela, quando ainda eram amigos – nunca falou de dois demônios e se muniu de fórmulas socráticas da época gaullista do Combat: nem vítimas nem verdugos. Era uma mensagem aos nazistas, ao exército alemão. Não obstante, é duvidoso que Camus não tivesse sentido a urgência de postular um desequilíbrio, uma assimetria no caso argentino, no caso de tê-lo conhecido. Esse “nem-nem” não lhe teria servido para dar conta de uma situação que inibia ontologicamente para falar de “dois demônios”, pois não lhe teria sido difícil desentranhar a natureza infra-humana, a soberania de perversão que possuía o planificado escarmento estatal. A prova da insuficiência de pensar que “um se apoiava no crime do outro” a obtemos quando se segue a atuação de Ernesto Sabato, que aplica de forma sumária as teses de Camus à Argentina. Quero esclarecer que não devemos confortar com isso. Sabato devia muito a Camus (a publicação de O Túnel na Gallimard e, de alguma maneira, a tentativa de um estilo) e suas denúncias das torturas da Revolução Libertadora, contam e muito para a memória nacional, sendo que o “Nunca Mais” possui a validade estremecedora que o “camusismo” de seu prólogo não pretende nem consegue tirar.
Mas o modelo de exonerar simultaneamente os “pólos complementares”, a apócrifa estrutura moral proporcional dos fenômenos de violência, não podia ser transferido para as decisões e ordens de extermínio do Estado, vistos tão somente como cruel contrapeso da suposta crueldade inversa. Havia nestes enfrentamentos, descontando tudo o que em qualquer enfrentamento opera como excepcionalmente degradante, um fio de eticidade singularmente diferenciador. Se o humano não é capaz de ver seus rostos diferenciadores por ocasião dos abismos últimos de violência, então não há “o humano”. Camus não chegou a perceber esta situação, e por temor de uma nova “União Soviética” no norte da África, pensou que seu país, a Argélia, podia ser uma “Suíça franco-árabe”. Nesse caso tinha razão Sartre apoiando os rebeldes argelinos em vez de formular o que Camus havia chamado de “o homem rebelde”, conceito sem dúvida sugestivo, de índole libertária, mas despojado de robustez histórica. Ao final, os rumos da Argélia seguiram itinerários bem afastados dos que queriam tanto Camus, como Sartre e Fanon.
Neste aniversário de Camus, há quem prefere ironicamente recordar seu giro latino-americano, em 1949: felicidade no Brasil de Gaspar Dutra. Ali, uma “Nova Orã”. É recebido festivamente pelo surrealista tropicalista Oswald de Andrade. Mas na Argentina, refugiado na casa de Victoria Ocampo, seus discursos são exigidos por alguns aturdidos funcionários culturais do peronismo para uma vista prévia de aprovação. Um mal entendido; não qualquer. O mal entendido profundo que rege absorto a vida nacional. Perón, nesse ano, condena Náusea, de Sartre, em seu discurso do Teatro Independência de Mendoza. Foram depois os sartreanos argentinos que viram, na queda do peronismo, a potencialidade do “fato maldito”; sem dúvida a palavra resistência, que será adotada, tinha o ar dos rebeldes franceses e, ao mesmo tempo, sem sabê-lo, camadas inteiras do funcionalismo peronista da época teriam aceito o pensamento de Camus antes que o de Sartre.
Albert Camus nunca cometeu o deslize ou o erro do antiintelectualismo. Mas com seus exercícios de pessimismo vitalista ensaiou ser um tipo de intelectual em que a história oferecera mais sensualidade do que “razão analítica”. Raro, e à sua maneira, extremo. Já o havia visto Sartre quando identificou essa razão analítica no formidável fraseado de O Estrangeiro. Ali Camus, sem sabê-lo, acompanhava o modo de estudo dos mitos de Lévi-Strauss. Em ambos os casos, o Brasil no meio. Camus não tinha razão, mas sua forma de não tê-la ainda nos interessa.
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Tinha Camus razão? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU